Atendo-se ao cerne do livro e observando as relações que se dão entre os senhores Basil Hallward, Lord Henry Wotton e Mr. Dorian Gray, personagens centrais da trama, podemos notar que o enredo mostra como uma consciência – a consciência de Dorian Gray – lida com os impulsos e paixões de nossas vidas. De um lado temos Basil Hallward, uma pessoa ligada às naturezas mais elevadas, como a beleza, a moralidade, e noções de uma existência espiritual além deste nosso mundo de enganos. Sua contra-parte, Lord Henry Wotton, é um homem dos prazeres, da libertinagem e do bom viver, um homem à la Nietzsche, que apesar do discurso liberal destinado às pessoas de um futuro que ele alega ser o ideal, não passa de um homem de pose, um homem de mentira que, como citado por Basil, “não prega a moral, contudo não comete más ações”.
Considerando as descrições dos coadjuvantes e principalmente as suas ações, que muitas vezes são ações limitadas – uma conversa, uma sugestão ou um apelo --, é fácil entender que ambos são, na vida narrada de Dorian Gray, aquilo que C.S. Lewis nos apresenta no livro Cartas de um Diabo ao seu aprendiz: as forças que tencionam o ser humano no cume afiado do livre arbítrio, com sopros de inspiração nas escolhas que fazemos em meio as circunstâncias da vida. C.S. Lewis imagina que da mesma forma que temos, desde o nascimento até a morte, um Santo anjo da guarda que nos auxilia ao longo deste vale de lagrimas, temos também um demônio tentador, que cuida para ser o mais competente possível em sua tarefa, no qual o fim último é perder a nossa alma. Eis o motivo pelo qual vemos Basil Hallward lutar para esconder Mr. Dorian Gray das influências de Lord Henry.
Basil foi na vida do personagem central a força que guia as boas ações, uma influência que o leva ao alto, que inspira cada vez mais a capacidade de se maravilhar com a beleza da criação -- no qual se encaixa a de Dorian --, com a beleza da imaterialidade. Foi aquele que esteve ligado à sua consciência, ligado as realidades espiritais, aquele que lhe imprimiu a alma. O homem que personificava a voz de nossa natureza divina, que sussurra um apelo sempre que nossa alma está prestes a ser deformada pelos pecados de nossas ações.
De forma assimetricamente oposta, Lord Henry encarnou os nossos instintos, externos e internos, as reações do corpo perante as situações e a busca desenfreada pelo prazer. Representou na trama o que Cristo nomeou como mundo. Personificou a tendência que temos de tomar aquilo que vemos e sentimos pela única realidade existente. Lord Henry, entre aceitar a presença ou ausência de Deus em um homem que sente prazer em espancar um gato, optaria pela terceira via: negaria o gato. Era o puro cinismo, a pura dissimulação. Nunca coeso, sempre maleável como água. Tudo o que lhe interessava eram os prazeres; as sensações, pois era inimigo declarado do tédio e a única coisa que temia verdadeiramente era a morte.
Mr. Dorian Gray, pouco tempo depois de conhecer a influência de seus pecados, realiza o que o Harry sempre esteve em busca. Apaixona-se pelo prazer. Apaixonou-se pelo prazer que lhe trazia a representação de uma jovem -- e exatamente assim, apenas pela representação. Apaixona-se pelo exterior de uma moça sem ao menos conhecer quem era a alma que guiava as atuações. Pouco tempo depois ocorre o ponto de ignição da vida de Dorian: a moça suicida-se.
O evento da morte traz pela primeira vez uma alteração à figura de Dorian. Não uma alteração física, mas uma alteração na alma, que está agora espelhada num retrato, passível de toda a corrupção que sofreria o corpo do personagem, livrando-o de sofrer a degradação que o pecado causa na carne, e é aqui que o ponto de ignição causado pela morte da atriz Sybil nos traz. Quando ele se dá conta de que o quadro é quem sofreu a corrupção de seu pecado, mudando de aparência, ele entra em desespero, chegando à situação em que a maioria das pessoas é mais suscetível as ideias que são perigosas e mortais, em que somos mais suscetíveis as influências e aos impulsos. Num primeiro momento reconhece seu erro, após ver nitidamente, através do espelho de sua alma, que havia cometido um pecado e que isso lhe transformara o espírito. Dorian Gray arrepende-se, promete a si mesmo estar disposto a ouvir a voz de Basil, pois notou que dialogou com o Diabo, e o simples diálogo o levou à derrota. Tomando consciência disso, desespera-se ainda mais e, neste momento, em que a razão é completamente tomada pelo medo, eis que lhe aparece Lord Henry, como um caçador à espera da presa, como um tentador que pula de sombra em sombra, desforme, trazendo-lhe ideias aos ouvidos, oferecendo-lhe a irresistível fuga de todas as culpas: o prazer.
Mr. Gray cai num longo período de pecados. Abandona a voz de sua consciência, aquele que lhe mostrou a beleza de sua alma -- pois este também lhe mostrou que o preço do pecado é a morte. Basil é deixado de lado, e num mergulho profundo no baço lago dos prazeres, Dorian encarna o próprio discurso de Lord Henry, aquele que outrora sussurrou em seus ouvidos aquelas ideias venenosas. A ideia de que apenas o prazer vale a pena, a única coisa digna de posse é a beleza e que o silêncio, a calmaria, é tudo a sempre ser evitado. Mr. Dorian Gray torna-se agora um homem como a maioria dos de nossa sociedade, movido apenas pelos impulsos e pelos prazeres, fugindo de sua consciência, como fogem os homens do nosso século, suprimindo toda e qualquer razão pelo impulso desenfreado das paixões da carne.
A forma sempre jovial de Dorian lhe permite isto. Seu corpo jovem pode manter os impulsos das paixões vivos – e acredito que isso seja proposital da parte do autor – não havendo, dessa forma, espaço para aflorar a razão. Há sempre disposição para mais uma dose de prazer que outra vez lhe manterá longe da consciência de seus pecados, que se fosse encarada de frente o fariam ter de mudar de vida. Assim é o nosso tempo, que não acredita que exista um reino que não seja deste mundo. Antes, acredita que tudo se encerra aqui e por isso a vida deve ser vivida e realizada neste plano, buscando se manter sempre no auge da sua juventude – como podem ver pelo rosto de nosso amigo e conterrâneo Álvaro Dias --, com vitalidade suficiente para a busca de mais prazeres, com disposição para o pecado, fugindo diariamente da feiura da velhice, como nos disse Lord Henry, afinal, a velhice pode trazer algum bocado de sobriedade e nos mostrar que as ideias de 1820 não são ultrapassadas; mostrar que o passado é que contém a verdade inalterável do mundo, que os clássicos são clássicos não por serem velhos, mas por serem verdadeiros.
Ao fim de quase duas décadas, talvez pelo peso das repetíveis sensações, Basil aparece novamente na vida de Dorian, na forma de um último impulso de sua consciência mostrar que ainda não fora suplantada por todos os seus vícios e prazeres. Aqui ocorre o encontro do estado da alma com a consciência e, após tomar posse de toda a deformidade em que a alma se encontra – como um exame de consciência –, Dorian, por raiva, dá o golpe final e tira de sua vida aquilo que poderia sempre ser um empecilho para um novo pecado, para uma nova sensação.
Com a morte da consciência, o lugar de Basil é ocupado por um outro personagem, que entra agora em cena personificando o peso de nossos pecados.
Dorian pode vê-lo e isso é mais uma vez desesperador. Imagine como seria se pudéssemos ter um vislumbre, por mínimo que fosse, de todo o peso de nossas ações, de toda a mácula de nossas escolhas e omissões. James Vale entra em cena como a mancha viva de todo o pecado cometido e é aterrorizante para Dorian, como seria aterrorizante para qualquer pessoa. A passagem mostra que por mais que possamos fugir das consequências do pecado, estas um dia nos encontrarão, como substitutas de nossa consciência assassinada em prol de nossos prazeres. Dorian representa cada um de nós. Traz à tona a verdade de que entre o impulso e o ato existe a escolha, e que esta, por sua vez, traz consigo suas consequências.
Mr. Dorian Gray teve em sua vida aquilo que poderia torná-lo um bom homem. Pôde ver com detalhes a situação de sua alma perante a Justiça Divina, possuiu uma consciência que lhe falava sobre as belezas e maravilhas da criação, sobre como ter uma vida que fosse compatível com a beleza de seu corpo de barro, sobre como a beleza poderia salvar uma alma. Após uma carga gigantesca de pecados, teve mais uma vez o apelo da consciência para lhe salvar e quando este a matou, a graça divina ainda lhe enviou uma última chance de mudança: lhe mostrou o peso de todas as suas ações na forma de um homem que num instante de fúria lhe dera o último minuto para que se encomendasse à Deus; uma última chance. Dorian recusou e num impulso de medo e egoísmo escapou mais uma vez. O peso das suas ações o levou ao desespero e, tal como o apóstolo traidor, suicidou-se.
Este é o retrato de um homem que dialogou com o Diabo.
Richard S. Paz 17 de mai, 2024
Excelentíssima resenha! Ótima interpretação!