Nietzsche por Josiah Royce

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Traduzido por Valéria Campelo
07 de junho de 2022

Este ensaio sobre Nietzsche foi achado recentemente entre os trabalhos posteriores do Professor Royce. Talvez pareça estranho para alguns que o autor de The Duties of Americans in the Present War e The Hope of the Great Community tenha encontrado tanto de interessante e de sã doutrina — “temas para o fortalecimento dos corações” — no filósofo agora reivindicado como profeta e oráculo pela Alemanha moderna. O que se pode dizer é que a Alemanha moderna, e não Nietzsche, está em falta. A tese do professor Royce é que Nietzsche deve ser entendido como profeta da alma, o intérprete de um ideal. A revolta por ele pregada não é uma revolta contra pessoas, mas contra o eu, contra o eu estrito, vulgar ou meramente habitual, ante os interesses de um eu ideal. E, de certa forma, ele diz que a estreita Weltpolitik da Alemanha moderna é a antítese da filosofia de Nietzsche. Pois toda política é relativa a um mundo estereotipado, e com esse mundo Nietzsche não tem nada que ver — “Tudo isso é pobreza e bem-estar miserável” — e o momento que ele exalta é o momento “em que não apenas vossa felicidade,  mas vossa razão e vossa virtude tornam-se vossa aversão”. [W. FERGUS KERNAN].

NIETZSCHE

Josiah Royce, 1917

I

Para muitos de seus leitores, Nietzsche é simplesmente um escritor de aforismos que expressam seus incontáveis estados de espírito. Deste ponto de vista, ele é um cético frente a todas as verdades universais. Em algumas ocasiões, como suas próprias palavras indicam, ele duvida completamente do valor da verdade. A vida é experiência ou atividade. O homem vive para se expressar, não para se conformar com qualquer coisa além de si mesmo. De fato, há expressões de Nietzsche que se manifestam nitidamente neste espírito. Mas para outros de seus leitores e comentaristas, Nietzsche é o expositor de um sistema. A dificuldade de sustentar esta tese está na dificuldade de extrair de seus aforismos qualquer doutrina inteiramente consistente. Consequentemente, aqueles que vão a Nietzsche em busca de um pensamento definitivo divergem muito em sua interpretação do que é fundamental para o seu pensamento.

A liberdade do escritor de aforismos não só é perigosa em si mesma, mas enganosa para o leitor que está em busca de uma doutrina definitiva que possa reformular ou aplicar. Nós, na América, fomos de certo modo treinados para lidar com problemas como este com nosso Emerson e nosso Walt Whitman. Emerson, em um determinado momento, influenciou Nietzsche profundamente. Com Walt Whitman não há poucos sinais de ideal e doutrina em comum. Outrossim, como Emerson e Walt Whitman, Nietzsche se sente perfeitamente livre para seguir a dialética de seu próprio desenvolvimento intelectual para contradizer a si mesmo, ou, ecoando Walt Whitman, para conter multidões.

No outro lado, há aqueles que interpretam Nietzsche de forma equivocada, considerando como motivação principal de seus ensinamentos o sensualismo, ou o amor à autoindulgência, ou o orgulho, ou qualquer forma de abjeção meramente egocêntrica. Ele é verdadeiramente um individualista. Seu ideal de vida pertence às diversas formas de titanismo ético conhecidas. Para julgá-lo com justiça você deve ter em mente seu Byron ou seu Goethe, ou qualquer outro dos numerosos escritores que expressaram o propósito da vida à luz do conflito entre o indivíduo livre e o mundo da convenção, da tradição ou do destino. Fausto, Caim, Manfred e os outros heróis do individualismo na literatura dos ideais devem acender primeiro à mente, para que se possa distinguir a que vasta constelação pertence esta estrela de Nietzsche; embora se possa errar, e seriamente errar, comparando-se o problema de Nietzsche àqueles que tais nomes sugerem. O interesse no homem reside no fato de que ele não é somente um individualista, mas um individualista muito original, acrescentando às formas consagradas de ideal titânico uma outra distintamente nova.

A motivação principal de Nietzsche parece-me ser esta. É claro para ele que o problema moral diz respeito à perfeição, não da sociedade, não das massas, mas do indivíduo superior. E até agora ele permanece efetivamente onde os valores da revolta individualista são mais frequentemente suscitados. Mas Nietzsche difere dos demais individualistas porque o grande objeto para o qual se dirige a sua luta é a descoberta do que é e o que significa a sua própria individualidade. Um Titã da estirpe de Prometeu de Goethe ou de Shelley proclama seu direito de ser livre de Zeus e de todos os outros poderes. Neste caso, todavia, Prometeu já sabe quem ele é e o que ele quer. Mas o problema de Nietzsche é, acima e tudo, o problema “Quem sou eu?” e “O que eu quero?”. E para ele é claramente necessário um esforço extenuante para solucionar este problema. Para sua consciência aristocrática, os homens comuns são terminantemente incapazes de levantar ou apreciar esta questão. Sua afirmação do direito do indivíduo de ser livre de todas as restrições externas é a ardente revolta egoísta contra o que quer que o impeça em seu objetivo. Ele não será interrompido pelo universo no objetivo — seu objetivo de vida — de descobrir o que sua própria vida significa para ele mesmo. Ele sabe que a sua vontade própria é basicamente o que chama de vontade de poder. Em algumas ocasiões ele não hesita em usar esse poder para esmagar, pelo menos no ideal, quem quer que o atrapalhe em sua empreitada. Mas o problema sobre o qual agoniza é o problema interior. O que essa vontade que busca o poder deseja genuinamente? Que poder é digno de ser meu?

O desprezo de Nietzsche pela moralidade convencional é, portanto, para ser compreendido precisamente como um ódio ao vazio de espírito, à submissão e, como ele às vezes acrescenta, à perfídia que procura evitar o conflito para fugir do grande objetivo da vida, e para usar as artimanhas morais da piedade e da bondade humana como um meio para desarmar os mais fortes e nivelar a vida ao ordinário. Mas é injusto interpretar o austero, o impiedoso, os elementos rígidos da doutrina ética de Nietzsche como a expressão de seu interesse central. Se ele é impiedoso, é-o, sobretudo, para consigo mesmo. Se faz luz do sofrimento humano, é sobretudo de seu próprio sofrimento que o faz. Ao buscar a autoexpressão, o domínio, o poder, busca algo essencialmente interior, perfeitamente coerente com a máxima sensibilidade ao pathos da vida e às necessidades da humanidade. Se Nietzsche sacrificaria vidas e o interesse humano comum à individualidade superior, é o seu primeiro propósito apelar aos homens individuais enquanto se sacrificam a si mesmos a essa individualidade. No estimado discurso introdutório de Zaratustra ao povo, essa visão do ideal é expressa de forma clássica.

Que de melhor podeis experimentar? Esta é a hora do grande desprezo. A hora em que não só vossa felicidade, mas vossa razão e vossa virtude se tornam a vossa aversão. A hora em que dizeis: “Que vale a minha felicidade?”. A hora em que dizeis: “Que vale minha razão”? Ansiais pelo conhecimento como um leão pela sua preza? Pobreza e bem-estar miserável. A hora em que devais dizer: Que vale a minha virtude? Ela ainda não me espancou em fúria. Como estou cansado de meu bem e de meu mal! Tudo isto é pobreza e bem-estar miserável. A hora em que devais dizer: Que vale minha justiça? Não me sinto a chama e o azeite. Mas o justo é a chama e o azeite. A hora em que devais dizer: “Que vale minha piedade”? Não é digna a cruz em que está sendo pregado aquele que ama os homens? Mas minha piedade não é crucificação. Já falastes assim? Alguma vez lamentastes assim? Ai de mim! Oxalá eu vos tivesse ouvido gritar assim! Não o vosso pecado, mas a vossa moderação ecoando até o céu.

Neste sentido, a doutrina de Nietzsche não é, sem dúvidas, um mero individualismo. Mesmo contra sua vontade, sua doutrina logo que articulada possui a universalidade de um imperativo categórico kantiano. Nada é digno de expressão, exceto a individualidade ideal. Portanto, a primeira tarefa de todo ser humano é, com efeito, revoltar-se contra a tradição, mas revoltar-se ainda mais contra sua própria pequenez e mesquinhez, e preparar-se para um sacrifício daquilo que é mais caro ao seu sentimento, a fim de que ele possa, assim, ganhar, através de árduo esforço, a descoberta do que esse indivíduo superior ideal significa.

É à luz destas considerações que conseguimos obter a perspectiva mais genérica da doutrina ética de Nietzsche. Os valores da vida são valores interiores. Em seu coração estão as questões de sua própria vida. Quem quer que lhe tenha infligido a lei externa degradou sua individualidade moral. Se aceitaste esta lei apenas como ela te chegou, e porque te chegou, és um dos escravos. És o mero material a ser usado no processo de crescimento superior da humanidade. E na medida em que estás contente com a tua sorte, ou disposto a permanecer escravo do teu destino ético e da tua tradição religiosa, a moralidade de Nietzsche trata-te com desprezo aristocrático.

Mas se o seu apelo te desperta, então és um dos que podem participar na tarefa de buscar a individualidade superior. Assim, torna-te consciente de que a tua vontade é a vontade de poder. Mas o poder que desejas não é mero despotismo terreno. É autocontrole. Não possuis este poder a menos que sejas capaz de suportar qualquer grau de sofrimento e sacrifício para descobrir teu significado e tua individualidade. Ai daqueles que se encontram nesta nova Sião! A virtude de Nietzsche tem pelo menos isto em comum com a caridade cristã, que sofre por muito tempo, mesmo que pareça um pouco indelicada. És pouco generoso, mas menos ainda poupas o que é vulgar em ti mesmo. “Fizestes o vosso caminho de verme para homem, e bem dentro de vós ainda sois verme. Antes éreis macacos; mesmo agora o homem é um macaco em um grau mais elevado que qualquer macaco. Vede, eu vos ensino além do homem”.

II

De todos os escritos de Nietzsche, o livro chamado Assim Falou Zaratustra é certamente o mais lido, embora também, em alguns aspectos, seja o mais misterioso e o mais carente de comentário. A escolha de Nietzsche de um nome para seu herói ideal nada tem a ver com o esforço de parafrasear ou imitar os ensinamentos ou a personalidade do Zoroastro Persa, cujo nome é assim empregado. Zaratustra tem em comum com o vidente persa a tendência de pensar a sua doutrina em solidão. O Zoroastro original fez uso notório do contraste fundamental entre um princípio bom e um princípio mau. O Zoroastro de Nietzsche supera em um nível elevado as próprias oposições das quais dependia a doutrina original do persa. Estas considerações, juntamente com um bom número de associações orientais e o desejo geral de retratar a carreira do fundador de uma nova fé, são responsáveis pela escolha do nome do herói. Zaratustra é em parte um Nietzsche idealizado, em parte o tipo de herói cuja existência deve ser concebida como uma possibilidade futura obscura, para a qual a humanidade de hoje não está dignamente preparada. Os longos anos de solidão separam-no da espécie humana. A comunhão com os segredos da natureza e com o seu próprio coração concedeu-lhe uma sabedoria superior. A parte negativa desta sabedoria está resumida no primeiro artigo de seu credo, a saber, que Deus está morto; e que o homem tem de viver na terra e sob condições terrenas sem qualquer esperança com a qual um sobrenaturalismo mais antigo havia rodeado sua vida. O aspecto positivo deste credo é resumido, em primeiro lugar, na doutrina do Super-homem.

O super-homem é definido algumas vezes como um ser inevitável, um produto como a doutrina da evolução exige que nos antecipemos. Ele não virá à Terra como resultado de qualquer milagre. Ele estará para o homem tal como o homem está para os símios. A insensatez de nossa existência humana atual é justificável apenas como um estágio de transição no caminho para o super-homem. “Homem”, diz Zaratustra, “é algo que será ultrapassado. O que fizestes para ultrapassá-lo?”.

Nietzsche, no entanto, não pode dar uma prova científica de que o super-­homem virá. Nem como cético é de todo capaz de manter estática a probabilidade teórica de qualquer resultado de um processo evolutivo em vez do outro. O super-homem aparece, frequentemente, simplesmente como aquilo que ele é, ou seja, um ideal, a visão do indivíduo que deve ser. Que ele virá a existir, não sabemos. Mas dirão as nossas vontades: que ele venha a existir. Por este ideal, damos sentido à nossa vida. E porque o super-homem é um ideal e não um produto definitivo de um processo da natureza, o sentido que este ideal dá às nossas vidas procede da imitação deste conceito deliberadamente criado do indivíduo perfeito, e ainda mais de uma determinação vigorosa para trabalhar no objetivo de criar o conceito.

O seguidor de Zaratustra, portanto, não segue nenhum evangelho definitivo. Ele deve aprender o sonho e sua interpretação. Ou, ao contrário, deve aprender, por assim dizer, a arte de sonhar heroico, e a arte de viver além de cada sonho para um ideal ainda mais elevado. Descontente é assim acompanhar até o fim a vida e a doutrina de Zaratustra. Mas não é um descontentamento monótono. Embora envolva muito sofrimento, é um descontentamento glorioso e, mormente, um descontentamento autoconfiante. No mundo heraclitano da individualidade superior, onde tudo está em fluxo, parece não haver, a princípio, nada de permanente exceto a lei da procura.

Para além da procura, Zaratustra deseja precipuamente definir a lei da vida em termos que não devem estar sujeitos ao fluxo infinito. Como Heráclito, Zaratustra espera encontrar o que é permanente nesta busca pela individualidade superior, sob a forma de uma lei absoluta, à qual todas as mudanças aparentemente intermináveis do indivíduo na busca do seu ideal deverão se sujeitar. E a definição desta lei absoluta ocorre-lhe em termos que adquirirem um estranho e decididamente fantástico significado na mente de Nietzsche. Havia uma hipótese com a qual Nietzsche jogou durante anos e que também possuía notavelmente uma tendência um tanto patológica para atormentar sua imaginação. Esta era a hipótese, bem conhecida da imaginação humana desde a época de Pitágoras, da tendência fatal do mundo para uma repetição precisa dos seus conflitos, ideais, processos evolutivos e acontecimentos isolados após os longos ciclos de todas as suas mudanças. Esta noção de que inúmeras vezes os acontecimentos se repetem ocorreu aos pitagóricos no pensamento grego antigo, por razões que provavelmente estavam ligadas a observações astronômicas e especulações astrológicas. Essa noção tornou-se uma parte importante da própria lixiviação de Nietzsche e de Zaratustra, devido às suas relações — nada superficiais ou insignificantes — com a sua concepção do problema ético. Raramente uma aberração puramente fantasiosa da imaginação encontrou-se em uma relação mais interessante com um problema profundo da formulação de um ideal ético.

Zaratustra deve prontamente seguir e definir o ideal. O ideal é o do indivíduo perfeito. O indivíduo perfeito deve ser autocontido, uma lei para si mesmo, não seguidor de Deus ou do homem, não reconhecedor de qualquer regra que lhe seja imposta externamente. Mas o indivíduo perfeito não deve ser, em nenhum sentido, um caçador de autoindulgência; sua existência é por completo árdua. Cada ato seu é uma transição. Ele não se importa se tal ato prova ser até mesmo uma autodestruição, contanto que escape de ideais inferiores. A única coisa que ele não pode tolerar é a banalidade, a vulgaridade, ou o mero contentamento com as convenções, com as tradições, com as circunstâncias. Mas Nietzsche está igualmente consciente, assim como Zaratustra, de que a vida superior deve ser não apenas um esforço, mas uma experiência; não apenas empenho, mas realização; não apenas uma agitação espiritual infinita, mas um gozo da perfeição; não apenas um heroísmo, mas uma autopossessão. Pois não sendo a vida superior a todas estas coisas, em que consistiria o sentido da luta, porquanto nem as alegrias celestes, nem a vontade dos deuses, nem o Nirvana, nem a visão ascética podem ser admitidos na doutrina para dar sentido à vida? Se este fluxo infinito não encontra seu sentido além de si mesmo, do céu, ou daquele serviço ignóbil à humanidade que Zaratustra condena, e, no entanto, se em cada etapa do processo não se encontra senão uma passagem para a próxima etapa, qual o significado de todo o processo?

A resposta para esta pergunta é dada através da hipótese do eterno retorno de cada acontecimento no mundo, a qual em detalhes afirma que a vida em sua totalidade, com todas as suas lutas expressas, com todo o seu destino já elaborado, com toda a sua individualidade finalmente encarnada, está presente, não apenas uma, mas infinitas vezes no curso do tempo infinito. A ideia assim sugerida, mística tal como é essencialmente, é a mesma de Nietzsche em seus últimos dias para o que a consciência religiosa tem buscado na concepção de um plano divino do universo. A concepção é mística pois Nietzsche só pode alcançá-la pela intuição e só pode oferecer a mais insuficiente razão para sua crença. É-lhe complexa em parte pois não é convencional, não é um artigo de uma fé tradicional e parece consistente com uma visão puramente naturalista das coisas e com a existência de um mundo regido por uma lei estreita. É-lhe reconfortante tanto quanto terrível. Por um lado, chega-lhe com uma insistência patológica e apega-se à sua atitude desconfiada diante da vida. É concebida como uma necessidade cega que se submete à ordem do mundo. Por outro lado, o mesmo pensamento há muito tempo recorrente torna-se por fim aprazível. Nietzsche temia-o, pois parecia tornar todo esforço inútil. Aceita-o no fim, pois de alguma forma ele nos assegura que todos os problemas da vida sempre foram e são resolvidos infinitamente até hoje.

Na incessante mudança a que tanto a experiência quanto a autocrítica nos expõem, procuramos em vão um estado final à luz do qual a vida possa existir e se justificar. O pensamento de Nietzsche é que a justificação da vida deve ser a vida em sua totalidade, pois a vida é em toda parte uma passagem de menos para mais, ou de problema para solução, ou de velho para novo. Em todo o círculo da vida do mundo, dado que o círculo é fechado, toda possível transição de um inferior para um superior, todo possível enfrentamento de um problema, toda possível transição do velho para o novo já deve ter sido realizada.

Na misteriosa conversa com seu próprio espírito, a qual Zaratustra descreve como um encontro com um certo anão onde se personificam toda sua fraqueza e tentação, o herói ideal de Nietzsche narra assim sua visão do significado do eterno retorno. O anão da história, o eu mais básico de Zaratustra, desprezando sua aspiração, sussurra. Tu, pedra de sabedoria, atiras-te ao alto, mas toda pedra atirada deve cair. “Condenado a ti mesmo e ao teu próprio apedrejamento, ó Zaratustra, de longe tu mesmo atiraste a pedra, mas ela cairá de novo sobre ti”. Isto é, em substância, este idealismo inquieto, esta busca da individualidade absoluta é autodestrutiva. A tarefa tem sempre de recomeçar. Não se encontra o eu completo. E no mundo de Zaratustra não há Deus em quem o eu deva encontrar seu objetivo. A busca de Sísifo pelo perfeito é essencialmente vã. E assim o anão tentador expressa o que é, com efeito, o problema óbvio de todo individualismo desenfreado.

“Mas”, diz-nos Zaratustra, “uma coisa está dentro de mim — chamo-lhe coragem. Até agora ela tem aniquilado todo o meu mau humor. Esta coragem finalmente fez-me parar e dizer: “Anão, tu ou eu”; pois a coragem é o melhor assassino, a coragem que ataca. Pois em cada ataque soa a música agitadora da batalha. — “Alto, anão” eu vos disse, “Eu sou o mais forte de nós dois”. Não conheceis meu pensamento abissal. Não podíeis suportá-lo”. Agora aconteceu que há uma porta de entrada onde devemos parar. “Olhai para este portal, anão”, eu vos disse. “Há duas faces; duas estradas cá se encontram, cujos fins ninguém jamais alcançou. Cá esta longa faixa estende-se por uma eternidade. Lá outra longa faixa é outra eternidade. Eles se contradizem, estes caminhos (o passado e o futuro), e aqui, nesta porta, convergem-se. O nome da porta está escrito acima — Momento Presente. Mas quem quer que vá por qualquer um deles e cada vez mais longe e cada vez mais remoto, acreditai, anão, que estes caminhos se contradizem eternamente? — Deste portal chamado Momento uma longa via eterna corre para trás. Atrás de nós jaz uma eternidade. Não deve tudo o que pode passar já ter passado por esta faixa? Não deve o que pode acontecer já ter acontecido, já ter sido realizado, já ter passado por aqui? E quando tudo já existiu, que pensais tu, ó anão, deste momento? Não deve este portal já ter estado lá? E não estão todas as coisas tão estreitamente ligadas entre si que este momento atrai a si todas as coisas vindouras, e por isso não se atrai também a si mesmo? O que pode então acontecer neste longo caminho adiante? Deve acontecer novamente. E esta aranha lenta que se arrasta sob o luar, e este próprio luar, e tu e eu na porta de entrada sussurrando juntos sobre as coisas eternas, não teremos nós todos já existido? E não devemos voltar e percorrer nosso curso naquela outra estrada lá fora diante de nós, naquela estrada há muito assombrada?”

O pensamento assim expressado é expressado de forma ambígua em relação ao seu significado para o orador. A visão da conversa com o anão é ao mesmo tempo de terror e de coragem. De forma particular, Zaratustra opõe ao pensamento de que tudo é vaidade porque nada pode ser realizado o outro pensamento de que tudo que é possível já foi realizado inúmeras vezes. Mas neste pensamento também há vaidade. A alma que se esforça exige novidade. O indivíduo estremece diante deste abismo do destino que se escancara aos seus pés. No entanto, como diz Nietzsche insistentemente, é tarefa do homem estar à beira dos abismos e aprender a não temê-los. A reação desse terror ao modo de vida perseguido ocorre ao lembra-se de que o círculo fechado da vida eterna é de esforço e que, portanto, o próprio fechamento do círculo envolve a realização do esforço. O andarilho no deserto da vida não enxerga o brilho de uma cidade eterna além de si mesmo. A sua casa é peregrinar. Ele não possui o sentimentalismo romântico, mas certamente possui a profunda inquietação do herói da canção de Schubert, Der Wanderer. Nietzsche fá-lo-á aprender a coragem e a resistência absoluta em sua peregrinação. E a coragem é resultado da própria face desse pensamento abismal, em que a peregrinação como um todo é a expressão completa de uma inquietação sem fim, mas ainda em cada um dos seus ciclos perfeitamente autoexpressivos, a vida.

Com este pensamento, Nietzsche é doravante capaz de falar da eternidade como seu deleite e seu objetivo. O problema mais profundo da vida torna-se a obtenção de coragem suficiente para suportar as dificuldades no ciclo do mundo, sabendo que apenas com esta série de lutas a vida plena deve ser expressada. Se este momento tem seu lugar definitivo no ciclo que expressa todo o sentido da vida, então pode-se voltar por si mesmo a um deleite no presente, que conciliará a força do ideal de Nietzsche com a alegria, com a ingenuidade em aceitar a experiência, que é também um dos seus motivos essenciais. A alegria da vida retorna ao convencer-se de que o objetivo da vida não é algo totalmente indeterminado, mas absolutamente predeterminado.

A lição da experiência também tem para Nietzsche o seu aspecto geral. O seu ensinamento constante é, se possuis algum medo insistente, conquista-o enfrentando-o e pensando nele. Se o destino te assusta, faça com que o que te parece destino pareça-te também teu próprio feito. Se possuis algum pensamento maligno, faça-o parte de teu eu livre, expressando definitivamente todo o seu significado. Não suprimas tuas fraquezas. Constrói tua força sobre elas. Ela se constrói com o doloroso, com esse elemento maligno da tua natureza. Ela deve ser tomada ao serviço da perfeição, mesmo sendo destemidamente aceita, trabalhada e então conquistada.

III

As duas doutrinas, a do super-homem e a do eterno retorno, constituem o conteúdo central do credo de Zaratustra. Não sabes qual será o propósito concreto na vida do super-homem se ele vier a existir, mas já começas a trabalhar tua vontade em sua busca. Ao tentar definir teu propósito, levantas toda a questão, tão fundamental na nossa vida atual, do significado e do propósito da existência individual. Nietzsche difere do tradicionalismo de todos os tipos e concorda, devo dizer, com o mais sublime idealismo, quando se recusa a aceitar seu indivíduo ético como algo cujo caráter é agora para nós homens predeterminado. Aqueles que dizem que o caráter ideal já fora encarnado, que o que eu devo ser é predeterminado pelo exemplo de algum preceptor ou mestre, não encontram apoio em Nietzsche. A este respeito, devo dizer, Nietzsche está de fato em sintonia com o próprio idealismo cuja expressão filosófica, já testada no pensamento alemão precedente, ele rejeitou ferozmente. Aqui reside seu mais estimado valor como crítico estimulante da vida; e esse valor, repito, alia-o a Emerson, a Walt Whitman e a outros apóstolos de uma liberdade superior e críticos de um ideal estereotipado. Para Nietzsche, não há um caminho de salvação que não o caminho de ser diferente de cada indivíduo e completo em si mesmo.

Não há dúvida que, do ponto de vista de um idealismo mais sistemático, Nietzsche parece falhar completamente em enxergar o caráter orgânico da verdadeira vida dos indivíduos cooperantes. O grande problema de reconciliar o indivíduo singular com a ordem do mundo simplesmente não é problema de Nietzsche. Não se deve procurá-lo para esclarecer este assunto. Nisso reside a sua limitação perfeitamente óbvia. Mas não há dúvida, do ponto de vista de qualquer idealismo mais profundo, que este grave problema só pode ser resolvido com base no conhecimento mais puro, precisamente aquele sobre o qual Nietzsche insiste — a saber, a singularidade da vida de cada indivíduo e a genuinidade do dever de cada alma de buscar seu próprio tipo de salvação. Que seu próprio tipo de salvação envolverá, por certo, uma cooperação superior com todas as outras individualidades, é de fato verdade, e é uma verdade que não se pode aprender com Nietzsche. Mas não me oponho ao músico por ser ele incapaz de esculpir-me estátuas ou construir-me catedrais. Nietzsche entende que a arte da vida é a luta, o esforço, a coragem e, incidentalmente, o deleite da experiência que permite à alma livre, em seus melhores momentos, ter prazer nos próprios deveres que seu ceticismo e sua autocrítica parecem tornar tão intermináveis, e de certa forma tão desesperançosos. Insatisfeita-te contigo mesmo, e, no entanto, afirma-te. Não acredita em nada e, ainda assim, tê coragem no meio das tuas próprias suspeitas, e cultiva tuas intuições, ainda que desconfie delas: estes são alguns dos preceitos de Nietzsche. E aquele que compreende o seu problema da individualidade haverá de agradecê-lo por eles.

À luz desta concepção essencialmente fluente do super-homem, muito do que é paradoxal na expressão de Nietzsche torna-se em geral inteligível. Ele notoriamente se autodenomina um imoralista. Mas por moralidade ele quer dizer moralidade convencional. E sua argumentação a este respeito não é, em princípio, diferente da conhecida argumentação de Kant, segundo a qual o que Kant chama de heteronomia é eticamente intolerável. O que poderei seguir senão a mim mesmo? O problema ético é descobrir qual é a minha vontade. Nietzsche, de fato, rejeita todo conceito estático no conteúdo do ideal. Qualquer credo definitivo quanto ao que um indivíduo deve ser de imediato desperta sua repugnância espiritual. Ele se levanta e se afasta muito antes de qualquer ideal desse tipo poder ser suficientemente expresso para ganhar sequer uma audiência justa. O que chamamos de agitação espiritual do eu, como Nietzsche o concebe, proíbe a aceitação de qualquer ideal estático.

Meu irmão, quando tens uma virtude, e ela é tua virtude, não a tens em comum com ninguém. Certamente, desejas chamá-la pelo nome, acariciá-la e divertir-te com ela. E eis que tens o seu nome em comum com o povo. Tornaste-te povo e rebanho com a tua virtude. Mais quente se o dissesses. Indizível e sem nome é o que faz a dor e a doçura da minha alma, e isso é a minha fome. Eu não a desejo como a lei de Deus. Eu não a desejo como estatuto e necessidade do homem. Ela não me indicará o caminho para outro mundo ou paraíso. É uma virtude terrena que eu amo. Outrora tivestes paixões e chamaste-lhes mal; agora só tens as tuas virtudes. Elas cresceram de tuas paixões. Pois através de ti o teu ideal mais elevado fora incutido nessas paixões e, a partir daí, tornaram-se tuas virtudes e teu deleite; e, embora fossem do tipo da cólera, ou da volúpia, ou da idolatria, ou da vingança, finalmente todas as tuas paixões se tornaram virtudes, e todos os teus demônios anjos... E a partir deste instante nada de mal nasce de ti, a menos que seja o mal que nasce da luta de tuas virtudes.

No Zaratustra do qual cito estas palavras, segue-se agora uma passagem característica relativa às lutas e à inveja recíproca das virtudes que foram assim caracterizadas. E o retrato do triunfo e da individualidade interior que acaba de ser sugerido é obscurecido pela observação de que cada estado relativo de perfeição interior é em nós, ao mesmo tempo, transitório, dialético e autodestrutivo. A conclusão imediata é: “O homem é algo que deve ser superado. Portanto, amai as vossas virtudes, pois delas devereis perecer”.

O outro e fantástico pensamento do eterno retorno ­— este que acabamos de expor — é, como se pode perceber, a contraparte e a derrota quase inevitável desta concepção da busca incessante pela individualidade. Rejeitando toda forma de absolutização, exceto aquela que lhe parece coerente com as leis necessárias da natureza e com o fluxo infinito das coisas, Nietzsche necessita ainda de uma pista de pouso no voo dos fenômenos de que fala Schiller, para pousar tanto quanto precise em algo eterno e divino, para dar significado à sua luta pela individualidade, como precisaria se fosse um crente devoto nas crenças tradicionais.

O pensamento de Nietzsche é, no entanto, muito mais profundo do que sua simples aparência sugere. Com efeito, um conceito de individualidade ética deve servir apenas para a busca incessante de objetivos na qual consiste toda vida extenuante. Também apenas para as nossas exigências deve haver um ideal definitivo, embora não se possa encontrar em nenhum lugar na série de fatos da vida a expressão deste ideal em uma forma estática. Esta deve ser também a consideração que tantas religiões têm negligenciado, ou seja, que o verdadeiro objetivo da vida é a vida inteira e não qualquer ponto em seu percurso — a superação dos defeitos pela sua inclusão numa vida enriquecida, e não a exterminação dos males da vida. A questão mais profunda de um idealismo ético é o problema de saber se a vida em qualquer sentido constitui um todo significante e se esta totalidade possui um caráter determinado e individual.

Agora Nietzsche está bem ciente deste problema. Ele não pode ser resolvido pela teoria de que existe, definitivamente, uma alma individual substancial com seu caráter estático permanente, a qual nossa vida ideal simplesmente retrata em atos sucessivos, nem ainda pela doutrina de que a lei moral é algo meramente estático ou abstratamente universal. A totalidade individual e significante da nossa vida deve depender de algo que não está neste momento completamente expresso, mas que, por outro lado, não é de modo algum uma substância estática, e sim algo que está neste momento em construção. Todo o sentido da vida se volta para a questão de saber se a nossa vida, em sua totalidade, constitui um drama. E, no mundo sem Deus de Nietzsche, da necessidade natural, o conceito de eterno retorno é o único meio pelo qual ele pode conceber esta unidade do plano da vida. Com isto em mente, ele pode tornar-se, segundo afirma, ansioso pela eternidade.

Se gosto do mar e de tudo que é do mar; e se eu lhe gosto mais quando me contradiz em fúria; se aquele desejo de descoberta está dentro de mim e conduz as velas à procura do que ainda não foi descoberto; se há gozo de marinheiro em meu gozo; se minha alegria sempre celebrou: “A praia se foi; agora minha última corrente se quebrou. O ilimitado ruge à minha volta. Longe o tempo e o espaço brilham diante de mim! Para cima e para frente, o meu coração!”. Oh, como eu poderia não estar ansioso pela eternidade e pelo anel dos aneis, o anel do eterno retorno?

IV

À medida que nos voltamos para as produções menos poéticas, nomeadamente a Genealogia da Moral e Além do Bem e do Mal, chegamos às obras que são facilmente incompreendidas se evidenciadas em sua expressão mais óbvia e paradoxal. A Genealogia da Moral tem sido absurdamente enfatizada em algumas das críticas mais populares e hostis transmitidas a Nietzsche. À luz dos seus interesses fundamentais no problema da gênese do indivíduo livre, os paradoxos desta obra tornam-se de fato suficientemente abrangentes. O seu propósito é libertar os homens da escravidão da moral meramente convencional. Este propósito deve ser alcançado através de uma interpretação psicológica da história da consciência moral. Cheio de excentricidades e paradoxos é este relato. Os paradoxos em questão não são de modo algum novidade na história do pensamento. Em parte, são os famigerados paradoxos dos Sofistas nos diálogos platônicos. Em parte, são comuns aos exploradores da fé religiosa sentimental em geral.

As distinções morais têm, de acordo com Nietzsche, uma dupla origem na história da mente humana. São distinções feitas pelos nobres, pelos fortes, os conscientemente superiores, os aristocráticos. Ou, por outro lado, elas arqueiam as distinções feitas pelos fracos, pelos temerosos, pelos escravos. As distinções da primeira classe não são elas próprias de nenhum modo estáticas, infalíveis ou necessariamente aceitáveis para Nietzsche. Mas o seu tipo, tal como aparecem na história do pensamento, é o mais elevado entre os dois tipos. Pois as almas nobres tornam-se autoconscientes em virtude da sua superioridade. A vida é, em todo lugar, a vontade de alcançar o poder. Os fortes sabem que o que desejam é bom e que podem alcançar esse bem, ao menos em alguma medida, pelo seu esforço. Adiante, cresce o desejo de elevar-se acima da massa. Pois, como se atingirá o mais alto, a menos que os superiores estejam prontos para se elevar? E como se deve conquistar o bem apenas alimentando os fracos? O homem forte pode ser, a sério, bondoso, cortês e humano. Mas o é porque esta é a sua força e a sua escolha, a sua maneira de encarnar sua vontade no mundo, e não porque os fracos o desejam. As almas mais fortes fazem, subsequentemente, a distinção entre o nobre e o vulgar, o bom e o desprezível. Sobre esta base surge a Moral de Herren. Opõe-se fortemente a ela a Moral de Sklaven, cujo marco histórico é o cristianismo.

Nietzsche transborda em paradoxos quando discute a fé que está mais próxima da sua juventude e que obviamente influenciou mais profundamente grande parte de sua sensibilidade. Os fracos não conseguem se expressar pelo seu próprio esforço. No curso da história, eles desenvolveram a arte de convencer os fortes, assim como a si próprios, de que a fraqueza em si é uma virtude, e que tudo o que os fracos necessitam deve ser-lhes concedido pelos fortes. O resultado dessa moralidade é a glorificação do vulgar, do estúpido, do vazio e do decadente.

A doutrina aqui brevemente discorrida ocupa na própria mente de Nietzsche um lugar que só pode ser compreendido à luz do caráter central e positivo do seu individualismo. Não há aqui uma avaliação historicamente correta do cristianismo; e grande parte da ofensiva sobre seus ensinamentos envolve muitas trivialidades do liberalismo negativo — trivialidades que somente o brilho da habilidade literária de Nietzsche e o discernimento realmente maravilhoso de muitos de seus comentários psicológicos podem tornar toleráveis a qualquer pessoa de fato habituada à verdadeira liberalidade do pensamento.

A valer, o próprio individualismo de Nietzsche teve seu lugar na história da doutrina cristã. Não se trata da superficialidade de uma grande parte do que se chama altruísmo, nem da perigosa tendência para o vulgar que uma moralidade cristã convencional tem frequentemente enredado. Mas ele está presente no ideal cristão original que não é de modo algum estranho ao espírito do Zaratustra de Nietzsche. No entanto, o valor de toda esta discussão, assim como de outra obra chamada O Anticristo, a qual Nietzsche escreveu pouco antes do seu colapso final, não reside de todo em seu valor como uma avaliação histórica justa da fé de qualquer pessoa, mas apenas em seu significado como uma série de ilustrações paradoxais do problema central de Nietzsche, o problema do eu individual perfeito.

A outra, e em alguns aspectos a mais bem organizada e significativa de suas expressões posteriores ao lado de Zaratustra, nomeadamente o Além do Bem e do Mal, contém a seguinte notável e deliberada declaração da visão de Nietzsche sobre a virtude em geral.

Nossas virtudes? É provável que também nós (os imoralistas) tenhamos nossas virtudes, mesmo que, como de imediato se compreende, não sejam aquelas virtudes bondosas e primitivas que honrávamos em nossos antepassados, embora mantendo-as à respeitosa distância. Nós europeus de amanhã, primogênitos do século vinte — com a nossa perigosa curiosidade, com nossa multiplicidade, com a nossa arte do fingimento, com nossa crueldade tenaz, e por assim dizer adoçada pelo espírito dos sentidos — se devemos propriamente possuir virtudes, temos apenas aquelas que podem entrar em melhor  acordo com nossas inclinações mais secretas e mais acariciadas, com as nossas mais urgentes necessidades, e andamos a procurá-las em nossos labirintos, nos quais como bem se sabe, emaranham-se muitas coisas e outras chegam a perder-se  inteiramente. E há algo mais nobre do que procurar as próprias virtudes? (...) Nós estamos unidos por ligações muito sólidas, a camisa de força do dever, e não podemos nos livrar dela e por isso somos também “homens do dever!” Algumas vezes, dançamos, também nós, em meio às nossas cadeias e espadas, frequentemente, isso é bem verdade, rangemos os dentes impacientes com a dureza de nossa sorte. Mas tanto quanto façamos, os imbecis e as aparências estão contra nós e dizem “eis os homens sem dever”: Teremos sempre contra nós os imbecis e a aparência!

Esforcei-me acima para dar algumas das impressões do sentido em que esses deveres podem existir para Nietzsche e da razão pela qual ele pode aparecer como um rebelde contra as convenções, como opositor da fé, como imoralista, como professor de paradoxos, como individualista austero e auto-afirmante. Em verdade, não é egoísmo em seu sentido mais estrito; certamente não é sensualismo. É ainda menos qualquer tipo de resultado supostamente científico do darwinismo que caracteriza Nietzsche. Ele não é um partidário da mera vontade própria. O seu ideal não é meramente o da força bruta.

Nem ainda é justo afirmar com o Dr. Tille, seu tradutor [para o inglês], que a perfeição fisiológica, ou o poder de sobreviver, é, em qualquer sentido para ele, a expressão do ideal. Ele proclama o significado da saúde, mas é no vigor saudável da vontade que ele está pensando, muito mais do que habilidade atlética ou qualquer caráter externamente visível. Seus paradoxos insistem constantemente na virtude do poder e na posse do poder como a soma da virtude, mas o poder em que está pensando é o poder interior. Ele despreza as virtudes comuns, mas essa é uma forma caprichosa de expressar seu amor pela perfeição absoluta. Ele não pode definir o que é sua perfeição absoluta, mas ninguém expressou melhor do que ele em tempos recentes o ideal da busca de uma consciência de perfeição. Ele glorifica o eu aristocrático; mas o eu ao qual se refere revela-se um eu invisível e ideal, tão invisível como o Senhor ressuscitado e ascendido da antiga fé; tão perfeito como sempre foi o Deus contra o qual Nietzsche se revoltou.

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Josiah Royce

foi um filósofo americano. Royce normalmente é visto sob influência tanto do pragmatismo de seus colegas William James e Charles Sanders Peirce quanto do idealismo absoluto de Hegel


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