As Confissões de Santo Agostinho e a Filosofia de Eric Voegelin
Embora Eric Voegelin tenha retirado sua epígrafe de Ordem e História de Agostinho, ele escreveu pouco sobre o santo e nada publicou sobre as Confissões.[1] Ele ligou sua filosofia da história à de Agostinho comentando um texto do Comentário aos Salmos, e ambos os pensadores entendem a história pessoal e universal como um êxodo do tempo à eternidade.[2] No entanto, apesar do desinteresse de Voegelin à obra, as Confissões incorporam concretamente sua análise filosófica de natureza e história humanas. Apesar de todas as diferenças idiomáticas, a textura e a estrutura meditativa das Confissões representam o “paradoxo da consciência” de Voegelin no encontro divino-humano. Além disso, explorar o que Voegelin e Agostinho têm em comum renova nossa compreensão do porquê suas expressões diferem.[3]
O “Coração Inquieto” e “o Paradoxo da Consciência”
A frase mais conhecida das Confissões vem em seu primeiro capítulo e resume a compreensão de Agostinho sobre a natureza humana. O orador reconhece que Deus incita os seres humanos a se deleitarem em louvá-lo “porque nos fizeste para ti e o nosso coração está inquieto até que descanse em ti” (quia fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum donec requiescat in te; 1.1 .1)
A alusão a Gênesis I:26-27 sobre a criação dos seres humanos por Deus ressoa explicitamente, para os nossos ouvidos, como “tu nos fizeste” (fecitis nos). Mas, para os leitores de Agostinho, também era evidente em ad te, “para ti mesmo”, porque a Bíblia latina traduz o ato como Deus criador do homem “para [sua] imagem” (ad imaginam) em vez de “dentro” dele. De acordo com esse entendimento, somente Cristo é a Imagem de Deus e os seres humanos são feitos “para” essa Imagem. Mas o “para ti mesmo” de Agostinho também implica uma inclinação inata na natureza humana: por nossa própria natureza, somos atraídos para Deus.
É por este motivo que o coração humano está “inquieto” mesmo em meio a todos os prazeres do mundo. Tantas coisas cativam, mas nenhuma delas, finalmente, satisfaz. Agostinho apresenta o coração inquieto e a alegria que vem da adoração como indicadores, neste mundo, de que os seres humanos são feitos por e para Alguém além de si. Consequentemente, o coração agostiniano tem tanto uma incompletude, pois é “inquieto”, quanto um direcionamento para Deus. Sua frase, aliás, liga o indivíduo e a raça: “nosso coração é inquieto até que repouse em ti.” Essa inquietação se manifesta em cada coração humano e na raça humana como um todo. Em seu contexto, a frase explica por que temos prazer na adoração e, portanto, implica a Igreja. E a Igreja, como veremos, carrega a compreensão de Agostinho sobre o significado da criação e do propósito da história humana.
Portanto, a criação não é apenas um evento que aconteceu uma vez, há muito tempo, a Adão e Eva. Todo ser humano é feito “à imagem de Deus”, a inquietação de todo coração humano manifesta sua criação por Deus. Posteriormente nas Confissões, Agostinho toca na presença divina nos seres humanos, mesmo quando não temos consciência disso. Lembrando-se de quando o jovem Agostinho buscava Deus exteriormente “segundo o sentido da carne”, o bispo declara que Deus está “acima do que em mim há de mais elevado e é mais interior do que aquilo que eu tenho de mais íntimo” (interior intimo meo et superior summo meo; 3.6.11). Interior intimo meo pode ser livremente traduzido como “mais íntimo de mim do que eu mesmo”. A presença divina se mostra mais íntima do que o eu, porque o eu é formado pelos conteúdos da experiência. A presença divina, no entanto, constitui o ser humano como tal, como a criatura feita “à imagem [de Deus]” e, portanto, permite a experiência humana em primeiro lugar.
Da mesma forma, dirigindo-se à Beleza divina “sempre velha e sempre nova”, Agostinho lembra que “Tu estavas dentro, e eu estava no mundo exterior, e lá te busquei” (10,27.38). Agostinho afirma, sem ambiguidade, que Deus está de alguma forma presente na atuação da consciência dos seres humanos, quer saibamos disso ou não. A presença divina em nossa natureza nos torna “inquietos” em nossa busca pela felicidade. Nossa busca pela “vida feliz” (beata vita; 10,20-23) surge de nossas próprias profundezas, pois não temos nenhuma experiência terrena da felicidade pela qual ansiamos. Essa felicidade não é um objeto de experiência lembrada, mas nosso desejo por ela anseia tudo o que fazemos. Este anseio por sabe-se lá que felicidade é o anseio por experimentar a presença divina — “Quando te procuro, meu Deus, minha busca é pela vida feliz” [10.20.29] — e ela surge da presença divina dentro de nós. Para Agostinho, Deus é a fonte e o limite, a origem e o fim de todo desejo humano.
Essa presença divina atuando na consciência humana, interior intimo, é equivalente à “luminosidade” de Voegelin. A consciência humana difere da percepção animal porque está aberta a toda a gama de realidade. Essa luminosidade se manifesta, por exemplo, em símbolos do cosmos e do divino. É evidente em nosso desejo de compreender o significado de nossas vidas e, assim, nos sintonizar com ordens (ou contextos) além do nosso eu individual. A luminosidade aponta para “um evento de participação entre os membros na comunidade do ser”, pois cada pessoa está ciente de participar de ordens contextuais mais amplas, como a família, a sociedade e o mundo que as contém, e muitos reconhecem um relacionamento com o divino.[5] Essa participação consciente se manifesta na busca humana por significado.
Voegelin emparelha “luminosidade” com “intencionalidade” como as duas estruturas da consciência: elas podem ser distinguidas, mas não separadas, e seu interenvolvimento cria “o paradoxo da consciência”.[6] A intencionalidade é orientada para a “realidade-coisa“, assim como a luminosidade é para a “realidade-isso“.[7] Quando direcionamos nossa intencionalidade para coisas externas ou internas, no mundo ou na consciência, fazemos isso participando de uma ampla “realidade-isso”, que ilumina o que fazemos. A receptividade luminosa é a base de todos os atos intencionais. Por menor que seja um ato intencional, ele é realizado por um ser humano preocupado com o significado de seus atos, e “significado” implica nossa orientação luminosa para contextos maiores, até mesmo para o contexto final. Por outro lado, mesmo uma experiência luminosa, como a inspiração poética ou a oração mística, ocorre em uma pessoa que procura escrever ou adorar intencionalmente. Essa co-presença mútua gera “o paradoxo da consciência”. Por um lado, todo ato intencional é baseado na luminosidade: cada instância de apreensão de uma forma envolve toda a capacidade da mente. Por outro lado, essa luminosidade da consciência só pode ser reconhecida por um ato intencional e muitas vezes passa despercebida. Como nos direcionamos para o conteúdo intencional de nosso conhecimento e amor, facilmente negligenciamos a capacidade luminosa que os permite em nosso terreno.
Nas Confissões, esse paradoxo se manifesta no reino do desejo, na busca do jovem Agostinho pela vida feliz. O jovem Agostinho, crescendo rapidamente em sua carreira, satisfazia um desejo após o outro e ainda assim permanecia insatisfeito. Na verdade, quanto mais desejos ele satisfazia, mais eles pareciam se proliferar. O paradoxo dos desejos do jovem Agostinho é muito familiar: nada falha como o sucesso. Adaptando os termos de Voegelin, podemos dizer que ele satisfazia seus desejos intencionais às custas de seu desejo luminoso. Sua obtenção de riqueza, influência, prestígio e parceiras sexuais não amenizou a inquietação luminosa em seu terreno. Somente sua conversão à fé cristã pôde trazer um raio de paz ao seu “coração inquieto”, pois isso o esclareceu e o sintonizou com o desejo divinamente luminoso interior intimo, no fundamento de sua consciência. [8]
O homem é intencionalmente uma parte e luminosamente o todo do processo da realidade. Embora toda existência esteja envolvida na realidade, apenas os seres humanos participam nela porque somente nós (até onde sabemos) a simbolizamos conscientemente. Cada cultura que conhecemos, embora tecnologicamente primitiva, simboliza a totalidade da realidade de alguma forma e, portanto, obviamente, seus membros participam da realidade-isso assim simbolizada. O “processo da realidade” de Voegelin é geral o suficiente para cobrir não só o cosmos do mito, com seus processos governados por deuses intracósmicos, mas também o Deus transcendente do Cristianismo, que providencialmente governa todos os detalhes da história humana e do universo.
Mas sua formulação se mostra ainda mais radical. Pois minha participação no processo da realidade não é algo, como um casamento, do qual eu possa escolher participar ou não. O paradoxo da consciência de Voegelin implica que “o homem participa no processo da realidade” porque o processo da realidade participa no homem. “Participa,” aqui, é um termo estranho, mas uma boa filosofia escolástica, onde o Ser é considerado seres participantes. O processo da realidade participa dos seres humanos porque a realidade-coisa nos traz à existência e só nós entre os seres participamos conscientemente dela. No mito, por exemplo, a humanidade se origina do cosmos e de seus deuses intracósmicos, e a ordem social e cósmica é renovada por rituais que caracterizam nossa participação nela. Analogamente, na Bíblia, Deus cria pela palavra e faz a humanidade “à sua imagem”, as únicas criaturas que podem receber a palavra de seu ato criativo. Voegelin formula a verdade de Gênesis I de maneira universal: “todo homem tem realmente consciência de participar de um processo que não começa com os participantes, mas com a coisa misteriosa que envolve a todos“.[9] Participamos incessantemente do processo da realidade porque Ele participa imediatamente em nós.
Deste ponto de vista, podemos ver que “criação” em Agostinho e “participação” em Voegelin são símbolos equivalentes. Seus idiomas diferem porque Agostinho escreve como cristão, enquanto Voegelin concebe termos gerais o suficiente para abarcar uma variedade de formas simbólicas de toda a história mundial. Ainda assim, apesar dessas diferenças de escopo, o teólogo antigo e o filósofo moderno estão preocupados com experiências do mesmo caráter. Para Agostinho, a criação é uma característica constante da vida humana porque a presença divina interior intimo constitui um ser humano como tal, uma “imagem de Deus”. Para Voegelin, porque participamos do processo da realidade a cada momento, ela participa de nós. Na “realidade do ser” do filósofo, como no Deus do teólogo, “vivemos, nos movemos e temos nosso ser”. E assim, o nosso ser não é apenas nosso: a vida humana está permeada pelo paradoxo da consciência, que é o paradoxo do “coração inquieto”, onde Deus está presente e ainda por ser encontrado.
Textura meditativa e o paradoxo da “história”
Todas as Confissões se desenvolvem no dinamismo do coração inquieto para com Deus, porque Deus está presente nele intimamente. A obra não é meramente “sobre” a busca de Deus por Agostinho: ela também representa essa busca em sua forma literária. Ao fazer isso, ele incorpora a análise de Voegelin do paradoxo da consciência enquanto se desenrola na “história”, o relato da busca de um buscador pela verdade da existência. Para entender essas correspondências, devemos primeiro nos atentar para algumas características básicas das Confissões.
É bem sabido que as Confissões são uma oração, um diálogo com Deus. Peter Brown observa a originalidade de Agostinho em fazer da oração a forma literária de uma obra tão longa e a chama de “conversa vívida.[10] Solignac também chama a obra de “um diálogo com Deus” e, argumentando que Deus está sempre presente como “um interlocutor invisível”, ele insiste que “ao longo desses treze livros, Agostinho se deixa ser ensinado por Deus” (ênfase dele).[11] G. Bouissou descreve as Confissões como “um diálogo a uma só voz” porque “só Agostinho fala — ou melhor, só ouvimos a sua voz — mas da sua linguagem, dos seus sentimentos, do tom do seu discurso e, de certa forma, das reações do seu semblante, sentimos as respostas divinas”.[12] Os estudiosos frequentemente registram sua compreensão e apreciação desse aspecto das Confissões.
Agostinho, o narrador, e Agostinho, o autor, assim, são paralelos de Sócrates e Platão num diálogo platônico. O falante Sócrates não pode revisar apropriadamente o que disse: ele pode apenas acrescentar algo. Ele pode se retratar, como no Fedro, reformular ou qualificar, mas apenas falando mais. Da mesma forma, o narrador Agostinho pode corrigir uma afirmação anterior sobre, digamos, a natureza do tempo, não apagando e revisando, mas apenas acrescentando ao que ele disse. Por outro lado, presumimos que Platão tenha revisto seus diálogos à medida que os aperfeiçoou, como fez Agostinho, o autor, com o diálogo de suas Confissões.
A consistência meditativa das Confissões é cheia de surpresas para o leitor porque é cheia de surpresas para Agostinho, o narrador, rezando em um presente contínuo. O narrador fica surpreso com o que está acontecendo ao orar: “Por que falo dessas coisas? Agora não é hora de fazer perguntas, mas de vos fazer uma confissão.”(4, 6-11) Ele afirma que Deus conduz sua oração em direções surpreendentes: “De onde e até que ponto levaste a minha memória a incluir estes acontecimentos na minha confissão a ti, quando já passei por muitas outras coisas que esqueci?” (9, 7-16; cf. 2, 7-15). Agostinho, o narrador, não está no controle total de suas Confissões porque a obra se desenvolve como um diálogo orante entre ele e Deus. Por definição, entretanto, Agostinho, o autor, tinha controle total sobre a obra. Porque ele estava além do todo formado, como seu compositor e revisor, este já não continha surpresas para ele.
Por que essas distinções são importantes? Precisamos delas para uma compreensão segura do conteúdo meditativo das Confissões como um diálogo espontâneo com Deus, cheio de descobertas e surpresas não ensaiadas e não revisadas pelo narrador Agostinho. Somente a partir dessa perspectiva podemos ver o paralelo crucial entre a vida do jovem Agostinho e a oração do narrador: assim como Deus conduziu o jovem Agostinho à fé cristã, mesmo em todas as suas divagações morais, também Deus guia as 'Confissões' do narrador, mesmo através todas as suas digressões. Em outras palavras, assim como a vida do jovem Agostinho, em todos os seus erros, revela a orientação providencial de Deus, assim também as Confissões representam, momento a momento, a mesma dialética entre a graça divina e a liberdade humana no desdobramento de sua oração. Por meio dessa homologia, a obra Confissões cumpre o que promete. Um tratado, com o controle de seu autor sobre seu argumento, pode analisar a dialética entre graça e liberdade, mas não pode incorporá-la. Apenas a textura meditativa de um diálogo que se desdobra espontaneamente com Deus pode incorporar e representar essa dialética. As Confissões, portanto, unem indissoluvelmente logos e ergon, conteúdo e forma. Seu próprio desdobramento manifesta a interação dinâmica entre a busca humana por Deus e a graça de Deus que o leva adiante.
Voegelin descreve uma indissolubilidade semelhante no que ele chama de “história”.[14] Como sempre, ele está refletindo sobre a descoberta e a comunicação da “verdade da realidade”. Essa verdade não é um mero conteúdo de conhecimento, mas uma verdade a ser vivida e, ao ser vivida, traz a ordem correta às pessoas e sociedades ao sintonizá-las com a “realidade”, o amplo contexto que dá sentido às suas vidas. “A história”, escreve ele, “é a forma simbólica que o questionador deve adotar necessariamente quando relata sua busca como um evento de procura pela resposta de sua busca humana a um movimento divino, a verdade da realidade de uma existência esperada, mas ainda não revelada”.[15] As palavras em itálico são termos técnicos. O “movimento divino” dá origem a uma “resposta humana”, porque o ser humano, procurando sintonizar-se com “a verdade da realidade”, questiona a realidade na busca de viver verdadeiramente. Este questionador experimenta uma epifania, ou revelação ou conversão, algum “evento” de mudança de vida. Seu “relato” desse “evento” deve assumir a forma de uma história porque um evento de mudança de vida implica em um “antes” e um “depois”, uma sequência narrativa.
As Confissões de Agostinho incorporam a compreensão de Voegelin da “história”, mas sua textura meditativa como uma prece a encena em um nível superior. Imagine as Confissões não como um diálogo devoto com Deus, mas apenas como uma autobiografia espiritual, nos livros 1-9, seguida pelas reflexões no livro 10 e o tratamento de Gênesis nos livros 11-13. A obra ainda seria uma “história” no sentido de Voegelin. A conversão do jovem Agostinho à fé cristã continuaria sendo o evento crucial, com o antes e depois. O “antes” seria tratado a partir das perspectivas geradas por esse acontecimento: o cristão maduro encara a sua juventude pré-cristã como uma viagem errante para a fé. O “depois” ainda emergiria desse evento, como Agostinho reflete sobre o seu eu atual (livro 10) e se envolve no seu trabalho de bispo, como expositor das Escrituras (livros 11-13). Implicitamente, o acontecimento luminoso da conversão de Agostinho informaria a narrativa intencionalista de toda a obra, tornando-a a “história” de uma resposta humana ao movimento divino.
Mas as Confissões são um diálogo com Deus, desde as primeiras até as últimas palavras, e como oração ela encena, a cada momento, uma resposta humana ao movimento divino. O evento luminoso da fé não é simplesmente uma conversão passada que informa a obra implicitamente, mais do que isso, o evento do movimento divino se manifesta explicitamente em cada momento da oração de Agostinho. Consequentemente, as Confissões representam o paradoxo da consciência, de Voegelin, na história. A intencionalidade do narrador humano interage continuamente com a luminosidade da presença divina. Podemos distinguir as partes envolvidas neste diálogo contínuo, que representa a dialética da liberdade humana e da graça divina, mas não podemos separá-los. Porque Deus está presente interior íntimo no coração inquieto de Agostinho, não podemos separar a resposta do narrador do movimento divino. A luminosa Presença divina atuando na consciência de Agostinho torna seu coração inquieto em busca de Deus. Agostinho, o narrador, e Deus podem ser distinguidos, mas não separados, pois são parceiros em um evento participativo. Na composição meditativa das Confissões, o evento luminoso da presença divina está entrelaçado com a narrativa intencional de Agostinho, de forma explícita, contínua e inextricável.
Estrutura Meditativa e Movimento Divino
As Confissões se desdobram como uma ascensão cristã platônica e, antes de examiná-la, faremos bem em lembrar os padrões de pensamento que a governam. A ascensão é baseada no esquema exitus-reditus: como todas as coisas vêm (exitus) de Deus, todas as coisas (de alguma forma), e especialmente os seres humanos, retornam (reditus) para Deus. Este “retorno à Origem”, então, é uma “ascensão aos princípios” (ou “ao primórdio das coisas”): ele se move progressivamente para princípios logicamente anteriores e, portanto, ontologicamente mais elevados. Esses princípios platônicos não são meras abstrações ideativas, mas universais, e por isso denominam domínios do ser. Consequentemente, a ascensão se move não apenas em direção a categorias progressivamente mais gerais, como em nossa forma nominalista de pensar, mas para domínios do ser mais universais e reais, porque eles compreendem mais da realidade. Nesse movimento meditativo para as origens, então, o caminho a seguir é o caminho de volta, e o que vem por último é realmente o primeiro, assim como o que vem primeiro é o último. Ao mesmo tempo, o platônico chega a esse reino “acima de si mesmo” (supra se) depois de voltar-se para dentro, para longe das coisas “fora dele” (extra se), voltando-se para dentro da alma (in se). No De Vera Religione, Agostinho incentiva esse movimento para o interior: “Não saia, volta-te para o teu interior, pois a verdade mora no homem interior”.[17] A ascensão platônica, então, move-se não apenas “para cima”, mas também “para dentro”, para princípios universais ontologicamente mais elevados e mais interiores. Desse modo, o meditador se move em direção à presença divina interior intimo.
Vejamos como esse padrão funciona nas Confissões, primeiro como um progresso para o que é anterior, lógica e ontologicamente, e depois como um movimento interior.[18] Depois de examinar algumas de suas memórias em sua autobiografia espiritual (Livros 1-9), o narrador Agostinho explora a memória, no Livro 10, e o tempo, no Livro 11. As memórias não podem existir sem memória, e a memória não pode existir sem tempo. A memória, então, é lógica e ontologicamente anterior às memórias, assim como o tempo para a memória. O tempo, como pré-condição da memória e das memórias, é anterior e superior a ambas. O livro 12 é amplamente ocupado com a interpretação de Agostinho a respeito de “céu e terra” em Gênesis I:1. Ele afirma que “céu” se refere ao “céu dos céus” (12, 8-9), a “criação incorpórea”, e “terra” se refere à “matéria sem forma” da qual o mundo seria feito (12, 3-7). Ambos, ele argumenta, existem antes do tempo, embora nenhum seja propriamente eterno (12, 12-13). Antes que o mundo exista, não há tempo; “céu e terra,” forma pura e matéria pura são os constituintes pré-temporais do mundo. Portanto, “céu e terra”, no Livro 12, são lógica e ontologicamente anteriores ao tempo, no Livro 11.
O livro 13 conclui a obra e termina interpretando os sete dias da criação como uma alegoria para a criação e o crescimento da Igreja (13,12-38). Resumindo seu tratamento dos seis dias no capítulo 34, Agostinho começa: “Vimos (inspeximus) essas coisas de acordo com o propósito místico (figurationem) com o qual tu desejaste (voluisti) que viessem a existir em tal ordem, ou a ser escrito em tal ordem “ (13, 34-49, tradução nossa). Agostinho afirma que sua alegoria para a Igreja revela o propósito para o qual Deus desejou a ordem sequencial da criação, ou da história da criação. Por mais estranha que a alegoria e a afirmação de Agostinho possam ser para nós, o ponto fundamental era inteiramente tradicional. O pastor de hermas afirmou que “O mundo foi criado para o bem da Igreja”, e Clemente de Alexandria explicou: “Assim como a vontade de Deus é a criação e é chamada de 'o mundo', também sua intenção é a salvação dos homens e é chamada ‘a Igreja’”.[19] Deus criou o mundo para os seres humanos e os seres humanos para si mesmo, para compartilhar sua vida com eles.
Para Agostinho, portanto, a alegoria da Igreja no livro 13 revela o propósito de Deus ao criar o mundo, ou ao inspirar seu relato no Gênesis. Visto que o propósito é lógica e ontologicamente anterior ao ato, a Igreja, como propósito de Deus, é lógica e ontologicamente anterior à criação. Além disso, como corpo místico de Cristo, a Igreja é entendida como eterna: ela precedeu o mundo na mente de Deus e perdurará além do fim do mundo no “sábado eterno” (13, 35-38) de sua presença. O propósito de Deus ao criar é logicamente anterior e ontologicamente superior a todas as coisas criadas. A ascensão meditativa de Agostinho não pode ir mais longe, e as Confissões chegam ao fim.
Consideremos agora o progressivo movimento interior dessa ascensão. Isso se mostra óbvio no progresso das memórias, nos Livros 1-9, para a memória, no Livro 10, pois a faculdade da memória se mostra mais profunda do que seu conteúdo. Na opinião de Agostinho, o poder inato da memória fundamenta e, portanto, governa nossas memórias individuais. Nos livros 11, 12 e 13, o progresso interior da ascensão de Agostinho emerge nos capítulos finais. Perto do final do Livro 11, Agostinho conclui que o tempo contém a memória como um de seus aspectos. Ao descobrir que só existe o presente, analisa o tempo psicologicamente como “atenção” (attentio; 11,28) no presente para várias coisas: a memória é a atenção às coisas passadas; o presente é atenção às coisas presentes; expectativa é atenção às coisas futuras. A atenção, então, é necessária à memória, anterior a ela e mais profunda na alma. Não poderia haver memória sem o poder inato de atenção, que está por trás e a governa.
De “atenção”, perto do final do Livro 11, a ascensão se move para “a vontade” (voluntas) nos capítulos finais do Livro 12. Depois de tratar de sua própria e de várias outras interpretações de “céu e terra” nos capítulos 2-22, o narrador Agostinho começa a refletir sobre os princípios hermenêuticos. Tudo isso liga o desejo (voluntas) dos intérpretes que tentam compreender a intenção (voluntas) de Moisés e de Deus em Gênesis I (12, 23-24). O livro 12 termina com a oração de Agostinho para entender “o que a tua verdade quis [voluerit] por suas palavras [nas Escrituras] dizer a mim, que também falou a [Moisés] o que quis [voluit]” (12, 32-43). É claro que o direcionamento da atenção depende da vontade, pois a vontade é um princípio anterior à atenção, mais importante e poderoso porque mais interior, mais profundo na alma. A progressão de Agostinho de “atenção”, no final do Livro 11, para “vontade”, no final do Livro 12, marca um movimento no interior da alma.
O livro 13, como vimos, termina com o propósito que Deus deseja para a criação. Obviamente, a vontade de Deus (voluisti; 13, 34-49, acima) é anterior e superior à vontade (voluntas) dos seres humanos. Ao mesmo tempo, a finalidade que Deus deseja para a criação é a Igreja, para partilhar a sua vida com as criaturas humanas feitas à sua imagem, e este desejo divino é marcado pela sua presença interior intimo no inquieto coração humano. “Tu nos fizeste para ti mesmo, e nosso coração está inquieto até que repouse em ti. “ Esta formulação aponta para a Igreja: não apenas todo coração humano está inquieto para com Deus, mas também um único coração corporativo busca descanso na presença divina. Na Igreja, a criação divina continua na providência divina, guiando nosso coração inquieto, individual e corporativamente, em direção ao seu descanso eterno.
Quando Agostinho reconhece a Igreja como propósito de Deus na criação, no final do livro 13, ele reconhece o aspecto mais profundo de si mesmo. Aqui está a base divina do anseio que anima sua vontade (Livro 12), sua atenção (Livro 11) e sua memória (Livro 10). Mais para dentro, ele não pode ir. Seu íntimo é o superior, pois Deus é “interior intimo meo et superior summo meo” (3, 6-11). Assim como Deus conduziu o jovem Agostinho, apesar de todos os seus erros, à fé cristã, e assim como conduz as Confissões, apesar de todas as suas digressões, em uma ascensão que culmina na visão do propósito divino da criação, ele dirige a história humana, apesar de todos os seus caprichos, para a salvação em si mesmo. A providência que guia a vida de Agostinho e seu diálogo com Deus o levam finalmente a imaginar a providência que guia toda a história humana. A vida e as Confissões de Agostinho provam, no fundo, instâncias da Igreja, aquele movimento universal divinamente guiado que começa antes do tempo e termina além dele.
A alegoria do livro 13, portanto, completa a compreensão de Agostinho de seu coração inquieto em seu primeiro capítulo. A estrutura meditativa das Confissões move-se para uma autocompreensão cada vez mais profunda e, portanto, mais universal. Agostinho queria que reconhecêssemos aspectos cada vez mais profundos de nós mesmos neste movimento e, então, que víssemos a nós mesmos como ele, marcados em sua origem, ansiosos, e destinados a Deus. Para Agostinho nas Confissões, a Igreja é, ao mesmo tempo, a forma mais profunda, elevada e universal de autocompreensão humana.
Voegelin transpõe a Igreja de Agostinho do “mundo conhecido” do final do Império Romano para o contexto moderno da história mundial e suas muitas religiões.[20] Sob esta luz, a Igreja é simplesmente uma versão do movimento divino-humano universal, que se manifesta de muitas formas. “Movimento”, como vimos, é um termo técnico em Voegelin, mas tem um sentido amplo e duplo. Pois uma vez que o movimento divino encontra sua resposta humana em uma “história” adequada, ele atrai outros seres humanos para sua verdade e assim se torna um movimento social e histórico.[21] O evento do movimento divino atuando na resposta humana torna-se efetivo na sociedade e na história porque todos os seres humanos buscam viver verdadeiramente, e pelo menos alguns encontram suas vidas iluminadas pela história daquele evento luminoso. A verdade da história os reúne em um movimento social e, portanto, histórico. Mas houve muitos desses movimentos em todo o mundo ao longo da história. Há “uma pluralidade de buscas, contando uma pluralidade de histórias”, e todas elas são verdadeiras.[22] Nenhum deles é verdadeiro “literalmente” porque, como nos disseram infinitamente desde o Iluminismo, suas narrativas intencionalistas diferem. Mas tudo é verdade quando aprendemos a ver como suas histórias apontam simbolicamente para a experiência do movimento divino luminoso na consciência humana.
Voegelin criou uma linguagem filosófica para tratar a unidade subjacente a esta pluralidade de histórias verdadeiras, mesmo enquanto trabalhava para descobrir e definir as diferenças entre os tipos de simbolização. Ele se atentou principalmente a como os simbolismos da revelação, em Israel, e da filosofia, na Hélade, emergiram do mito cosmológico e estavam relacionados a ele. Mas ele também estudou o surgimento da historiografia na China antiga e os Upanishads na Índia.[23] Em todas essas formas simbólicas, incluindo o mito, ele encontrou a verdadeira história da resposta humana ao movimento divino. As simbolizações diferem porque os contextos culturais diferem, assim como as nuances da experiência: a filosofia helênica, por exemplo, apresenta a busca humana movida pelo fundamento divino, enquanto a profecia hebraica enfatiza a irrupção divina no ser humano.[24] O trabalho de Voegelin é difícil em grande parte porque ele teve que inventar uma linguagem para lidar com esta unidade de experiência e tipologia de simbolismos. A linguagem que ele inventou é propriamente filosófica: religiosamente neutra, semanticamente precisa e empiricamente abrangente.
Mas Voegelin inventa essa linguagem com referência a grandes predecessores que lutaram com os mesmos problemas em seus próprios contextos. Ele elogiou Santo Agostinho por estar “bem ciente de que a estrutura da história é a mesma estrutura da existência pessoal”, admirando particularmente esta formulação das Enarrationes in Psalmos 64:2: “Começa a sair quem começa a amar. Pois muitos saem ocultamente, e os pés dos que saem são os afetos do coração; e saem de Babilônia.” Neste texto, “os símbolos históricos do êxodo da Babilônia expressam o movimento da alma quando é atraída por amor a Deus”.[25] Aqui está uma versão da resposta humana ao movimento divino, simultaneamente pessoal e corporativo. Simboliza um movimento ao mesmo tempo divino e humano, individual e eclesial.
O mesmo movimento é simbolizado, como vimos, na frase de Agostinho “Tu nos fizeste para ti mesmo e nosso coração está inquieto até que repouse em ti”. Também anima a fórmula mais geral de Voegelin, “o homem participa do processo da realidade”.[26] O processo da realidade é divinamente movido, portanto, em certo sentido universal. A frase de Voegelin cobre os ritmos cósmicos divinos simbolizados no ritual e no mito, bem como os movimentos divino-humanos na história, simbolizados na revelação, filosofia e outras formas. Por meio dessas formas, o ser humano participa do processo da realidade, sintonizando-se conscientemente com ela para alcançar sentido e ordem em sua vida. Para Voegelin, em suma, os simbolismos espirituais de todo o mundo e sua história revelam um movimento divino-humano universal. A Igreja de Agostinho é um exemplo entre muitos.
Com respeito a essas questões fundamentais, então, um acordo profundo liga Agostinho, nas Confissões, à filosofia de Eric Voegelin. Por mais diferentes que sejam seus idiomas, a substância existencial de seus insights se mostra equivalente. Podemos até dizer que Agostinho foi um cristão voegeliniano da antiguidade tardia e Eric Voegelin, um agostiniano filosófico da era moderna. Ambos concordariam que, em última análise, toda natureza e atividade humana, destino pessoal e história universal podem ser resumidos em duas declarações equivalentes: “Tu nos fizeste para ti mesmo, e nosso coração está inquieto até que repouse em ti“ e “ O homem participa do processo da realidade”.[27]
Comentários
Não há comentários nessa publicação.