Ler Platão - O tema da ocultação e a retenção do saber

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Por Daniela Soares
27 de maio de 2022

Thomas Alexander Szlezák nasceu em 1940, cursou Filologia Clássica, Filosofia e História nas Universidades de Erlangen, Munique e Tübingen. É especialista em Platão, autor de Platon und Aristoteles in der Nus-Lehre Plotins (Basel-Stuttgart: Schwabe & Co. 1979) e Platone politico (Roma: Treccani, 1993). O autor é defensor do chamado paradigma de Tübingen, isto é, a defesa da existência de doutrinas não escritas de Platão. Assim, boa parte de seu trabalho concentra-se sobre a crítica à escrita tecida pelo filósofo grego. Ler Platão é uma de suas obras, traduzida para o português por Milton Camargo Mota e faz parte da coleção Leituras Filosóficas da Editora Loyola, publicada em 2005, constituída de um prefácio e 27 capítulos, além de referências bibliográficas e um índice de autores citados. Nesta resenha, apresenta-se o quinto capítulo: O que não se conhece não se vê.

1. O TEMA DA OCULTAÇÃO

Szlezák quer introduzir o leitor contemporâneo na leitura do filósofo grego Platão. Mas o quer levando em consideração um dos pontos centrais da escola de Tübingen-Milão: a existência das doutrinas não escritas. O estudo da obra do filósofo grego depende da compreensão que estas doutrinas ocupam no esforço empreendido por Platão para entender o real. Partindo dos próprios diálogos do ateniense, aponta as características que inferem um limite para a escrita no domínio da filosofia.

As “passagens de retenção” é uma delas. Nestas passagens, de forma proposital, a personagem Sócrates esconde conteúdos que possui, seja por que a circunstância não é adequada para aquele saber ou por que seu interlocutor não possui caráter e preparo intelectual para a recepção destes conhecimentos. De forma que, percebe-se nos diálogos outros assuntos, outros debates que pertencem a uma esfera de comunicação distinta: a oralidade. Portanto, Szlezák pretende demonstrar os limites da interpretação moderna ao ignorar as doutrinas não escritas — e a própria crítica à escrita tecida pelo filósofo ateniense — e centrar-se meramente nos diálogos.

O erro desta interpretação foi cometido devido aos próprios preconceitos de nossa época, de forma a compreender os escritos da antiguidade pelas nossas lentes. O autor ressalta o fato de que na Europa ter se postulado “uma publicidade incondicionada dos frutos do trabalho filosófico e científico “(SZLEZÁK, 2005, p.29), tornando-se difícil para os modernos conceberem um trabalho que tenha a intenção de ocultar seu conteúdo, de forma que precisamos recordar que:

No entanto, vale lembrar que foi só no início no século XVII, e não sem dificuldade, que se adotou o princípio de abertura do trabalho intelectual, como demonstrou o sociólogo norte-americano Robert K. Merton; atribuir essa atitude, como se fosse natural, a épocas anteriores seria, por conseguinte, ingênuo porque a-histórico (SZLEZÁK, 2005, p. 30).

Porém, enquanto sombra, a escrita aponta para uma esfera superior na qual o que não é abordado nos diálogos o era pela exposição oral. A primeira evidência a esse respeito consiste na retenção de conteúdo que perpassa toda obra literária platônica, isto é, há uma consciente retenção do saber filosófico, de acordo com Szlezák.

2. SÓCRATES RETÉM SABER

Em determinados momentos, a personagem central, geralmente Sócrates, se recusa a abordar certo assunto ou apresenta-o como apropriado para outro momento. Essa retenção é igualmente associada à disposição de caráter de quem o ouve: ele não expõe algo que a alma do seu interlocutor não será capaz de compreender.

Para defender o argumento levantado, Szlezák introduz sua defesa em dois pontos. O primeiro é demonstrar que nos diálogos, com ênfase no Eutidemo, o próprio Sócrates retém conhecimento dos seus interlocutores. Para o autor, Sócrates age “esotericamente” em Eutidemo, por ser conhecedor da doutrina da anamnese e das Ideias, porém, o leitor desse diálogo ainda não percebe tal fato, a não ser posteriormente mediante comparações com outras obras, como Mênon, Fedro e República.

Sendo Sócrates já conhecedor dessas doutrinas, ele não as expõe para seus interlocutores, Eutidemo e Dionisodoro. Para o autor, essa atitude demonstra que é habilidade do filósofo reter conhecimento, se em determinadas circunstâncias isso for necessário. Ou seja, compreende-se que existe uma “responsável comunicação do saber que leva em conta os limites do receptor” (SZLEZÁK, 2005, p.33).

Dessa maneira, um dos aspectos que diferencia o filósofo do sofista é o modo pelo qual comunicam o saber: o sofista o apresenta querendo vendê-lo o máximo possível, sem considerar as necessidades e o grau de educação dos seus potenciais interlocutores. O sofista não retém nada, para ele a comunicação do saber é aberta, é antiesotérica, como Platão exemplifica no diálogo que recebe o nome do sofista Protágoras:

Admito ser um sofista e educar as pessoas, julgando que a precaução de admitir em lugar de negar é a melhor das duas. Também cogitei de outras precauções de modo a evitar, pelos deuses, qualquer dano que possa sofrer por admitir que sou um sofista. Já exerço essa profissão há muitos anos, muitos daqueles que vivi tendo sido devotados a ela. E sou suficientemente velho para ser pai de qualquer um de vós aqui. Daí a mim parece, decerto, sumamente adequado, atendendo a teus desejos, proferir meu discurso acerca dessa matéria na presença de todos nesta casa (Protágoras, 317c).

3. OS DIÁLOGOS APONTAM PARA ALÉM DE SI MESMOS

O segundo ponto consiste nos diálogos apontarem para além de si. É exemplificado que em Cármides e República . O ideal do filósofo encarnado na personagem Sócrates não difundi indiscriminadamente o conhecimento. No primeiro diálogo, o mestre de Platão possui o remédio para curar a dor de cabeça da personagem Cármides, no entanto, o remédio só poderia ser útil a quem tivesse exposto sua alma ao “encantamento”. O medicamento está com Sócrates e ele é capaz de aplicá-lo, mas há o impedimento pois Cármides não expôs sua alma a tal encantamento (155 e) que o filósofo entende ser necessário. Ou seja, o receptor ainda não está preparado para o “remédio” que o filósofo possui.

Situação similar ocorre na República. As personagens Glauco e Adimanto querem que Sócrates exponha seu conceito de justiça e o próprio acaba expondo de certa maneira mas quando se chega a Ideia de Bem, postula que coisas importantes estão deixadas de lado, deixando claro, posteriormente, que um dos motivos de não abordar explicitamente o assunto é o fato de Glauco não ter preparo intelectual para tais argumentações:

Porém, meu caro Glauco, observei, não poderás acompanhar-me, apesar de toda a minha boa vontade. O que vais ver não é a imagem do que estamos estudando, mas a própria verdade, pelo menos tal como a represento (República 533 a).

Assim, vemos que há assuntos que de alguma maneira já são delineados nos diálogos, mas extrapolam as linhas apresentadas na escrita. Percebemos que existem coisas importantes para serem ditas, como a Ideia de Bem, mas que não são profundamente abordadas, pois não serão através da escrita. Estas coisas pertencem a outra forma de comunicação, exigindo características específicas para a transmissão do saber filosófico, como, por exemplo, o preparo intelectual dos ouvintes.

O que espanta o autor é a modéstia destes pontos na moderna exegese platônica, com ênfase nas últimas gerações. Ao seu ver, isso se explica pelo fato de nossa época, desde o Iluminismo, chegando a Pós-modernidade, “não encontrar aplicação alguma para a limitação consciente da comunicação filosófica” (SZLEZÁK, 2005, p. 36), portanto, esta época só vê aquilo que conhece e não conhece o que não vê.

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Daniela Soares

Estudante graduanda em Filosofia e técnica em Museologia.


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