Por: Bruno Fontana
28/05/2022

A Consciência de Imortalidade
Resenha A Consciência de Imortalidade: Olavo de Carvalho
Lembrando o título da célebre pintura de Paul Gauguin, “De onde viemos? O que somos? Aonde vamos?”, podemos tomar esse livro como uma tentativa de responder ao menos uma das três perguntas: afinal de contas, o que somos nós?¹
De resto, no frontispício exige-se informar o indispensável: que a filosofia de Olavo de Carvalho é profundamente existencial – o Necrológio que o diga! Com isso não quero dizer que seja existencialista à la Sartre ou Heidegger. Não me refiro a nenhum tipo de filiação doutrinária, coisa que, aliás, costuma ter mais a ver com certas torcidas futebolísticas pseudo-universitárias do que com qualquer outra coisa.
I) As camadas do eu²
Segundo Olavo, de modo geral, há quatro sentidos diferentes em que podemos falar a palavra “eu”, cada qual com um nível de profundidade ontológica. O mais exterior e superficial é o que ele chama de eu presencial, isto é, a nossa presença imediata num certo lugar e numa certa circunstância, da qual tomamos consciência através dos vários estímulos sensoriais que recebemos o tempo todo. Porém, esse eu presencial não tem continuidade, nele não há nada que dê unidade aos estímulos fragmentários, que os encaixe em um mosaico maior. Se só ele existisse, o eu de agora já não seria o mesmo eu de 5 minutos atrás e, como disse Heráclito, nunca nos banharíamos duas vezes no mesmo rio. Contudo, parece existir ao menos algum vestígio de continuidade nas coisas. Caso contrário, na segunda vez em que nos deparássemos com o rio, não saberíamos tratar-se do primeiro rio, nem do mesmo “eu”, que nele já havia entrado anteriormente. A vida se resumiria a uma multiplicidade de estímulos sensoriais totalmente desconexos, e o homem a vítima de uma amnésia ininterrupta, que a cada instante o faz esquecer-se de tudo, inclusive de si mesmo.
Um pouco mais estável é o eu social, que abarcando o eu presencial, consiste em nossa aparência pública. Dito de outro modo, ele é a forma pela qual nos mostramos aos outros, para que nos identifiquem como sendo tal ou qual pessoa, que desempenha tal ou qual função dentro de um grupo social. O problema é que esse eu, apesar de transcender o anterior, nada tem de muito profundo. Todos conhecem o ditado: as aparências enganam; e, como no Silêncio dos Inocentes, o mais fino e elegante gentleman pode ser na verdade um psicopata canibal enrustido.
Esse “ser na verdade outra coisa” é o que Olavo chama de eu biográfico, que não é senão a história que contamos de nós mesmos. Todo ser humano acredita poder narrar verossimilmente sua biografia, conferindo-lhe certa continuidade que fundamentaria a unidade de sua pessoa, o seu eu. Esse eu, por sua vez, abrange os anteriores pelo simples fato de que, desprovidas da autoconsciência biográfica, tanto as presenças imediatas quanto as aparências sociais perderiam o nexo que as mantém unidas como manifestações de um mesmo eu. Mas, ainda nesse caso, parece faltar algo. O eu biográfico, por menos descontínuo que seja, estará sempre sujeito a falhas da memória, a imprecisões narrativas, à supervalorização de certos momentos em detrimento de outros, etc… De modo que até ele parece carecer de uma sustentação ontológica mais profunda. A pergunta inicial continua sem resposta: o que de fato fundamenta o eu? Se até agora não achamos nenhuma unidade substantiva, qual é a garantia da existência de algum eu? Realmente existimos, ou será tudo apenas uma ilusão?
O fato é que, independente dessas mind-blowing questions, possuímos um sentimento de continuidade do eu. Dito de outro modo, é inegável que percebemos, por baixo de todas essas camadas de pseudo-eu’s, algum tipo de unidade permanente, sem a qual inclusive seria impossível identifica-las como pertencentes a um mesmo sujeito – coisa que fazemos o tempo todo em nossa própria consciência. Não à toa, para Olavo de Carvalho, Filosofia nada mais é do que a busca da unidade da consciência na unidade do conhecimento. Pois então, é justamente por meio desse senso unitário, capaz de entrever a individualidade irredutível do sujeito, que chegamos ao quarto significado da palavra eu: o eu substancial, a essência do indivíduo humano, ou como a chamava Duns Scott, sua haecceitas.
Isto posto, fica fácil imaginar o que acontece com o homem que não toma plena consciência desse fato: é privado de seu verdadeiro princípio, de seu único sentido de ser, e acaba condenando-se a vagar ad aeternum por entre as futilidades apáticas e incuriosas da “vida comum”; torna-se, em resumo, um brasileiro.
II) O eu substancial e o corpo
Neste capítulo, Olavo de Carvalho mostra como a compreensão da existência de um eu substancial é hoje muito dificultada pelo vício da weltanschauung moderna que não consegue ver mais que duas respostas para a pergunta “o que somos nós?”. Ou somos um composto de corpo e alma ou somos só corpo e a consciência não passa de um produto das sinapses cerebrais. Ou vítimas do atávico dualismo cartesiano ou propagadores do materialismo cientificista. O problema é que ambas as teses são insustentáveis. A primeira porque metafisicamente problemática, a segunda porque já refutada pela própria Ciência que supostamente a fundamentaria.
Além disso, a apreensão rarefeita do que seria exatamente esse eu substancial se dá também pelo fato de que ele só pode ser conhecido pelo que Olavo chama de conhecimento por presença. Na verdade, mesmo, a maior parte das coisas que dizemos conhecer, dentre as quais nós mesmos, não conhecemos da forma pela qual um matemático conhece uma fórmula ou um regente uma sinfonia. Elas, no máximo, nos são familiares. Isto é, são coisas que nos são presentes cotidianamente e que, por isso, se tornam fontes inesgotáveis de conhecimentos muitas vezes indizíveis, não-verbalizados.
Esses elementos do cotidiano, justamente pela concretude de seus infinitos aspectos, são inabarcáveis pela Ciência, que, como diz Olavo, não estuda nenhum fato concreto, apenas recortes abstratos da realidade – o que é objeto de prova científica não é evidente, o que é evidente não pode ser provado. Como falou Chesterton, “a existência ordinária e sem sentido é como dez mil emocionantes novelas policiais misturadas com uma colher”. A vida, portanto, só pode ser conhecida presencialmente, só pode ser vivida; não é possível deduzi-la a partir de equações de mecânica quântica.
Com o nosso eu substancial se dá o mesmo. Só podemos conhece-lo reconhecendo-o por presença, rememorando com a maior sinceridade possível tudo o que já fizemos, de onde viemos, o que somos e aonde vamos. Esse é o sentido mais profundo da confissão autobiográfica. Os dados da existência corporal e a alma se mostram assim como integrantes de uma única essência, de uma unidade indecomponível: a nossa haecceitas, ou como a chamava Mário Ferreira dos Santos, a nossa forma de proporcionalidade intrínseca. Isso significa que, mesmo com a inevitável morte do corpo, a história corporal não deixa de ser carregada para sempre pela alma imortal – retornamos ao “yo soy yo y mi circunstancia”.
III) O eu substancial e a imortalidade
“O pior momento de um ateu é quando ele está realmente grato e não tem a quem agradecer.” – G.K Chesterton
Neste capítulo, retomando mais diretamente o título do livro, Olavo examina a relação do eu substancial com a imortalidade da alma. O argumento chave é que, estando provado que o eu não encontra fundamento ontológico no corpo nem no eu presencial, conclui-se que nossa individualidade existe e continuará existindo independentemente da atual vida terrestre. O que acontece depois da morte corporal é apenas uma supressão da imagem do eu tal como dada no eu presencial, no eu social e no eu biográfico.
Mas o fato de o eu substancial ser incorpóreo ou “metacorpóreo” não significa, como pensam alguns, que ele seja eterno. Afinal, diz Olavo, ele veio a existir em algum momento, e só depois de criado é que passou a durar para sempre, a transcender a existência corpórea. A essa forma de temporalidade, que é um entremeio entre a eternidade e o tempo, damos o nome de imortalidade: aquilo que é próprio do que teve começo mas nunca terá fim. Só que, se o eu possui um início, podemos nos perguntar: por que ele passou a existir ao invés de permanecer no vazio?
Mutatis mutandis, essa é a mesma questão colocada por Leibniz quando disse: porque existe algo ao invés do nada? Pensar nisso revela mais uma nota a respeito do tema aqui discutido: não há explicação para a nossa existência. Por mais que o eu substancial seja o fundamento de nosso ser, ele em si não contém a justificativa de sua própria criação. A única resposta possível a essa pergunta é simplesmente: porque Deus quis. A conclusão é que nossa alma imortal é produto do amor divino, aquele mesmo de que Dante falava no final da Divina Comédia: Amor che move il sole e l’altre stelle. Deus não tinha nenhum motivo para nos criar, fez-nos por puro amor, assim como move o Sol e as outras estrelas.
IV) O conhecimento por presença
Por fim, no último capítulo do livro, Olavo se dedica a melhor explicar o que é exatamente o conhecimento por presença e qual sua relação com o eu substancial e a consciência de imortalidade.
A perda dessa consciência, diz Olavo, tem seu fundamento na filosofia de René Descartes, aquele que afirmou a prioridade da epistemologia frente à ontologia – o que depois ganhou com Kant o nome de “precaução crítica”. Ou seja, do mesmo modo que um músico confere a afinação de seu instrumento antes de começar a tocar, o filósofo francês pensou que seria mais seguro verificar a efetividade dos meios pelos quais conhecemos a realidade antes de conhece-la propriamente. O problema é que, ao fazê-lo, Descartes se esquecia de que o conhecimento humano, a res cogitans é ela mesma parte da realidade, e uma das mais complexas. Se o objetivo, portanto, é partir dos saberes mais seguros em direção aos mais problemáticos, deveríamos começar pelo entendimento das moscas e só muito depois chegar no estudo dos processos cognitivos da mente humana. No fundo a tentativa de compreender o conhecimento antes da realidade (à qual ele mesmo pertence) é equivalente ao ato de arrancar os próprios olhos com a finalidade de melhor examiná-los. Por isso em Aristóteles a gnosis gnoseos era o último patamar da filosofia, não o primeiro. Só depois de conhecer a estrutura da realidade é que se torna possível verificarmos como foi que o fizemos – tudo o mais é utopia.
O conhecimento por presença, porém, muda a perspectiva da questão. Ao dizer que temos a capacidade de conhecer, já estamos assumindo automaticamente que essa é apenas uma das funções do o nosso eu. O sujeito não pode se resumir, portanto, à res cogitans, a um eu pensante – conclusão que invalida de início o primado do problema crítico. Afinal, para pensar, para conhecer é preciso antes de mais nada existir, e existir com todas as suas complexidades, tais como estar em algum lugar, respirar, intuir, sentir e etc… Esses dados reais que compõem nossa estrutura existencial, o nosso eu substancial, por mais que em conjunto não nos sejam simultaneamente cognoscíveis, pois infinitos, podem ser trazidos à consciência a qualquer momento, uma vez que estão sempre presentes. E é a essa aceitação da presença real do ser que Olavo dá o nome de conhecimento por presença. O erro de Kant e Descartes foi endeusar tanto a razão a ponto de a fazerem transcender a própria realidade que lhe confere existência.
[1] Esse mesmo tema é tratado de forma um pouco menos detalhada no curso de Olavo de Carvalho “Filosofia da Ciência”, aula 2.
[2] O livro de Olavo, organizado por Ronald Robson, além dos quatro capítulos iniciais, conta com alguns artigos soltos ao final do volume, que, por sua brevidade, não integraram o texto de nossa resenha.
[3] Esse mesmo tema é tratado de forma um pouco menos detalhada no curso de Olavo de Carvalho “Filosofia da Ciência”, aula 2.
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