Mine were of trouble

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Por Pedro Galuppo Inacio
08 de fevereiro de 2023

Mine were of trouble

Na Espanha do começo do século XX, mundos e ideias se chocaram em meio às chamas do campo de batalha. Forças de ordem e revolução, e os últimos suspiros de um passado perdido, lavaram com sangue e fogo as velhas terras da Ibéria. É em meio a este cenário que transcorrem os eventos narrados em Mine Were of Trouble, que narra as memórias de Peter Kemp durante seu serviço como voluntário nas forças nacionalistas da Guerra Civil Espanhola.

Tendo escrito um dos poucos relatos de estrangeiros a terem servido no lado nacionalista, o inglês, que lutou junto aos requetés carlistas, e foi mais tarde transferido para a Legião Estrangeira – e chegou até mesmo a ter um encontro com Franco –, traz a oportunidade de encarar o conflito espanhol pelos olhos de um anti-revolucionário.

Enquanto uns passam a vida inteira em busca de paz, Kemp aparenta ser daquela espécie de homem que foi feito para a guerra e nasce já com uma espada em suas mãos. Pode-se dizer que a paz que Kemp buscou é a mesma paz agônica – agonia em seu sentido original: luta – descrita por Miguel de Unamuno: aquela que só se encontra em meio à luta, à guerra. E esta conclusão se apresenta desde o começo da obra. O título do livro, traduzido nesta resenha para o português como “Os Meus Eram de Rixas”, é retirado do trecho de um poema de autoria de A. E. Housman:

“Os pensamentos dos outros            
Eram leves e fugazes,            
De encontros de amantes            
Ou sorte ou fama.                
Os meus eram de rixas…”
“The thoughts of others
Were light and fleeting,
Of lovers’ meeting
Or luck or fame.
Mine were of trouble…” 

O resultado das aventuras de Peter Kemp, Mine Were of Trouble, seguido depois por suas duas continuações, No Colours or Crest e Alms for Oblivion, descrevendo sua passagem pelo Fronte Oriental e pela Guerra do Pacífico, respectivamente, apesar de não serem livros resultantes de estudos mais técnicos a respeito de história, demonstram seu valor ao conduzir o leitor por meio de uma visão pessoal através dos momentos conturbados da primeira metade do século XX, aproximando-o das experiências e motivações de seus atores.

Os relatos de Mine Were of Trouble iniciam-se na metade do ano de 1936, pelos tempos que antecederam a ida de Kemp à Espanha e suas motivações. Se não seria difícil compreender as motivações que levaram um jovem britânico, conservador e monarquista, a se aventurar pelas montanhas das Astúrias e de Aragão em tempos de conflitos ideológicos, menos de vinte anos após o fim da Grande Guerra e da ascensão da União Soviética, mais fácil ainda seria para o leitor admirar a coragem do soldado que, como dizia a canção militar espanhola – El Inglés que Vino de London¹ –, se juntou ao Tercio de Millán Astray, se tornando um dos poucos estrangeiros a comandar um pelotão da Legião Estrangeira.

Movido não apenas pelo desejo juvenil de aventurar-se, mas também por sua percepção de que a vitória nas guerras em terras além do Canal da Mancha era necessária para a defesa de sua própria pátria – “se os vermelhos ganhassem, o comunismo triunfaria na Espanha, e então a França também cairia para o comunismo, e o que seria da Inglaterra então?” –, Señor Kemp decidiu pegar em armas e cumprir seu papel em uma luta que via como sua também. E não apenas para defender seu lar foi para a guerra, mas também para defender a própria civilização frente à barbárie. Havia recebido relatos, como ele próprio diz, dos “chocantes crimes perpetrados pelos vermelhos na Espanha”: massas violentas, assassinatos de padres e freiras e pessoas comuns, execuções de prisioneiros. O jovem britânico também não ignora que o mesmo tenha ocorrido no lado nacionalista, apesar de afirmar que estes tenham sido em menor escala, mais raros, e apenas uma resposta aos atos dos republicanos.

Mine Were of Trouble não oferece apenas um testemunho da coragem pessoal de Kemp frente aos dragões de seu tempo, mas também da coragem de inúmeros espanhóis, estes que também lutaram para defender algo, para defender aquilo que amavam. E, frente aos pensamentos de Unamuno sobre a agonia, a luta, inerente ao cristianismo, imagina-se que, mais para alguns, menos para outros, e também de diferentes formas, para uns de modo mais claro e mais obscuro para outros, estes mesmos pensamentos já houvessem se imbuído na mentalidade da velha nação cristã, que foi ela própria criada das lutas do passado. Imagina-se que o paradoxismo que Unamuno descreve em A Agonia do Cristianismo fosse também sentido pelos soldados que destruíram sua pátria, pois acreditavam que era isso preciso para salvá-la.

Ambos os grupos que Kemp conheceu lutavam para salvar a Espanha que amavam: os legionários e os carlistas, e cada um oferece seu testemunho de coragem ao seu modo especial. Os legionários – e também os militares da ativa –, com quem lutou Kemp após sua passagem pelos requetés, lutavam pela Espanha, por sua unidade, para que fosse restaurada nela a ordem. Lutavam por amor à pátria – são eles que demonstram o maior descontentamento com a situação a que desceu a Espanha: 

“Eu acredito que todos os espanhóis – até mesmo aqueles que lutam contra nós preferiam que esta guerra pudesse ter sido resolvida de uma forma ou de outra por espanhóis somente. Nós nunca quisemos que nosso país se tornasse um campo de batalha para potências estrangeiras.” - Capitão Eduardo Cancela

Os requetés carlistas, por onde Peter Kemp passou primeiro, lutavam não somente pela Espanha, mas por sua alma. Lutavam pela fé, pela tradição, pela Igreja, assim como seus antepassados também lutaram. O ideal que moveu os soldados carlistas pode ser resumido à frase do sermão do padre Vicente, capelão: “Contra Dios no se puede luchar!”²

“Nas cidades e vilas, e nas montanhas verdejantes de Navarra e Álava, na casa de campo e na fazenda, na cabana e no casebre, a boina vermelha e o velho rifle de um pai ou avô ficava acima da lareira em memória de uma ou outra das Guerras Carlistas. Mesmo obsoletas, as armas foram pegas e limpas, prontas para agir a qualquer momento. [...] Era uma coisa gloriosa morrer em defesa de La Tradición e el ideal, e morreram, dando suas vidas com todo o descuido e não se preocupando em proteger-se do fogo inimigo. [...] Assim pereceram nos primeiros meses da guerra a mais bela flor da Espanha.”

E foi, sem dúvida alguma, a coragem que mostraram os nacionalistas que permitiu sua vitória na guerra. Tanto a coragem dos requetés carlistas, homens comuns, sem treinamento militar, prontos para dar suas vidas sem hesitação – assim chamaram a atenção dos generais nacionalistas e se destacaram em comparação com as milícias falangistas – quanto a coragem dos militares espanhóis e seus comandantes, audazes e bem disciplinados: “Se os generais de Franco não tivessem tido mais culhões que os generais da Rússia Branca, a Espanha seria agora comunista”.

Talvez, porém, o que têm de melhor a oferecer Mine Were of Trouble é um aviso: um sobre as desgraças que podem cair sobre uma nação desunida – “Todo reino dividido contra si mesmo será destruído. Toda cidade, toda casa dividida contra si mesma não pode subsistir”³. Durante a narrativa, não se pode ignorar a dor e a tristeza daqueles homens e mulheres que foram forçados a viver durante a guerra, tanto dos soldados quanto dos civis. Não se pode ignorar a destruição da terra, o sofrimento sem o qual não se completaria a agonia de Unamuno, a agonia que marcou a Espanha daquela época.

Percebe-se que a maioria dos homens que encontra Kemp por sua passagem na Espanha carregam em si o fardo da destruição de seus lares e da morte de seus compatriotas, seus irmãos. São o inimigo, aquele que deve ser combatido, mas também aqueles que carregam o mesmo sangue, que falam a mesma língua, que foram nutridos pela mesma terra. 

Mine Were of Trouble traz o aviso que é dado por um velho inglês ao início do livro: “War is Hell!”4. Ele avisa ao leitor as consequências da desordem, da incapacidade de conviver, da desunião, da divisão. Ainda quando glorifica a coragem e o sacrifício, ele avisa qual é a realidade, a consequência da guerra, da luta. Ele avisa o quão rápido, e fácil, é reduzir tudo às cinzas, aos escombros.

Durante a leitura, pode-se até mesmo concluir que talvez, de todos os que passam pelas páginas do livro, o mais sensato é o camponês, não-nomeado, anônimo, que, mesmo ao som de tiros e artilharia, continua a trabalhar o campo, sem se preocupar com a matança que o cerca: “Para ele, tudo que importava era seu campo; se outros homens eram tolos o suficiente para gastar o seu tempo lutando, isso era problema deles”.

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Pedro Galuppo Inacio

Natural de Belo Horizonte, Minas Gerais. É graduando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (CEUB).


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