O medo e a angústia em Heidegger

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Por Valéria Campelo
23 de janeiro de 2024

Sobre o medo - Parte I

Recentemente, notei que se tornou muito difícil para mim tomar um banho de mar tranquilo. Ao entrar na água, o pavor de sofrer um ataque de tubarão me toma completamente a mente e o corpo, ao ponto de me deixar paralisada. O mais intrigante é que, embora eu tenha nascido e crescido em uma ilha, isto é, rodeada pelo mar, jamais vi um tubarão vivo de perto nem tive notícia de qualquer ataque por lá. Assim, nenhum evento traumático relacionado a esses animais jamais me ocorreu, fazendo deste medo recente um evento aparentemente injustificável.

Naturalmente, essa descoberta pessoal me despertou o interesse por desvendar o “o quê” e as causas desse problema. Para isso, recorri à literatura que me foi mais acessível, partindo de uma perspectiva filosófica-teórica para uma visão psicológica-prática. Esta reflexão, portanto, tem como objetivo explicar o que é o medo, por que o sentimos e como vencê-lo, e será apresentada em três partes, sendo esta a primeira.

Pois bem, podemos dizer que o medo é uma das nossas emoções mais básicas, estritamente associada ao nosso senso de autoproteção e sobrevivência. O corpo humano reage instintivamente ao perigo, à aparência do perigo ou simplesmente à crença do perigo, levando-nos em direção à fuga.

Fugir, afastar-se, correr para longe: “é especialmente daquilo de que foge que a presença corre atrás”. Encontrei em Heidegger a resposta mais próxima sobre o objetivo fundamental do medo: a ação. Não posso me apresentar como uma pessoa competente para destrinchar a filosofia heideggeriana, já que nunca me dediquei a estudar profundamente a obra do filósofo alemão. Limitarei-me, portanto, a resumir o básico de suas lições que nos podem ser úteis aqui, e que estão concentradas no capítulo sexto da sua obra Ser e Tempo.

Sabe-se que a preocupação mais profunda de Heidegger não se concentrou na existência em si, mas no ser, mais especificamente no esquecimento do ser. Para ele, o homem cotidiano (do século XX) se mantinha numa situação de encobrimento do seu ser, por isso possuía uma compreensão equivocada da sua própria existência. E essa tendência ao encobrimento repousa, para Heidegger, na tradição filosófica clássica, que levantou pela primeira vez, com os gregos, a questão do ser, mas logo em seguida a esqueceu, dedicando-se a afirmá-la somente a partir do ser enquanto ente e não do ser enquanto tal. Isso o levará, não surpreendentemente, a encontrar na superação da tradição filosófica clássica uma solução para o homem moderno.

Todo esse problema, na visão heideggeriana, gira em torno do conceito de Dasein (o ser-aí ou o ser-no-mundo). O Dasein, normalmente traduzido para o português como “presença”, é aquilo que confere ao mundo o caráter de mundo, e aqui o mundo tem uma definição diferente da concepção moderna estabelecida em Descartes. Assim, o interessado em se aprofundar nessa problemática deverá se dedicar à obra do autor, com especial atenção para o seu Ser e Tempo. E, claro, temos uma lista de leitura para ajudá-lo nisso. Mas, se o leitor teve pouco ou nenhum contato com a filosofia heideggeriana até então e está em busca de uma “luz inicial”, deixarei ao final dois artigos que também me foram úteis e podem servir para tirá-lo da total obscuridade.

Ao se concentrar em explicar os aspectos existenciais que constituem o Dasein como ser no mundo, Heidegger se viu diante da questão existencial fundamental, isto é, qual é, afinal, o ser da totalidade do todo estrutural, o traço constitutivo da existência do Dasein em que reside a totalidade do ser da existência humana, em outras palavras, a própria essência humana. E ele encontrará esse traço totalizante que define a essência do ser humano justamente no conceito de angústia, buscando o nexo ontológico entre angústia e medo, admitindo que entre ambos existe um parentesco fenomenal, por isso aparecem, na maior parte das vezes, inseparáveis um do outro.

Essa distinção que Heidegger faz entre angústia e medo levou ao topo a minha suspeita de que o meu medo de tubarões tem muito pouco a ver com... tubarões. Veja bem, Heidegger diz que, ao contrário do medo, a angústia não vê um “aqui” e um “ali” determinados, de onde o ameaçador se aproxima. É justamente em o ameaçador não se encontrar em lugar nenhum que se caracteriza a angústia. Ela não sabe o que é aquilo com que se angustia. No entanto, “em lugar nenhum” não significa um nada meramente negativo: “o ameaçador dispõe da possibilidade de não se aproximar a partir de uma direção determinada, situada na proximidade, e isso porque ele já está sempre 'por aí', embora em lugar nenhum. Está tão próximo que sufoca a respiração e, no entanto, encontra-se em lugar nenhum”.

O que Heidegger parece estar descrevendo vai muito além da situação em que uma pessoa teme ser atacada por tubarões, morrer afogada ou viajar de avião; é um estado diante do mundo ou com o mundo, perante o qual os tubarões, a água e os aviões estão aí, senão como figuras quase irrelevantes, como representação daquilo que se verdadeiramente teme.

Aquilo de que se tem medo é sempre um ente intramundano que, advindo de determinada região, torna-se, de maneira ameaçadora, cada vez mais próximo, diz o autor alemão. Medo é a angústia imprópria, entregue à decadência do “mundo” e, como tal, angústia nela mesma velada. Na angústia se está “estranho”. Estranheza significa “não se sentir em casa”, não estar “familiarizado com...”. O não sentir-se em casa deve ser compreendido aqui, essencialmente e ontologicamente, como o fenômeno mais originário.

A angústia para Heidegger tem um quê existencial essencialmente humano. Ela é mais que um fenômeno psicológico e ôntico; ela tem uma dimensão ontológica, pois nos remete à totalidade da existência como ser-no-mundo. Só o homem se angustia, só o homem existe e só o homem pode ter uma compreensão do ser. A diferença entre Heidegger e autores como Kierkegaard e Pascal vai residir no fato de que, nestes, a angústia revela o nosso ser finito, o nada de nossa existência diante da infinitude de Deus, do caráter eterno de Deus, enquanto Heidegger conceberá a angústia apenas como fenômeno existencial da finitude do homem.

“É na angústia que a liberdade de ser para o poder-ser mais próprio... mostra-se numa concreção originária e elementar.”

O filósofo alemão descreve o sentimento de apavoramento de que falava Pascal como o sentimento de angústia, e sugere que a angústia é fundamental para que se alcance a verdade. Pois a busca da verdade não deve ser estática, passiva, contemplativa, mas movimentada pela ação; a ação de ir vivenciar o Nada, o desconhecido, o medo. O medo, assim, impele o homem a abandonar a passividade e se abrir para o desconhecido e obscuro, lutando contra seus instintos mais elementares.

Entendo que, para Heidegger, o medo não é algo a ser evitado, mas buscado no nosso mais profundo ser. O obscuro, o desconhecido, o temido, é onde propriamente encontramos a nossa essência como seres humanos. Somente nos abrindo em direção ao medo conseguiremos de fato nos conhecer e superar a nós mesmos. Esta pode ser, talvez, uma diferenciação própria do Dasein, uma capacidade do ser que reside não apenas em estar no mundo, mas de ser-no-mundo, de ser envolvido no mundo, compreendido no mundo. E o medo da morte encontra aqui uma posição especial, pois nos coloca de face, ou com a eternidade ou com a total falta de sentido, o que, por sua vez, foi demonstrado por Pascal.

Pois bem, para os interessados na visão de Kierkgaard sobre a angústia, recomendamos a leitura da sua obra “O Conceito de Angústia”, lembrando que também temos uma lista de leitura do autor. E considerando a grande demanda de perguntas que recebemos, a maioria relacionadas ao "medo da morte", a segunda parte desta reflexão trará a visão de Pascal sobre a importância de “antecipar a morte” e de investigar a natureza mortal ou imortal da alma. Na terceira parte traremos conceitos e conselhos práticos sobre o medo e como dominá-lo, inspirados numa abordagem menos dialética e mais psicológica sobre o tema.

Leia mais:

A Angústia, o Nada e a Morte em Heidegger

A Metafísica, o Nada e o Medo em Heidegger

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Valéria Campelo

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Maranhão. Redatora, tradutora, advogada e "ademira" do CoA.


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