O que Restou do Socialismo

Foto do colunista
Traduzido por Valéria Campelo
30 de janeiro de 2023

Karl Marx — uma mente poderosa, um homem bem instruído e um bom escritor alemão — morreu há 119 anos. Viveu na era do vapor; nunca em sua vida vira um carro, um telefone ou uma luz elétrica, para não falar de tecnologias mais recentes. Seus admiradores e seguidores costumavam dizer, e alguns continuam dizendo: isso não importa, seu ensino ainda é perfeitamente relevante para o nosso tempo, pois o sistema que ele analisou e atacou — o capitalismo — ainda está aqui. É certo que Marx vale a pena ser lido. A questão, porém, é: sua teoria realmente explica alguma coisa em nosso mundo e fornece uma base para qualquer previsão? A resposta é: Não. Outra questão é se alguma vez suas teorias foram úteis. A resposta, obviamente, é sim: suas teorias foram operadas com sucesso como um conjunto de slogans que deveriam justificar e glorificar o comunismo e a escravidão que inevitavelmente o acompanha.

Quando perguntamos o que essas teorias explicam ou o que Marx descobriu, devemos perguntar apenas sobre as ideias que eram específicas para ele, e não banalidades de senso comum. Não devemos ridicularizar Marx, atribuindo-lhe a descoberta de que em todas as sociedades não primitivas existem grupos ou classes sociais com interesses conflitantes que os levam a lutar uns com os outros; isso os historiadores antigos já sabiam. O próprio Marx não fingiu ter feito esse tipo de descoberta; como escreveu em uma carta a Joseph Weydemeyer em 1852, ele não havia descoberto a luta de classes, mas sim provado que esta luta conduz à ditadura do proletariado, o que, por sua vez, leva à abolição das classes. É impossível dizer onde e como ele “provou” esta grande alegação em seus escritos anteriores a 1852. “Explicar” algo significa subordinar eventos ou processos a leis; mas as “leis” no sentido marxista não são as mesmas leis das ciências naturais, entendidas como fórmulas que afirmam que, em condições bem definidas, sempre ocorrem fenômenos bem definidos. O que Marx chamou de “leis” são tendências históricas. Não há, desse modo, uma distinção clara entre explicação e profecia em suas teorias. Fora isso, ele acreditava que o significado do passado e do presente só pode ser compreendido por referência ao futuro, do qual afirmava ter conhecimento. Logo, para Marx, apenas o que ainda não existe pode explicar o que existe. Mas importa acrescentar que, para ele, o futuro existe, de uma maneira peculiar, hegeliana, embora incognoscível.

Todas as profecias importantes de Marx, no entanto, revelaram-se falsas. Primeiramente, previu a crescente polarização de classes e o desaparecimento da classe média em sociedades baseadas numa economia de mercado. Karl Kautsky destacou corretamente que, se essa previsão estivesse errada, toda a teoria marxista estaria em ruínas. É evidente que provou-se errada; em vez disso, o oposto fez-se o caso. As classes médias estão crescendo, enquanto a classe trabalhadora, no sentido de Marx, está diminuindo em meio ao progresso tecnológico nas sociedades capitalistas.

Em segundo lugar, Marx previu não apenas o relativo, mas o absoluto empobrecimento da classe trabalhadora. Essa previsão mostrou-se equivocada ainda em sua vida. Como fato, deve-se notar que o autor de O Capital atualizou em sua segunda edição várias estatísticas e números, mas não aqueles relacionados aos salários dos trabalhadores; esses números, se atualizados, teriam contrariado sua teoria. Nem mesmo os marxistas mais doutrinários tentaram pendurar-se nesta previsão obviamente falsa nas últimas décadas.

Em terceiro lugar, e mais importante, a teoria de Marx previu a inevitabilidade da revolução proletária. Tal revolução jamais ocorreu em lugar algum. A Revolução Bolchevique na Rússia não teve nenhuma relação com as profecias marxistas. Sua força motriz não foi um conflito entre a classe trabalhadora industrial e o capital, mas foi executada sob slogans que não tinham conteúdo socialista, muito menos marxista: paz e terra para os camponeses. É desnecessário mencionar que, subsequentemente, esses slogans seriam transformados em seu oposto. O que, no século XX, talvez mais se aproxime da revolução da classe trabalhadora, são os acontecimentos na Polônia de 1980-81: o movimento revolucionário de trabalhadores industriais (fortemente apoiado pela intelligentsia) contra os exploradores, isto é, o Estado. E este exemplo solitário de uma revolução da classe trabalhadora (se é que se pode contar) foi dirigido contra um estado socialista e executado sob o sinal da cruz, com a bênção papal.

Em quarto lugar, deve-se mencionar a previsão de Marx sobre a queda inevitável da taxa de lucro, um processo que deveria levar, em última análise, ao colapso da economia capitalista. Não diferentemente dos outros, esta previsão mostrou-se simplesmente errada. Mesmo de acordo com a teoria, isso não poderia ser uma regularidade inevitavelmente operacional, pois o mesmo desenvolvimento técnico que reduz a parte do capital variável nos custos de produção deve reduzir o valor do capital constante. Logo, a taxa de lucro pode permanecer estável ou aumentar mesmo se aquilo que Marx chamou de “trabalho vivo” declinar para uma dada unidade de produção. E ainda que essa “lei” fosse verdadeira, o mecanismo pelo qual sua operação causaria o declínio e o fim do capitalismo é inconcebível, uma vez que o colapso da taxa de lucro pode muito bem ocorrer em condições nas quais o valor absoluto do lucro esteja crescendo. O que foi observado, se vale a pena mencionar, por Rosa Luxemburgo, a qual inventou uma teoria própria sobre o inescapável colapso do capitalismo, que se mostrou não menos equivocada.

O quinto princípio do marxismo que se revelou errôneo é a previsão de que o mercado dificultará o progresso técnico. O exato oposto tem obviamente provado ser o caso. As economias de mercado demonstraram ser extremamente eficientes em estimular o progresso tecnológico, enquanto o “socialismo real” acabou sendo tecnologicamente estagnado. Como é inegável que o mercado criou a maior riqueza já conhecida na história da humanidade, alguns neomarxistas sentiram-se compelidos a mudar sua abordagem. Houve uma época em que o capitalismo parecia terrível porque produzia miséria; mais tarde, revelou-se terrível porque produz essa riqueza que extermina a cultura.

Os neo-marxistas deploram o chamado “consumismo” ou “sociedade consumista”. Em nossa civilização, há de fato muitos fenômenos alarmantes e deploráveis associados ao crescimento do consumo. O ponto é, no entanto, que o que conhecemos como alternativa a essa civilização é incomparavelmente pior. Em todas as sociedades comunistas, as reformas econômicas (contando que produziram quaisquer resultados) levaram invariavelmente à mesma direção: a restauração parcial do mercado, ou seja, do “capitalismo”.

Quanto à chamada interpretação materialista da história, ela nos forneceu vários insights e sugestões interessantes, mas não possui nenhum valor explicativo. A sua versão rígida, amparada em vários textos clássicos, implica que o desenvolvimento social depende inteiramente da luta de classes que, em última análise, por intermédio da mudança dos “modos de produção”, é determinada pelo nível tecnológico da sociedade em questão. Implica, além disso, que direito, religião, filosofia e outros elementos da cultura não possuem história própria, já que sua história é a história das relações de produção. Esta é uma afirmação absurda, totalmente carente de amparo histórico.

Se, por outro lado, a teoria é tomada em um sentido simplório e limitado, ela diz meramente que a história da cultura deve ser investigada de tal forma que se deve levar em consideração as lutas sociais e os interesses conflitantes; que as instituições políticas dependem em parte, pelo menos negativamente, do desenvolvimento tecnológico e dos conflitos sociais. Isso, no entanto, é uma bobagem incontroversa conhecida muito antes de Marx. Enfim, a interpretação materialista da história é uma tolice ou uma banalidade.

Outro componente da teoria de Marx que carece de poder explicativo é sua teoria do trabalho. Marx fez duas importantes adições às teorias de Adam Smith e David Ricardo. Primeiro, afirmou que nas relações entre trabalhadores e capital, a força de trabalho, e não o trabalho, está sendo vendida; depois, fez uma distinção entre trabalho abstrato e concreto. Nenhum desses princípios tem qualquer base empírica e nem é necessário para explicar crises, competição e conflito de interesses. Crises e ciclos econômicos são compreensíveis pela análise do movimento de preços, e a teoria do valor nada acrescenta à nossa compreensão sobre eles. Parece que a economia contemporânea —  distinta das ideologias econômicas — não diferiria muito do que é hoje se Marx nunca tivesse nascido.

Os princípios que mencionei não foram escolhidos ao acaso: constituem o esqueleto da doutrina marxista. À parte deles, quase nada existe no marxismo que forneça soluções para os muitos problemas do nosso tempo, principalmente porque não eram urgentes um século atrás. Quanto às questões ecológicas, encontraremos em Marx não mais do que algumas banalidades românticas sobre a unidade do homem com a natureza. Os problemas demográficos estão completamente ausentes, além da recusa de Marx em acreditar que qualquer coisa como superpopulação, no sentido absoluto, poderia ocorrer. Nem os dramáticos problemas do Terceiro Mundo encontram suporte em sua teoria. Marx e Engels eram fortemente eurocêntricos; desprezaram outras civilizações e elogiaram os efeitos progressistas do colonialismo e do imperialismo (na Índia, na Argélia e no México). O que importava para eles era a vitória da civilização superior sobre os atrasados; a ideia de determinação nacional era, para Engels, uma questão de escárnio.

O que o marxismo é ainda menos capaz de explicar é o socialismo totalitário que apontou Marx como seu profeta. Muitos marxistas ocidentais costumavam repetir que o socialismo, tal como existia na União Soviética, não tinha nada a ver com a teoria marxista e que, por mais deplorável que fosse, era melhor explicado por algumas condições específicas na Rússia. Se este é o caso, como poderia ter acontecido que tantas pessoas no século XIX, especialmente os anarquistas, previssem exatamente o que seria o socialismo baseado em princípios marxistas — a saber, a escravidão estatal? Proudhon argumentou que o ideal de Marx é tornar os seres humanos propriedade do Estado. Segundo Bakunin, o socialismo marxista consistiria no governo dos renegados da classe dominante, e seria baseado na exploração e na opressão, pior do que qualquer outra coisa previamente conhecida. De acordo com o anarcossindicalista polonês Edward Abramowski, se o comunismo, por algum milagre, prevalecesse nas condições morais da sociedade contemporânea, resultaria em divisão de classe e na exploração piores do que aquilo que existiu na época (porque as mudanças institucionais não alteram as motivações humanas e o comportamento moral). Benjamin Tucker afirmou que o marxismo conhece apenas uma cura para os monopólios, e esta é um único monopólio.

Essas previsões foram feitas no século XIX, décadas antes da Revolução Russa. Essas pessoas eram clarividentes? Não. Pelo contrário, alguém poderia fazer essas previsões racionalmente e inferir das antecipações marxianas o sistema de servidão socializada. Seria tolice dizer, naturalmente, que esta era a intenção do profeta ou que o marxismo produziu o comunismo do século XX como sua causa eficiente. A vitória do comunismo russo resultou de uma série de acidentes extraordinários. Mas pode-se dizer que a teoria de Marx contribuiu fortemente para o surgimento do totalitarismo e que forneceu sua forma ideológica. Antecipou a nacionalização universal de tudo e, por conseguinte, a nacionalização dos seres humanos. Certamente, Marx tirou dos Saint-Simonistas o slogan de que no futuro não haveria governo, apenas a administração das coisas; não lhe ocorreu, contudo, que não se pode administrar as coisas sem empregar pessoas para esse fim, de modo que a administração total das coisas significa a administração total das pessoas.

Nada disso quer dizer que a obra de Marx não vale a pena ser lida; é uma parte da cultura europeia e deve-se lê-la como se lê muitos clássicos. Deve-se ler os trabalhos de Descartes sobre física, mas seria bobagem lê-los como um manual válido de como estudar física atualmente. Embora nos antigos países comunistas os textos de Marx e marxistas sejam agora tratados com repugnância, deve-se considerar; mesmo lá eles serão eventualmente lidos como remanescentes do passado. Uma das causas da popularidade do marxismo entre as pessoas instruídas era o fato de que, em sua forma simples, era muito fácil; até mesmo Sartre percebeu que os marxistas são preguiçosos. De fato, eles gostavam de ter uma chave para abrir todas as portas, uma explicação universalmente aplicável a tudo, um instrumento que torna possível dominar toda a história e a economia sem realmente ter que estudá-las.

O fim do marxismo significa automaticamente o fim da tradição socialista? Não necessariamente. Tudo depende, é claro, do significado da palavra “socialismo”, e aqueles que ainda a usam como profissão de fé geralmente relutam em dizer o que querem dizer, além das generalidades vazias. E assim, algumas distinções têm de ser feitas. O problema é que o desejo de detectar “leis históricas” levou muitas pessoas a conceberem o “capitalismo” e o “socialismo” como “sistemas” globais, diametralmente opostos entre si. Mas não há comparação. O capitalismo desenvolveu-se espontânea e organicamente a partir da disseminação do comércio. Ninguém planejou e nem é necessária uma ideologia abrangente, enquanto o socialismo, por outro lado, era uma construção ideológica. Em última análise, o capitalismo é a natureza humana em ação — isto é, a ganância do homem pode seguir seu curso — enquanto o socialismo é uma tentativa de institucionalizar e reforçar a fraternidade. Parece óbvio agora que uma sociedade em que a ganância é a principal motivação dos atos humanos, por todos os seus aspectos repugnantes e deploráveis, é incomparavelmente melhor do que uma sociedade baseada na irmandade compulsória, seja no socialismo nacional ou internacional.

A ideia do socialismo como uma “sociedade alternativa” ao capitalismo equivale à ideia da servidão totalitária; a abolição do mercado e a nacionalização geral não podem produzir nenhum outro resultado. A crença de que se pode estabelecer perfeita igualdade por meios institucionais não é menos maligna. O mundo conheceu pitadas de igualdade voluntária, praticada em alguns mosteiros e num punhado de cooperativas seculares. No entanto, a igualdade sob compulsão requer inevitavelmente meios totalitários, e o totalitarismo implica extrema desigualdade, pois implica acesso desigual à informação e ao poder. Nem a igualdade, em termos práticos, na distribuição de bens materiais é possível, uma vez que o poder está concentrado nas mãos de uma oligarquia incontrolável; é por isso que nada remotamente próximo da igualdade existiu nos países socialistas. O ideal é, portanto, autodestrutivo. Por que a ideia de um planejamento abrangente é economicamente catastrófica, sabemos bem, e a crítica de Friedrich von Hayek sobre esse ponto foi amplamente corroborada pelas evidências da experiência de todos os países comunistas, sem exceção. O socialismo, nesse sentido, significa que as pessoas são impedidas, pela repressão, de se engajar em qualquer atividade socialmente útil, a menos que seja por ordens do Estado.

No entanto, a tradição socialista é rica e diferenciada, e inclui muitas variedades além do marxismo. Algumas ideias socialistas tinham, com efeito, uma tendência totalitária embutida. Isso se aplica à maioria das utopias da Renascença e do Iluminismo, assim como a Saint-Simon. No entanto, alguns adotaram valores liberais. Uma vez que o socialismo, o qual começou como uma fantasia inocente, tornou-se um verdadeiro movimento político, nem todas as suas variantes incluíam a ideia de uma “sociedade alternativa”, e daquelas que incluíram, muitos não levaram a ideia a sério.

Tudo ficou mais claro antes da Primeira Guerra Mundial. Os socialistas e a esquerda em geral queriam não apenas escolas iguais, universais e obrigatórias, serviços de saúde, impostos progressivos e tolerância religiosa, mas também educação secular, a abolição da discriminação nacional e racial, a igualdade das mulheres, a liberdade de imprensa e reunião, a regulação legal das condições de trabalho e um sistema de previdência social. Eles lutaram contra o militarismo e o chauvinismo. Líderes socialistas europeus do período da Segunda Internacional, tais como Jaurès, Babel, Turati, Vandervelle e Martov, personificaram o que havia de melhor na vida política europeia.

Mas tudo mudou após a Primeira Guerra Mundial, quando a palavra “socialismo” (e em grande parte “a esquerda”) começou a ser quase totalmente monopolizada pelo socialismo leninista-stalinista, o qual distorcia a maioria dessas demandas e slogans para significar o seu oposto. Ao mesmo tempo, a maioria desses ideais “socialistas” era de fato realizada em países democráticos operando em economias de mercado. Infelizmente, os movimentos socialistas não totalitários sofreram por décadas de inibições ideológicas e não tiveram coragem de denunciar e lutar consistentemente contra o sistema político mais despótico e assassino do mundo (fora o nazismo). Afinal de contas, o comunismo soviético deveria ser um tipo de socialismo e se embelezava com a fraseologia internacionalista e humanista herdada da tradição socialista. A tirania leninista conseguiu, assim, roubar a palavra “socialismo” e os socialistas não totalitários foram cúmplices do roubo. Houve algumas exceções a esta regra, mas não muitas.

Seja como for, os movimentos socialistas contribuíram fortemente para mudar o cenário político para melhor. Eles inspiraram uma série de reformas sociais sem as quais o estado de bem-estar contemporâneo — que a maioria de nós considera natural — seria impensável. Seria, portanto, uma pena se o colapso do socialismo comunista resultasse no fim da tradição socialista como um todo e no triunfo do darwinismo social como a ideologia dominante.

Embora reconhecendo que uma sociedade perfeita nunca estará ao nosso alcance e que as pessoas sempre encontrarão motivos para se tratarem mal, não devemos descartar o conceito de “justiça social”, da mesma forma que ridicularizada por Hayek e seus seguidores. Certamente, não se pode defini-la em termos econômicos. Não se pode inferir da expressão “justiça social” a resposta a questões sobre qual sistema tributário específico é desejável e economicamente viável em determinadas condições, quais benefícios sociais se justificam ou qual é a melhor maneira de os países ricos ajudarem as partes mais pobres do mundo. A "justiça social" expressa apenas uma atitude em relação aos problemas sociais. É verdade que na maioria das vezes a expressão “justiça social” é empregada por indivíduos ou por sociedades inteiras que se recusam a assumir responsabilidade por suas próprias vidas. Mas, como diz o velho ditado, o abuso não anula o uso.

Em sua imprecisão, a “justiça social” assemelha-se ao conceito de dignidade humana. É difícil definir o que é a dignidade humana. Não é um órgão a ser descoberto em nosso corpo, não é uma noção empírica, mas sem ela não seríamos capazes de responder à simples pergunta: o que há de errado com a escravidão? Da mesma forma, o conceito de justiça social é vago e pode ser usado como uma ferramenta ideológica do socialismo totalitário. Não obstante, o conceito é um intermediário útil entre uma exortação à caridade, ao altruísmo e ao conceito de justiça distributiva; não é o mesmo que justiça distributiva porque não implica necessariamente reconhecimento recíproco. Nem é simplesmente um apelo à caridade, porque implica, ainda que imprecisamente, que algumas reivindicações possam ter mérito. O conceito de justiça social não implica que exista algo como o destino comum da humanidade em que todos participam, mas sugere que o conceito de humanidade faz sentido — não tanto como uma categoria zoológica, mas como uma categoria moral.

Sem o mercado, a economia entraria em colapso (de fato, no “socialismo real” não há economia, somente política econômica). Mas também é amplamente reconhecido que o mercado não resolve automaticamente todos os problemas humanos prementes. O conceito de justiça social é necessário para justificar a crença de que existe uma “humanidade” e que devemos olhar para outros indivíduos como pertencentes a essa coletividade, para com a qual temos certos deveres morais.

O socialismo como filosofia social ou moral foi baseado no ideal da fraternidade humana, que nunca pode ser implementado por meios institucionais. Nunca houve, e nunca haverá, um meio institucional de tornar as pessoas irmãs. A fraternidade sob compulsão é a ideia mais maligna concebida nos tempos modernos; é um caminho perfeito para a tirania totalitária. O socialismo, nesse sentido, equivale a um reino de mentiras. Isso não é razão, no entanto, para acabar com a ideia da fraternidade humana. Se não é algo que pode ser efetivamente alcançado por meio da engenharia social, é útil como uma declaração de objetivos. A ideia socialista está morta como o projeto de uma “sociedade alternativa”. Mas como uma declaração de solidariedade com os oprimidos e desfavorecidos, como motivação para se opor ao darwinismo social, como uma luz que mantém diante de nossos olhos algo maior que competição e ganância. Por todas essas razões, o socialismo, o ideal e não o sistema, ainda tem seus usos.

Leszek Kolakowski. What Is Left of Socialism. First Things, 2002.Disponível em: <https://www.firstthings.com/article/2002/10/what-is-left-of-socialism>

MENSAGEM DA EQUIPE Seu apoio é mais importante do que nunca.

Desde 2014 o Contra os Acadêmicos trabalha para divulgar a boa filosofia e incentivar a autoeducação. Apoiando nosso projeto, você assegura a continuidade do nosso trabalho.

Foto do Biografado
Leszek Kolakowski

foi um eminente filósofo e historiador polonês. Foi mais conhecido por suas análises críticas do marxismo, particularmente por sua famosa obra histórica em três volumes, As principais correntes do marxismo.


Comentários


    Não há comentários nessa publicação.