Sobre o Medo (parte II): medos relacionados à morte

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Por Valéria Campelo
07 de junho de 2022

“A alma não é um 'tema superado', como ingenuamente o declaram alguns psicólogos modernos”, diz Mário Ferreira dos Santos em Psicologia. Nada melhor que esta observação para introduzir a segunda parte da nossa reflexão sobre o medo, que tem como objetivo explicar, justamente, a importância de investigar e pensar a imortalidade da alma humana.

Tal como nos adverte o filósofo brasileiro, ninguém pode negar as contribuições da psicologia moderna para a humanidade. Mas, na contramão do que pregam muitos de seus pretensiosos defensores, em nossa época, o tema da alma está se impondo de forma mais importante e mais exigente do que nunca. E essa é a razão pela qual o psicólogo, ou mesmo o estudioso comum, quando se afasta da filosofia, tende a se tornar um mero empírico, sem alcançar o que há de mais profundo no ser humano. 

Como dissemos, a aproximação da filosofia com a teologia não representa para nós qualquer retrocesso, mas um acidente inevitável para todo aquele que está em busca da verdade sobre a sua existência. Vimos anteriormente em Heidegger uma reflexão sobre o medo e a angústia, sugerindo que o objetivo do medo é nos impelir à ação, mais especificamente à ação de ir em direção ao desconhecido, onde repousa o sentido da nossa própria essência humana. E agora veremos, em um dos influenciadores do filósofo alemão, como os nossos medos estão relacionados com a nossa própria finitude humana, ou seja, com a morte.

Blaise Pascal é um autor tão brilhante, que poderíamos escrever uma reflexão para cada parágrafo dos seus Pensamentos. Mas como isso seria inviável para os nossos propósitos, deixaremos Pascal falar por si mesmo e nos limitaremos a acrescentar somente o necessário para conduzir o leitor ao nosso objetivo. Recomendamos, portanto, ao leitor, que não deixe de adquirir a obra supramencionada e pratique sua cuidadosa meditação.

Pois bem, Pascal compreendia que todo homem dotado de um mínimo bom senso não poderia deixar de refletir sobre a condição da alma humana perante a eternidade. No entanto, a realidade que ele presenciava ao seu redor apontava para uma despreocupação em massa do homem do século XVII com a sua própria existência. O pensamento de Pascal aparece, assim, como uma reação ao dogmatismo cartesiano e ao ceticismo de Montaigne, que fomentavam uma atitude descompassada diante da vida na sociedade francesa daquela época.

E embora Pascal se destacasse pelo seu grandioso espírito científico, ele atribuía ao pecado original a raiz de todos os problemas que, como este, refletem a própria miséria humana. Com a expulsão de Adão e Eva do paraíso, a morte e a dor se tornaram realidade para o homem e passaram a marcar a finitude da vida humana na Terra, a qual estaria, a partir de então, para sempre fadada a uma fundamental insuficiência. E para compreender essa realidade, é preciso, na visão pascalina, ter o “espírito de fineza” perfeitamente alinhado à doutrina cristã. 

Para Pascal, todos os pensamentos e ações do homem tomam caminhos totalmente diversos conforme ele tenha ou não consciência da eternidade, a qual deve ser seu último e mais importante objetivo.

“A imortalidade da alma é uma coisa que nos preocupa tanto, que tão profundamente nos toca, que é preciso ter perdido todo sentimento para permanecer indiferente diante dela”. 

Assim, para Pascal, o primeiro interesse do homem enquanto homem, seu primeiro dever, é esclarecer bem este assunto, do qual dependerá toda a sua conduta. E isso é tão importante para o autor, que ele fazia extrema diferença entre os homens que estão persuadidos da sua condição imortal e os que vivem sem se dar ao trabalho de pensar nesse assunto.

“Só posso ter compaixão dos que gemem sinceramente nessa dúvida, dos que a observam como a última das desgraças, e dos que, sem nada poupar para sair dela fazem de tal pesquisa as suas principais e mais sérias ocupações... Mas, quanto aos que passam a vida sem pensar nesse último fim da existência, de forma que, por essa única razão, não descobrem em si próprios as luzes que os persuadam... eu os considero de maneira bem diferente.”

Diz Pascal que essa negligência do homem para consigo mesmo o assombra e espanta de tal forma, que chega a ser uma monstruosidade: “Não o afirmo pelo zelo piedoso de uma devoção espiritual. Entendo, ao contrário, que se deve ter esse sentimento por um princípio de interesse humano e por um interesse de amor próprio”.

É preciso ter a alma muito elevada para compreender que os nossos males são infinitos e que a morte que nos ameaça a cada instante deve nos colocar, infalivelmente, dentro de poucos anos, de face ou com a eternidade, ou com o absoluto nada, ou com a eterna dor e infelicidade, adverte Pascal.

“Nada mais real nem mais terrível do que isso. Por mais corajosos que desejemos ser, é esse o fim que espera mesmo a mais bela vida do mundo. Que se reflita sobre isso e se diga, depois, se não é indubitável que o único bem da vida presente é a esperança de uma vida futura; que só somos felizes na medida em que dela nos aproximamos; e que, não havendo mais infelicidade para os que têm uma inteira certeza da eternidade, também não há felicidade para os que não possuem luz alguma”.

Para o filósofo francês, é um grande mal permanecer nessa dúvida, sendo um dever indispensável investigar quando ela existe, porque aquele que duvida e não investiga se torna não apenas infeliz, mas também injusto

“Nada é tão importante para o homem como a sua condição, e nada lhe é tão temível como a eternidade. Por conseguinte, se se acham homens indiferentes à perda do próprio ser e ao perigo de uma eternidade de miséria, isso não é natural.”

Mas, onde queremos chegar com isso, afinal? 

Ora, nesta indignação de Pascal reside, também, toda a problemática em torno do medo e da angústia humana. Pois é justamente a indiferença do homem diante da morte que corrompe e vira do avesso a sua consciência, fazendo-o temer as coisas menos importantes e ser completamente insensível às mais importantes. 

“[Esses homens] procedem de modo inteiramente diverso em relação a todas as outras coisas: temem até as mais insignificantes, e as prevêem, e as sentem. O mesmo homem que passa dias e tantas noites cheio de cólera e de desespero por ter perdido o cargo [medo das perdas materiais], ou por alguma ofensa imaginária à sua honra [medo da rejeição, medo de passar vergonha, timidez] sabe também que vai perder tudo com a morte, sem que por isso se inquiete ou se comova. É uma coisa monstruosa ver, no mesmo coração e ao mesmo tempo, essa sensibilidade pelas menores coisas e essa estranha insensibilidade pelas maiores.”

Para Pascal, essa consciência invertida e corrompida é um encantamento incompreensível e um adormecimento sobrenatural. Um estranho e verdadeiro abalo na natureza humana. Para ele, essas pessoas “caíram no papo” de que as belas maneiras do mundo consistem em fazer-se de louco. Elas não sabem o quanto se arriscam quando estão tão concentradas em buscar a estima dos outros, a ponto de se considerarem senhoras de si próprias, e viverem como se houvessem de prestar contas a ninguém senão a si mesmas no final.

Para Pascal, as pessoas que vivem dessa forma, se pensassem nisso seriamente, veriam que isso é tão mal apanhado, tão contrário ao bom senso, tão oposto à honestidade e afastado de tudo dessa boa aparência que mostram, que seu modo de vida desesperado seria antes capaz de regenerar e converter uma pessoa incrédula que de corromper ao seu modo de vida aquelas que já são conscientes da sua alma imortal. Forte, não é?

A solução, para Pascal, está em compreender a noção do divertissement, que representa a fuga do homem do contato consigo mesmo. Lembram da fuga de que falamos em Heidegger? Pois bem, aqui, o homem não consegue compreender sua existência porque não consegue estar a sós consigo mesmo, está sempre fugindo do contato com a trágica condição em que se encontra, do contato com a sua angústia, com o desconhecido. O homem foge de olhar para si mesmo porque não pode encarar o que há de mais perturbador em sua própria natureza. Olhar para si implicaria enxergar suas próprias mazelas, sua própria finitude e insuficiência. Em Pascal, o confronto severo e honesto consigo mesmo levaria o homem a ver que, devido ao pecado, houve uma cisão entre o homem e o sobrenatural. E essa é a raiz de todos os problemas.

Essa angústia da qual o homem está fugindo de encarar é a ânsia da plena felicidade e da suficiência (satisfação). Aqui, as palavras de Pascal são tão completas, que é dispensável tentar acrescentar até mesmo uma vírgula:

Que nos brada pois essa avidez e impotência senão que houve outrora no homem uma felicidade verdadeira, da qual só lhe resta agora a marca e o vestígio totalmente vazio que ele inutilmente tenta preencher com tudo aquilo que o cerca, procurando nas coisas ausentes o socorro que não encontra nas presentes, as que são todas incapazes de fazê-lo porque esse abismo infinito não pode ser preenchido senão por um objeto infinito e imutável, isto é, por Deus mesmo?

O homem de Pascal está, assim, fadado a jamais encontrar satisfação e felicidade senão na busca por reencontrar-se com o divino. Em outras palavras, ele quer dizer: se você não vê sentido em mais nada que não na realidade presente; se você não tem qualquer esperança na vida futura; se você vive como se isto, aqui e agora, fosse tudo, então não é nada surpreendente que você esteja angustiado ou com medo. O estranho seria, na verdade, se você não estivesse aterrorizado!

O homem que está afastado da presença divina busca no divertissements, nos prazeres e alegrias passageiras, até mesmo no trabalho, na família, no amigo, no projeto de uma vida, a felicidade que só pode encontrar no reencontro com o divino, ou seja, na busca séria e honesta pela verdade da sua própria existência. O homem afastado da presença divina tem a mente sempre concentrada no imediato, nas urgências materiais, nos prazeres e alegrias deste mundo; está sempre buscando sentido naquilo que lhe foi concedido pelo Criador para agregar valor à sua existência, não para dar sentido à sua existência. 

E enquanto não volte seu olhar para a eternidade, enquanto estiver fugindo do encontro consigo, enquanto não olhe para dentro de si mesmo e não se ponha a investigar a sua própria existência, o homem estará fadado à inconstância, à inquietação, à angústia e ao tédio. Tudo isso lhe prepara um solo fértil para os medos irracionais e exagerados, que devem aparecer, naturalmente, nas situações em que a sua alma estiver mais vulnerável e suscetível, manifestando-se de forma discreta e tomando, pouco a pouco, a forma de pavores, fobias, ansiedade extrema, tristeza... 

Não por acaso, comentei com nossos seguidores no Instagram que, se não fossem os tubarões, qualquer evento com o qual eu me identificasse no meu momento de extrema vulnerabilidade poderia me despertar um medo incomum de qualquer outra coisa. O fato é que, por alguma razão, fui tomada pela minha angústia e me afastei da minha busca pelo divino; e passei a não me sentir segura, não apenas no mar, mas diante da vida. E eu estou consciente de que a superação do meu medo está ligada à superação ou mitigação do meu estado de angústia, essa angústia que eu ainda não entendo completamente, essa sensação de “não estar em casa”, essa angústia que não sabe do que se angustia.

Heidegger usou as palavras certas: o meu medo, penso eu, é angústia velada. E o seu?

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Valéria Campelo

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Maranhão. Redatora, tradutora, advogada e "ademira" do CoA.


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