Neste trecho da obra “Considérations sur la France” de Joseph de Maistre,apresentamos uma leitura da Revolução Francesa de uma perspectiva pouco usual: a de quem estava lá.
Joseph de Maistre, 1796
Estamos todos ligados ao trono do Ser Supremo por uma corrente flexível que nos restringe sem nos escravizar. O aspecto mais esplêndido do esquema universal das coisas é a ação de seres livres sob orientação divina. Livremente escravos, eles agem tanto por vontade quanto por necessidade: realmente fazem o que desejam sem serem capazes de interferir nos planos gerais. Cada um está no centro de uma esfera de atividade cujo diâmetro varia conforme a decisão da geometria eterna, que pode estender, restringir, examinar ou dirigir a vontade sem alterar sua natureza.
Nas obras do homem, tudo é tão pobre quanto seu autor; a visão é confinada, os meios são limitados, o alcance é restrito, os movimentos são funcionais e os resultados são monótonos. Nas obras divinas, riquezas ilimitadas revelam-se até mesmo no menor componente; seu poder opera sem esforço: em suas mãos tudo é flexível, nada pode resistir; tudo é um meio, nada um obstáculo; e as irregularidades produzidas pelo trabalho dos agentes livres encaixam-se na ordem geral.
Imagine-se um relógio cujas molas variam continuamente em força, peso, dimensão, forma e posição, e que, no entanto, invariavelmente mostra o horário correto, e então se pode ter uma ideia da ação dos seres livres em relação aos planos do Criador.
No mundo político e moral, como no físico, há uma ordem usual e há exceções a esta ordem. Normalmente, vemos uma série de efeitos seguindo as mesmas causas; mas, em certos momentos, vemos efeitos usuais suspensos, paralisados, e novas consequências emergentes.
Um milagre é um efeito produzido por uma causa divina ou sobre-humana que suspende ou é inconsistente com uma causa comum. Se, no meio do inverno, um homem, diante de mil testemunhas, ordenar a uma árvore que se cubra instantaneamente de folhas e frutos, e a árvore obedecer, todos proclamarão um milagre e se prostrarão diante do taumaturgo. Mas a Revolução Francesa, assim como tudo que está acontecendo na Europa neste momento, é tão miraculosa quanto a frutificação instantânea de uma árvore em janeiro; não obstante, os homens ignoram ou murmuram bobagens, em vez de admirar. Na ordem física, onde o homem não interfere como causa, ele está sempre pronto para admirar o que não entende; mas na esfera de sua própria atividade, onde ele sente que age livremente como causa, seu orgulho facilmente o leva a enxergar desordem onde quer que seu poder seja perturbado ou suspenso. Certas ações dentro do poder do homem produzem regularmente determinados efeitos no curso normal dos acontecimentos; se errar o alvo, ele sabe ou acha que sabe por quê; reconhece as dificuldades, aprecia-as, e nada o escandaliza. Mas nos tempos revolucionários, a corrente que liga o homem é abruptamente encurtada, seu campo de ação é comprometido e seus meios o enganam. Levado por uma força desconhecida, revolta-se contra ela e, em vez de beijar a mão que o abraça, a ignora ou insulta.
"Eu não entendo nada" é o lema popular. A frase é sensível se nos leva à raiz da grande visão que agora é apresentada aos homens; é estúpida se expressa apenas lamúria ou desânimo estéril. O choro se levanta de todos os lados: “Como podem, então, os homens mais culpados do mundo triunfar sobre o mundo? Um regicídio medonho alcança todo o sucesso esperado pelos seus perpetradores. A monarquia adormece em toda a Europa. Seus inimigos encontram aliados até mesmo nos próprios tronos. Os maus prosperam em tudo. Realizam os mais imensos projetos sem dificuldade, enquanto os justos são infelizes e infortunados em tudo que empreendem. Opiniões se espalham contra a fé em toda a Europa. Os principais estadistas erram continuamente. Os maiores generais estão humilhados. E assim por diante”.
Sem dúvida, pois sua condição primária o determina, não há meios de impedir uma revolução e nenhum sucesso pode atender àqueles que desejam impedi-la. Mas o propósito nunca é mais evidente, a Providência nunca é mais palpável, do que quando o divino substitui a ação humana e opera sozinho. Isto é o que vemos neste momento.
O aspecto mais marcante da Revolução Francesa é esta força avassaladora que desvia de todos os obstáculos. Seu sopro levanta como palha tudo que o poder humano contra ela opõe. Ninguém marchou contra ela impune. A pureza da motivação foi capaz de tornar a resistência honrosa, mas isso é tudo; e esta força impetuosa, movendo-se inexoravelmente para o seu objetivo, rejeita tanto Charette quanto Dumouriez e Drouet.
Alguém disse com boas razões que a Revolução Francesa lidera os homens mais do que os homens a lideram. Esta observação é perfeitamente sensata; e, embora possa ser aplicada mais ou menos a todas as grandes revoluções, nunca esteve mais ilustrada do que neste momento. Os vilões que parecem guiar a Revolução só participam dela como simples instrumentos; e assim que aspiram dominá-la, caem sem glória. Aqueles que estabeleceram a República o fizeram sem desejar e sem perceber o que estavam criando; foram conduzidos pelos eventos: nenhum plano atingiu seu objetivo pretendido.
Nunca Robespierre, Collot ou Barere pensaram em estabelecer o governo revolucionário ou o reino do Terror; eles foram levados imperceptivelmente pelas circunstâncias, e tal perspectiva nunca mais será vista outra vez. Homens extremamente medíocres estão exercendo sobre uma nação culpável o mais pesado despotismo que a história já viu, e, entre todos no reino, certamente são eles os mais surpreendidos com o seu poder.
Mas, no exato momento em que esses tiranos cometeram todo crime necessário para esta fase da Revolução, um sopro de vento começou a derrubá-los. Este poder gigantesco, diante do qual a França e a Europa tremiam, não pôde resistir à primeira rajada; e porque não poderia haver nenhum traço possível de grandeza ou dignidade em uma revolução tão absolutamente criminosa, a Providência decretou que o primeiro golpe deveria ser desferido pelos Setembristas, de modo que a própria justiça pudesse ser degradada.
É surpreendente e espantoso que os homens mais medíocres tenham julgado melhor a Revolução Francesa que os mais cultos; que tenham acreditado nela tão firmemente enquanto os homens estudados permaneceram incrédulos. Esta convicção foi um dos principais elementos da Revolução, que só poderia obter sucesso devido à extensão e ao vigor do espírito revolucionário, ou, como se pode expressar, devido à fé revolucionária. Homens extremamente inaptos e ignorantes dirigiram habilmente aquilo que chamam de “carruagem revolucionária”; todos se aventuraram sem temer a contrarrevolução; dirigiram todo tempo sem olhar para trás; e tudo desabou em seu colo, por serem apenas instrumentos de uma força muito mais previdente. Não deram passos em falso em sua jornada revolucionária, pela mesma razão que o flautista de Vaucanson [1] nunca tocou uma nota falsa.
A corrente revolucionária tomou rumos sucessivamente diversos; e os líderes revolucionários mais proeminentes adquiriram o tipo de poder e renome que lhes foi dado apenas por seguirem as exigências do momento. Uma vez que tentaram se opor a elas ou até mesmo afastar-se de seu curso predestinado, isolando-se e seguindo sua própria vontade, sumiram de cena...
Em suma, quanto mais se examina as personalidades aparentemente mais ativas da Revolução, mais se encontra algo passivo e mecânico sobre elas. Não é demais repetir que os homens não guiam a Revolução de fato; é a Revolução que usa os homens. Foi bem dito que ela tem seu próprio ímpeto. E isso mostra que o Divino nunca antes se revelou tão claramente em um evento humano. Se ele emprega os instrumentos mais vis, é para regenerar através da punição.
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