Sobre o Medo (parte I): Uma perspectiva filosófica

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Por Valéria Campelo
07 de junho de 2022

Dias atrás, comentei no meu espaço pessoal sobre a minha recém descoberta “selachofobia” ou fobia de tubarões. Expliquei que, ultimamente, tornou-se muito difícil para mim tomar um banho de mar tranquilo, já que, ao entrar na água, um verdadeiro pavor de sofrer um ataque de tubarão me toma completamente a mente e o corpo. E o mais intrigante é que, embora eu tenha nascido e crescido em uma ilha, ou seja, praia e mar para todo lado, jamais vi um tubarão vivo de perto em toda a vida nem tive notícia de qualquer ataque por lá.

Onde moro atualmente, embora seja litoral, também jamais ouvi falar de um ataque de tubarão. Portanto, nenhum evento traumático relacionado a esses animais jamais me ocorreu e, até onde sei, nem a qualquer pessoa próxima a mim, fazendo deste medo um evento aparentemente injustificável, ou pelo menos injustificável por qualquer fator externo.

Naturalmente, esta descoberta me despertou um interesse especial por entender o “o quê” e as causas. Esta reflexão, portanto, se concentrará em entender o que é o medo, por que o sentimos e como vencê-lo. E para tentar entender o problema, recorri à literatura que me foi mais acessível, partindo de uma perspectiva filosófica-teórica para uma visão psicológica-prática. Esta reflexão, portanto, terá duas partes, sendo esta primeira dedicada a uma perspectiva filosófica do assunto.

Pois bem, podemos dizer que o medo é uma das nossas emoções mais básicas, estritamente associada ao nosso senso de autoproteção e sobrevivência. O corpo humano reage instintivamente ao perigo, à aparência do perigo ou simplesmente à crença do perigo, nos levando em direção à fuga.

Fugir, afastar-se, correr para longe: “é especialmente daquilo de que foge que a presença corre atrás”. Encontrei em Heidegger a reflexão mais próxima sobre o objetivo fundamental do medo: a ação. Não posso me apresentar, no entanto, como uma pessoa competente para destrinchar a filosofia heideggeriana. Nunca me dediquei a estudar profundamente a obra do filósofo alemão, e me limitarei, portanto, a resumir o “básico do básico” de suas lições que nos podem ser úteis aqui, e que estão concentradas no capítulo sexto da sua obra Ser e Tempo.

Sabe-se que a preocupação mais profunda de Heidegger não se concentrou na existência em si, mas no ser, mais especificamente no esquecimento do ser. Para ele, o homem cotidiano (do século XX) se mantinha numa situação de encobrimento do seu ser, por isso possuía uma compreensão equivocada da sua própria existência. E essa tendência ao encobrimento repousa, para Heidegger, na tradição filosófica clássica, que colocou pela primeira vez, com os gregos, a questão do ser, mas logo em seguida a esqueceu, dedicando-se a afirmá-la somente a partir do ser enquanto ente e não do ser enquanto tal. E isso o levará, não surpreendentemente, a encontrar na superação ou mesmo na “destruição” da tradição filosófica clássica uma solução.

Todo esse problema, na visão heideggeriana, gira em torno do conceito de Dasein (o ser-aí ou o ser-no-mundo). O Dasein, normalmente traduzido para o português como “presença”, é aquilo que confere ao mundo o caráter de mundo, e aqui o mundo tem uma definição diferente da concepção moderna estabelecida em Descartes. Portanto, o interessado em se aprofundar nessa problemática deverá se dedicar à obra do autor, com especial atenção para o seu Ser e Tempo. E, claro, temos uma lista de leitura para ajudá-lo nisso. Mas, se o leitor teve pouco ou nenhum contato com a filosofia heideggeriana até então e está em busca de uma “luz inicial”, deixarei ao final dois artigos que também me foram úteis e podem servir para tirar o iniciante em Heidegger da total obscuridade.

Enfim. Ao se concentrar em explicar os aspectos existenciais que constituem o Dasein como ser no mundo, Heidegger se viu diante da questão existencial fundamental, isto é, qual é, afinal, o ser da totalidade do todo estrutural, o traço constitutivo da existência do Dasein em que reside a totalidade do ser da existência humana, em outras palavras, a própria essência humana. E ele encontrará esse traço totalizante que define a essência do ser humano justamente no conceito de angústia, buscando o nexo ontológico entre angústia e medo, admitindo que entre ambos existe um parentesco fenomenal, por isso aparecem, na maior parte das vezes, inseparáveis um do outro.

Essa distinção que Heidegger faz entre angústia e medo levou ao topo a minha desconfiança de que o meu medo de tubarões tem muito pouco a ver com... tubarões. Veja bem, Heidegger diz que, ao contrário do medo, a angústia não vê um “aqui” e um “ali” determinados, de onde o ameaçador se aproxima. É justamente em o ameaçador não se encontrar em lugar nenhum que se caracteriza a angústia. Ela não sabe o que é aquilo com que se angustia. No entanto, “em lugar nenhum” não significa um nada meramente negativo: “o ameaçador dispõe da possibilidade de não se aproximar a partir de uma direção determinada, situada na proximidade, e isso porque ele já está sempre 'por aí', embora em lugar nenhum. Está tão próximo que sufoca a respiração e, no entanto, encontra-se em lugar nenhum”.

O que Heidegger parece estar descrevendo vai muito além da situação em que uma pessoa teme ser atacada por tubarões, ou morrer afogada, ou viajar de avião; é um estado diante do mundo ou com o mundo, perante o qual os tubarões, a água e os aviões estariam aí, senão como figuras quase irrelevantes, como representação daquilo que se verdadeiramente teme.

Aquilo de que se tem medo é sempre um ente intramundano que, advindo de determinada região, torna-se, de maneira ameaçadora, cada vez mais próximo, diz o autor alemão. Medo é a angústia imprópria, entregue à decadência do “mundo” e, como tal, angústia nela mesma velada. Na angústia, se está “estranho”. Estranheza significa “não se sentir em casa”, não estar “familiarizado com...”. O não sentir-se em casa deve ser compreendido aqui, essencialmente e ontologicamente, como o fenômeno mais originário.

A angústia, para Heidegger, em comum acordo com Kierkgaard, tem um quê existencial essencialmente humano. Ela é mais que um fenômeno psicológico e ôntico; ela tem uma dimensão ontológica, pois nos remete à totalidade da existência como ser-no-mundo. Só o homem se angustia, só o homem existe e só o homem pode ter uma compreensão do ser. A diferença entre os dois autores vai residir no fato de que, em Kierkegaard, a angústia revela o nosso ser finito, o nada de nossa existência diante da infinitude de Deus, do caráter eterno de Deus; Heidegger, por outro lado, conceberá a angústia apenas como fenômeno existencial da finitude do homem.

“É na angústia que a liberdade de ser para o poder-ser mais próprio... mostra-se numa concreção originária e elementar.”

O filósofo alemão descreve, igualmente, o sentimento de apavoramento de que falava Pascal como o sentimento de angústia, e sugere que a angústia é fundamental para que se alcance a verdade. Pois a busca da verdade não deve ser estática, passiva, contemplativa, mas movimentada pela ação; a ação de ir vivenciar o Nada, o desconhecido, o medo. O medo, assim, impele o homem a abandonar a passividade e se abrir para o desconhecido e obscuro, lutando contra seus instintos mais elementares.

Entendo que, para Heidegger, o medo não é algo a ser evitado, mas buscado no nosso mais profundo ser. O obscuro, o desconhecido, o temido, é onde propriamente encontramos a nossa essência como seres humanos. Somente nos abrindo em direção ao medo conseguiremos de fato nos conhecer e superar a nós mesmos. Esta pode ser, talvez, uma diferenciação própria do Dasein, uma capacidade do ser que reside não apenas em estar no mundo, mas de ser-no-mundo, de ser envolvido no mundo, compreendido no mundo. E o medo da morte encontra aqui uma posição especial, pois nos coloca de face, ou com a eternidade, ou com a total falta de sentido, o que foi, por sua vez, brilhantemente comentado por Pascal.

Uma pausa para observar uma coisa interessante: parece que essa diferença entre Heidegger e Kierkgaard e entre Heidegger e Pascal, que parte justamente do fato de que Kierkgaard e Pascal buscam explicar a angústia a partir da eternidade, do caráter eterno de Deus, ao passo que Heidegger busca uma explicação mais fenomenológica da coisa, explica, talvez, por que é difícil encontrar, através das ferramentas de pesquisa, uma abordagem filosófica sobre o medo que não em Heidegger. A impressão é que, para a maioria dos estudiosos sobre o assunto, Heidegger conserva o pensamento estritamente filosófico, “puro”, enquanto os autores que o influenciaram, como Kierkgaard e Pascal, “se afastam” da filosofia para encontrar refúgio na “teologia”, o que representa uma espécie de retrocesso.

Como aqui entre nós isto não passa de um preconceito infundado, infantil e asinino, nos concentramos não só naquilo que está sobrando, como no que está faltando, na esperança de ajudar, assim, a enriquecer a oferta de materiais sobre este assunto para além do império dos filosofismos “anti-Deus”, “anti-eternidade” e “anti-teológicos”. Estes que, ao contrário de representarem uma filosofia “pura”, representam, talvez, a verdadeira limitação do pensamento humano. Pois o pensamento incapaz de se abrir em direção à eternidade é o pensamento do homem que limitará sua existência a este mundo, é o intelecto verdadeiramente limitado. E por maior que seja a tendência a essa interpretação “puramente fenomenológica” que se tem de Heidegger por aí, não me arrisco nem tenho condições de afirmar que sua visão era limitada como tal, já que ele próprio foi influenciado por figuras como o Apóstolo Paulo, Santo Agostinho, Pascal e Kierkgaard, preservando, é claro, um tom nada teológico.

[Editado] Pois bem, para obter uma compreensão melhor da visão de Kierkgaard sobre a angústia, recomendamos a leitura da sua obra “O Conceito de Angústia”, lembrando, claro, que também temos uma lista de leitura do autor. E considerando a grande demanda de perguntas que recebemos, a maioria relacionadas ao "medo da morte", faremos esta reflexão não mais em duas, mas em quatro partes. A segunda parte trará a visão de Pascal sobre a importância de se “antecipar a morte” e de se investigar a natureza mortal ou imortal da alma; na terceira parte traremos conceitos e conselhos práticos sobre o medo e como dominá-lo, inspirados numa abordagem menos dialética e mais psicológica sobre o tema; e na quarta falaremos de medos relacionados à infância que podem influenciar na vida adulta.

Leia mais:

A Angústia, o Nada e a Morte em Heidegger

A Metafísica, o Nada e o Medo em Heidegger

Sobre o Medo (parte II)

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Valéria Campelo

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Maranhão. Redatora, tradutora, advogada e "ademira" do CoA.


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