Orson Welles consegue fazer bons filmes – melhor do que a maioria dos diretores – sem muito esforço. O problema, naturalmente, é que ele não faz esforço algum há 35 anos. Sua carreira é um leque de possibilidades desperdiçadas: depois de realizar uma estreia lendária, aos 24 anos, com Cidadão Kane (1941), provavelmente o maior filme americano já feito, ele nunca mais se sentiu totalmente à vontade para fazer outro filme do jeito que queria.
Chegou quase lá em filmes como O Quarto Mandamento (com o final regravado pelo estúdio) e O Processo. Mas um filme mais representativo do dilema de sua carreira foi Falstaff: O Toque da Meia-Noite (1968), resultado de um verdadeiro triunfo da vontade artística contra a falência iminente.
Falstaff é um grande filme. Porém Welles falsifica trechos inteiros dele. Haja visto que 1) foi filmado sem som, sendo o próprio Welles o dublador da maior parte das vozes; 2) ele contratou um baita elenco, mas teve que filmá-lo em momentos picados ao longo dos anos (só quando conseguia juntar dinheiro para produzir); e 3) inseriu no filme uma grande cena de batalha, mas teve que colocar sua câmera no meio dela porque tinha pouquíssimos guerreiros.
Acaba de sair o seu mais recente trabalho, intitulado muito honestamente de F for Fake. Trata-se de um documentário que aborda o tema das falsificações e fraudes, como o caso do falsificador de arte Elmyr de Hory, seu biógrafo Clifford Irving (outro falsário), o misterioso homem Howard Hughes e o próprio Orson Welles da famosa farsa da Guerra dos Mundos.
A narrativa é instigante, provocativa – vemos que Irving, por exemplo, ao mesmo tempo em que denuncia falsificações de Elmyr, planeja ele mesmo sua própria fraude. Mas se tomarmos certa distância do filme, torna-se possível observá-lo de um ponto de vista mais profundo, em que o que chama atenção são as reflexões de Welles a respeito das relações entre fingimento, ilusão, e a própria natureza da arte.
Cidadão Kane, por exemplo, é um filme brilhante e tão repleto de efeitos especiais, falsos tiros, duplas exposições, jogos de luz e animações de fundo que talvez apenas um terço da obra não seja “falsa”. Em F for Fake, Welles brinca ainda mais descaradamente com esses “truques” cinematográficos, aparecendo em uma sala de edição, onde ele roda a fita da moviolapara frente e para trás, conforme nos convida a dar uma olhada com mais atenção em determinados trechos das gravações.
Tudo é um truque, diz o mágico Orson Welles. Se o resultado é o mesmo, se a pintura parece a mesma, não seria Elmyr de Hory tão nobre quanto Picasso? Falstaff, poderíamos nos perguntar, é tão bem estruturado quanto seria se tivesse sido filmado em sete semanas ao invés de sete anos? E o que falar da história frustrante, totalmente inventada por Welles no final do filme, segundo a qual 24 telas eróticas de Picasso teriam sido falsificadas pelo avô de uma linda modelo que ele pintara em seu estúdio?
Mas a verdade é que em F for Fake vemos um Welles menor, vemos o mestre como que afinando preguiçosamente seu instrumento para um concerto que nunca começa. Mas nem por isso o documentário se torna menos envolvente e divertido, não deixando de ser impressionante a capacidade de Welles para criar um filme quase do nada, como se fosse a coisa mais fácil do mundo. Aliás, por muitos anos disseram que ele estava preparando um Dom Quixote. Atualmente o título do trabalho já está quase mudando para Dom Quixote do dia de São Nunca. Mas que importância isso tem diante dos tantos moinhos de vento de F for Fake?
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