Sobre o medo - Parte II
“A alma não é um 'tema superado', como ingenuamente o declaram alguns psicólogos modernos”, diz Mário Ferreira dos Santos em Psicologia. Nada melhor que essa observação para introduzir a segunda parte da nossa reflexão sobre o medo, que tem como objetivo explicar, justamente, a importância de investigar e pensar a imortalidade da alma humana.
Tal como nos adverte o filósofo brasileiro, ninguém pode negar as contribuições da psicologia moderna para a humanidade. Mas, na contramão do que pregam alguns de seus entusiastas, em nossa época, o tema da alma está se impondo de forma mais importante e mais exigente do que nunca. E essa é a razão pela qual o psicólogo, ou mesmo o estudioso comum, quando se afasta da filosofia, tende a se tornar um mero empírico, sem alcançar o que há de mais profundo no ser humano.
Vimos anteriormente em Heidegger uma reflexão sobre o medo e a angústia, explicando que o objetivo do medo é nos impelir à ação, mais especificamente à ação de ir em direção ao desconhecido, onde repousa o sentido da nossa própria essência humana. E agora veremos, em Pascal, como os nossos medos estão relacionados com a nossa própria finitude humana, ou seja, com a morte.
Blaise Pascal é um autor tão interessante que poderíamos escrever uma reflexão para cada parágrafo dos seus Pensamentos. Mas como isso seria inviável para os nossos propósitos, deixaremos o filósofo falar por si mesmo e nos limitaremos a acrescentar somente o necessário para conduzir o leitor ao nosso objetivo. Recomendamos, portanto, ao leitor, que não deixe de ler a obra mencionada e pratique sua cuidadosa meditação.
Pascal acreditava que todo homem dotado de um mínimo bom senso não poderia deixar de refletir sobre a condição da alma humana perante a eternidade. No entanto, a realidade que ele presenciava ao seu redor apontava para uma despreocupação em massa do homem do século XVII com a sua própria existência. O pensamento de Pascal aparece, assim, como uma reação ao dogmatismo cartesiano e ao ceticismo de Montaigne, que fomentavam uma atitude descompassada diante da vida na sociedade francesa daquela época.
Embora Pascal se destacasse pelo seu grandioso espírito científico, ele atribuía ao pecado original a raiz de todos os problemas que, como este, refletem a própria miséria humana. Com a expulsão de Adão e Eva do paraíso, a morte e a dor se tornaram realidade para o homem e passaram a marcar a finitude da vida humana na Terra, a qual estaria, a partir de então, para sempre fadada a uma fundamental insuficiência. Para compreender essa realidade, é preciso, na visão pascalina, ter o “espírito de fineza” perfeitamente alinhado à doutrina cristã.
Para Pascal, todos os pensamentos e ações do homem tomam caminhos totalmente diversos conforme ele tenha ou não consciência da eternidade, a qual deve ser seu último e mais importante objetivo.
“A imortalidade da alma é uma coisa que nos preocupa tanto, que tão profundamente nos toca, que é preciso ter perdido todo sentimento para permanecer indiferente diante dela.”
Assim, para Pascal, o primeiro interesse do homem enquanto homem, seu primeiro dever, é esclarecer bem este assunto, do qual dependerá toda a sua conduta. E isso é tão importante para o autor, que ele fazia extrema diferença entre os homens que estão persuadidos da sua condição imortal e os que vivem sem se dar ao trabalho de pensar nesse assunto. Essa negligência do homem para consigo mesmo chegaria a ser uma monstruosidade.
“Não o afirmo pelo zelo piedoso de uma devoção espiritual. Entendo, ao contrário, que se deve ter esse sentimento por um princípio de interesse humano e por um interesse de amor próprio.”
Por outro lado, é preciso ter a alma muito elevada para compreender que os nossos males são infinitos e que a morte que nos ameaça a cada instante deve nos colocar, infalivelmente, dentro de poucos anos, de face ou com a eternidade, ou com o absoluto nada, ou com a eterna dor e infelicidade, adverte o autor.
“Nada mais real nem mais terrível do que isso. Por mais corajosos que desejemos ser, é esse o fim que espera mesmo a mais bela vida do mundo. Que se reflita sobre isso e se diga, depois, se não é indubitável que o único bem da vida presente é a esperança de uma vida futura; que só somos felizes na medida em que dela nos aproximamos; e que, não havendo mais infelicidade para os que têm uma inteira certeza da eternidade, também não há felicidade para os que não possuem luz alguma.”
Para o filósofo francês, é um grande mal permanecer nessa dúvida, sendo um dever indispensável investigar quando ela existe, porquanto aquele que duvida e não investiga se torna não apenas infeliz, mas também injusto.
“Nada é tão importante para o homem como a sua condição, e nada lhe é tão temível como a eternidade. Por conseguinte, se se acham homens indiferentes à perda do próprio ser e ao perigo de uma eternidade de miséria, isso não é natural.”
Mas, onde queremos chegar com isso, afinal?
Ora, nessa preocupação de Pascal reside, também, toda a problemática em torno do medo e da angústia humana. Pois é justamente a indiferença do homem diante da morte que corrompe e vira do avesso a sua consciência, fazendo-o temer as coisas mais triviais e ser completamente insensível às mais importantes.
“[Esses homens] procedem de modo inteiramente diverso em relação a todas as outras coisas: temem até as mais insignificantes, e as prevêem, e as sentem. O mesmo homem que passa dias e tantas noites cheio de cólera e de desespero por ter perdido o cargo [medo das perdas materiais], ou por alguma ofensa imaginária à sua honra [medo da rejeição, medo de passar vergonha, timidez] sabe também que vai perder tudo com a morte, sem que por isso se inquiete ou se comova. É uma coisa monstruosa ver, no mesmo coração e ao mesmo tempo, essa sensibilidade pelas menores coisas e essa estranha insensibilidade pelas maiores.”
Para Pascal, essa consciência invertida e corrompida é um encantamento incompreensível e um estranho e verdadeiro abalo na natureza humana. Para ele, as pessoas se convenceram de que as belas maneiras do mundo consistem em fazer-se de louco. Elas não sabem o quanto se arriscam quando estão tão concentradas em buscar a estima dos outros, a ponto de se considerarem senhoras de si próprias, e viverem como se houvessem de prestar contas a ninguém senão a si mesmas no final.
Para Pascal, as pessoas que vivem dessa forma, se pensassem nisso seriamente, veriam que isso é tão mal apanhado, tão contrário ao bom senso, tão oposto à honestidade e afastado de tudo dessa boa aparência que mostram, que seu modo de vida desesperado seria antes capaz de regenerar e converter uma pessoa incrédula que de corromper aquelas que já são conscientes da sua alma imortal. Forte, não é?
A solução, para Pascal, está em compreender a noção do divertissement, que representa a fuga do homem do contato consigo mesmo. Recordemos da fuga de que falamos em Heidegger. Aqui, o homem não consegue compreender sua existência porque não consegue estar a sós consigo mesmo, está sempre fugindo do contato com a trágica condição em que se encontra, do contato com a sua angústia, com o desconhecido. O homem foge de olhar para si mesmo porque não pode encarar o que há de mais perturbador em sua própria natureza. Olhar para si implicaria enxergar suas próprias mazelas, sua própria finitude e insuficiência. Em Pascal, o confronto severo e honesto consigo mesmo levaria o homem a ver que, devido ao pecado, houve uma cisão entre o homem e o sobrenatural. E essa é a raiz de todos os problemas.
Essa angústia da qual o homem está fugindo de encarar é a ânsia da plena felicidade e da suficiência (satisfação). Aqui, as palavras de Pascal são tão completas, que é dispensável tentar acrescentar até mesmo uma vírgula:
Que nos brada pois essa avidez e impotência senão que houve outrora no homem uma felicidade verdadeira, da qual só lhe resta agora a marca e o vestígio totalmente vazio que ele inutilmente tenta preencher com tudo aquilo que o cerca, procurando nas coisas ausentes o socorro que não encontra nas presentes, as que são todas incapazes de fazê-lo, porque esse abismo infinito não pode ser preenchido senão por um objeto infinito e imutável, isto é, por Deus mesmo?
O homem de Pascal está, assim, fadado a jamais encontrar satisfação e felicidade senão na busca por reencontrar-se com o divino. Em outras palavras, ele quer dizer: se você não vê sentido em mais nada que não na realidade presente; se você não tem qualquer esperança na vida futura; se você vive como se isto, aqui e agora, fosse tudo, então não é nada surpreendente que você esteja angustiado ou com medo. O estranho seria, na verdade, se você não estivesse aterrorizado!
O homem que está afastado da presença divina busca no divertissements, nos prazeres e alegrias passageiras, até mesmo no trabalho, na família, no amigo, no projeto de uma vida, a felicidade que ele só pode encontrar no reencontro com o divino, ou seja, na busca séria e honesta pela verdade da sua própria existência. O homem afastado da presença divina tem a mente sempre concentrada no imediato, nas urgências materiais, nos prazeres e alegrias deste mundo.
E enquanto não volte seu olhar para a eternidade, enquanto estiver fugindo do encontro consigo, enquanto não olhe para dentro de si mesmo e não se ponha a investigar a sua própria existência, o homem estará fadado à inconstância, à inquietação, à angústia e ao tédio. Tudo isso lhe prepara um solo fértil para os medos irracionais e exagerados, que devem aparecer, naturalmente, nas situações em que a sua alma estiver mais vulnerável e suscetível, manifestando-se de forma discreta e tomando, pouco a pouco, a forma de pavores, fobias, ansiedade extrema, tristeza etc.
Para reencontrar-se com o divino, o homem deverá buscar, assim, com disposição honesta, a antecipação da morte, isto é, deverá pensar, ininterruptamente, a finitude da sua existência.
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