A Semana de Arte Moderna de 1922 foi, sem dúvidas, um famosíssimo acontecimento do cenário cultural brasileiro e é até hoje celebrada. Essa fama, porém, é condizente com o legado que deixou? Na época, seus organizadores prometeram fazer uma perfeita demonstração do que havia de melhor em nosso meio com o intuito de marcar para sempre a cultura brasileira. Hoje, passados 100 anos dela, o livro “O que estou de 22”, esculpido a quatro mãos, buscou esmiuçar os acontecimentos desse evento realizado por Oswald e Mário de Andrade e pelos intelectuais que “gritavam em torno da semana ou de seus grupos satélites” – assim se expressa Ronald Robson, um dos autores e organizador desse conjunto de quatro ensaios.
Seja através de um simples olhar para sua capa, de uma rápida leitura do capítulo de apresentação ou do aprofundamento em seus ensaios, é possível perceber que o livro se faz bem claro, desde o início e em todas as suas partes, quanto à opinião de seus autores sobre o fenômeno artístico: a Semana de 22 foi, para eles, uma espécie de aberração histórico-cultural da qual nada – ou quase nada – pode-se aproveitar.
É uma visão comum, para não dizer unânime, que a chegada dos tempos modernos foi percebida pelos grandes pensadores e por muitos produtores culturais da época com um certo tom de desespero. Se há alguma dúvida disso, basta que se analise as obras feitas naquele período. O poema The waste land, de T.S Eliot, se mistura com Tempos modernos de Charlie Chaplin, em uma visão do homem sendo engolido, hora pela máquina, hora pela sensação de tristeza ao ver uma primavera não mais tão bela e fértil.
No Brasil porém, segundo observam os autores de O que restou de 22 – Ronald Robson, Emmanuel Santiago, Wladimir Saldanha e Jessé de A. Primo –, encontravam-se alguns escritores na contramão da história que viram na face da modernidade uma possibilidade de “descoberta da identidade nacional” – o que mais pareceu uma tentativa irrazoável de cravar os próprios nomes nos cânones da literatura e poesia brasileiras do que qualquer outra coisa.
A Semana de 22, assim como todo o modernismo brasileiro, portanto, apresenta algo de inerentemente confuso já em sua premissa. Como disse Jessé de Almeida Primo, “[o modernismo] não facilita nem a vida de seus detratores e, muito menos, a de seus defensores. Aqueles, aparentemente, não encontram algo coeso em que fundamentar suas diatribes; estes só encontram coesão no sobrenome ‘Andrade’, comum a Mário e a Oswald”. Comum também a Drummond, é verdade. Mas este, reforça o autor, só se junta àqueles com muito esforço. Feito disse Bruno Tolentino, em palestra também citada no livro: “que deve aos ruidosos heurecas dos andradóides aquele Drummond que é nosso único Andrade verdadeiramente grande?”.
O apontamento dessa falta de coesão na Semana de 22 foi justamente o que deu ao livro uma de suas principais contribuições no debate acerca desse fenômeno modernista no Brasil. Os autores não se contentaram apenas em mostrar o que houve de ruim nela, mas foram além e apontaram com maestria que não se pode tirar grande proveito nem mesmo das poucas coisas boas produzidas na época. Mário, Oswald e companhia quiseram fazer uma verdadeira revolução na cultura nacional sem nem se empenhar em saber se suas interpretações do Brasil eram de fato uma constatação, e não um projeto.
Para tornar essa ideia mais compreensível, é preciso entender que já havia, naquela altura, um modernismo brasileiro formando-se de maneira mais ou menos espontânea. A obra de Machado estava consolidada há pelo menos 20 anos – a qual, essa sim, daria o tom da escrita brasileira e sua real independência –, enquanto Lima Barreto, para um segundo exemplo, quando visitado por Oswald, lhe disse francamente que “não partilhava nada do projeto estético deles [dos modernistas de 22] e que não se manifestaria em sua defesa”. A Semana de arte moderna então não estava apenas deslocada do resto do mundo, mas completamente alheia à própria realidade brasileira. Esse modernismo artificial de 22 não poderia dar em outra coisa que não fosse algo próximo do nada. O seu erro fatal está estampado na frase de Schelling: “Tudo o que começa no mero pensamento só pode permanecer no mero pensamento, sem ir para além da ideia. Aquilo que quer alcançar a realidade deve começar com a realidade”.
É a partir desse ponto que o livro se completa, deslanchando suavemente nos ensaios de Emmanuel Santiago e Wladimir Saldanha. Ambos tratam da disrupção que a semana causou na poesia e literatura brasileira e de como a insistência nos ideais modernistas – que nada têm de tão bom assim a oferecer – nos deixou uma “herança de cacoetes”. Aqui, o livro nos proporciona uma estranha sensação de completude. Não é como se sem estes dois últimos ensaios faltasse uma ideia ainda a ser descrita, ou houvesse alguma ponta solta, mas é como se com eles o livro se encaixasse melhor na estranha ordem geométrica das coisas.
O que restou de 22 dá à nossa consciência entorpecida por um monólogo ideológico uma análise, à primeira vista estranha, sobre os acontecimentos da época, mas cuja compreensão desliza sob nossa mente e de maneira sorrateira toma conta dela, até que tudo o que lá está escrito se revela uma grande e imensa obviedade outrora sufocada. Lê-lo é indispensável para quem queira compreender essa anomalia brasileira que ironicamente se tornou uma Waste Land na tentativa de evitá-la.
– Trabalho de conclusão do curso “Prolegômenos da Escrita”
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