Por Eric Voegelin
Nietzsche introduz a Vontade de Poder, a vontade de domínio, a Libido Dominandi,[1] como a paixão que explicaria a vontade de sub-repção intelectual.[2] Vejamos o caminho pelo qual esta paixão leva, de estágio em estágio, o pensador gnóstico.
Em Jenseits von Gut und Böse [Para além do Bem e do Mal], no aforismo 230, Nietzsche fala de uma “vontade fundamental do espírito” que quer sentir-se senhora de si mesma. Em um primeiro momento, a vontade de domínio do espírito serve como “uma resolução súbita de querer a ignorância, com uma exclusão arbitrária, [...] uma espécie de defesa contra muitas coisas dignas de serem conhecidas”. Ademais, o espírito quer deixar-se enganar em certas ocasiões, “talvez com um pressentimento irônico que a coisa não seja mesmo assim, mas que se deseja que sejam assim num dado momento [...] uma satisfação pela arbitrariedade de todas estas manifestações da força”. E finalmente forma parte deste fenômeno “aquela premência inquietante que possui o espírito de enganar outros espíritos e de simular diante do mesmo a pressão, a centelha perene de uma força criadora”, e desfrute da “pluralidade e astúcia das máscaras”.[3]
Sem dúvida a Libido Dominandi possui certa força e crueldade [4] que excede o deleite do mascarado em ludibriar os outros. Se volta contra o pensador mesmo e desmascara seu pensar como uma astuta volição de poder, “uma espécie de crueldade da consciência e do gosto intelectual”, “uma desenfreada honestidade” dissolve-se novamente em engano, mas — e eis o ponto nevrálgico — não para adentrar à verdade para além do engano, senão que somente para estabelecer uma nova no lugar da antiga. O jogo de máscaras continua e o outro permanece ludibriado e se deixa ludibriar. E nesta “crueldade da consciência intelectual” reconhecemos o movimento espiritual que na gnose de Nietzsche consiste funcionalmente na periagogé [5] platônica, na conversão e na abertura da alma. Mas no movimento gnóstico o homem permanece apartado do ser transcendente, e a vontade de poder se choca contra o muro do ser, que se tornou uma prisão. Força o espírito a entrar no rito do engano e do auto-dilaceramento. [6]
Todavia, o vício de simulação permanece em questão. O espírito de fato se choca contra as muralhas do ser? Ou quiçá não quer deter-se ante ela? A perspectiva do mais profundo abismo da vontade de poder inaugura o aforismo “dominar — já não ser servo de um Deus: — este meio que restou para enobrecer o homem”. Dominar significa ser Deus; para ser Deus o homem gnóstico carrega sobre si o sofrimento do engano e do auto-dilaceramento.[7]
O movimento não chegou ao seu fim. A pergunta de se o pensador quer ser um Deus nos leva ainda mais longe: não seria o caso desta vontade ser precisamente outro engano? Na “canção da noite” do Zaratustra encontramos uma confissão reveladora acerca dessa pergunta:
“É noite; eis que se despertam todas as canções dos amorosos – Uma sede está em mim, insaciada e insaciável [...] (mas) Eu sou luz: ai, porque não sou trevas! [...] mas minha solidão consiste em estar envolta de luz. [...]ignoro a felicidade de receber [...]minha pobreza é que minha mão nunca descansa de dar [...]Só vós, criaturas sombrias e tenebrosas, tirais da luz dos astros o vosso calor. [...] tudo é gelo à minha volta, minha mão se queima ao contato do gelo. [...] é noite. Porque sou luz! ”.
Nesta confissão a voz de um homem espiritualmente sensível parece gemer segundo o sofrimento de uma consciência que sofre por sua oclusão demoníaca.[8] A noite mística se recusa, está presa na luz glacial de sua existência; e desde a prisão surge a afirmação, metade lamento e metade oração, mas não livre da obstinação dos rebeldes: “e minha alma também é o canto de um amante. ”[9]
Ninguém escutará sem comoção este lamento de um homem a quem não foi dada a humildade ante Deus. Estamos, para além de uma psicologia da vontade de poder, ante o fato inescrutável de que a graça é concedida ou recusada.
Mas, sem dúvida alguma, tal comoção não nos impede de ver o que há de dúbio em tal confissão. A esta antepus a pergunta de se ao acaso a afirmação de sua vontade não era também um engano. A “canção da noite” parece confessar o engano – ele não quer ser Deus; é preciso que o seja por razões inescrutáveis. Frente a este novo motivo, que suprime o primeiro, surge a seguinte pergunta: é preciso que o aceitemos? É preciso considerar findada a dança dos simulacros? Eu creio que não. Continuemos o roteiro e perguntemos se a “canção da noite” não é também apenas mais uma máscara.[10] Tenhamos em conta que Nietzsche confessa saber sobre seu coração e sofrer por ele. Voltemos sua confissão contra ele e perguntemos: é realmente necessário tornar uma virtude a miséria de sua condição, que percebe ser o sofrimento de uma alma desordenada, um ideal e modelo de super-homem? Essa deficiência lhe dá o direito de dançar com máscaras dionisíacas?
E como não queremos ser vítimas dele, perguntemos com a brutalidade que nossa época exige: não seria melhor que esse homem calasse a boca? E se o lamento fosse mais que uma máscara, se fosse autêntico, se sofresse por seu estado, não sofreria então calado? Mas Nietzsche de modo algum emudece; e sua eloquência é a prova conclusiva de que o lamento estava no escopo de sua compreensão empática, de que não afetava decisivamente o núcleo de sua existência em rebelião contra Deus; o lamento não era autêntico; não era senão uma máscara. Assim como Marx não permitia que qualquer coisa interferisse em seu jogo de equivocidades, Nietzsche se nega a interromper o jogo de máscaras.[11]
Se tornam mais claros os contornos do fenômeno da proibição do perguntar.[12] O pensador gnóstico realiza de fato um embuste intelectual – e sabe que o faz. Podem ser distintos três estados deste movimento do espírito. Superficialmente se encontra o ato mesmo do engano. Poderia ser um autoengano, e muitas vezes o é, quando a especulação de um pensador criativo se degrada em um bem cultural que adquire a forma de um dogma de movimento de massas. Mas ali onde o fenômeno pode ser captado em sua origem, como em Marx ou Nietzsche, o saber acerca do engano se encontra em um extrato mais profundo que o engano mesmo. O pensador não perde o controle de si mesmo: a libido dominandi se volta contra sua própria obra e quer dominar também o engano. A conversão gnóstica se dá assim, funcionalmente como a conversão filosófica, a periagogé em sentido platônico.[13] Mas o movimento gnóstico do espírito não conduz à abertura erótica da alma[14], senão ao ponto mais profundo da persistência do engano, ponto no qual a revolta contra Deus se descobre como motivo e meta.
É possível agora, com a ajuda dos três estados do movimento espiritual, distinguir com mais precisão os correspondentes níveis do engano.
- Para o ato superficial é conveniente conservar a expressão “engano” que Nietzsche utiliza. O conteúdo do ato não se distingue necessariamente de um juízo incorreto dado por outros motivos que não os do gnóstico. O ato poderia ser também um “erro”. O caráter de engano é recebido a partir do contexto psicológico[15].
- No segundo estágio o pensador toma consciência da inverdade de seus enunciados ou especulações, mas persiste nela apesar de percebê-la. É a persistência em comunicá-los, ainda quando se sabe que são argumentos incorretos, o que faz com que se atribua adicionalmente ao ato a qualidade de “embuste intelectual. ”
- No terceiro estágio a revolta contra Deus é reconhecida como motivo do embuste. Se se continua com a fraude intelectual ciente dos motivos de sua revolta, o ato do embuste recebe o caráter ulterior de “mendacidade demoníaca. ”[16]
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