O Gnosticismo e a Desordem Espiritual

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Traduzido por Natan Falbo
04 de junho de 2022

O Conceito de Gnosticismo e a Análise da Desordem Espiritual

Este artigo procura estabelecer um ponto bastante simples: embora a análise de Eric Voegelin sobre desordem espiritual [1] ou “gnosticismo” seja uma das maiores realizações da ciência política do século 20, o próprio conceito de gnosticismo perdeu sua importância teórica. O enfraquecimento do conceito é, devo argumentar, em parte devido ao avanço de nossa compreensão acerca dos gnósticos históricos, em parte devido aos avanços tardios na própria abordagem analítica de Voegelin. Embora esse ponto básico seja reconhecidamente simples, não deixa de ter relevância. Isso ocorre porque a perda do conceito – embora não seja de grande importância – causa sérios mal-entendidos na análise de Voegelin e diminui a apreciação dos refinamentos e extensões da análise que ele estreou sob esta rubrica em sua obra A Nova Ciência Política. Dispensar este conceito implica dificuldades que devem ser reconhecidas, já que o “gnosticismo” é certamente o mais conhecido de todos os muitos conceitos voegelianos. No entanto, o próprio Voegelin atribuiu consistentemente muito mais peso à precisão teórica do que o valor público dos termos ou à sua aceitação na academia. Acredito que a precisão teórica exige de nós (ou seja, daqueles que desejam seguir seriamente sua liderança) certo respeito a estes conceitos. Eu ficaria mais à vontade se Voegelin tivesse feito isso ele mesmo, mas, no entanto, a questão parece clara por seus méritos – mesmo que ainda não esteja claro por que Voegelin não fez isso por conta própria.

Tentarei concentrar meu argumento em mostrar que o entendimento de Voegelin sobre a desordem espiritual mudou durante as décadas seguintes à Nova Ciência da Política, de maneira a pôr em questão o uso e o significado do termo “gnosticismo” naquela obra. Em suma, quero argumentar que os desenvolvimentos filosóficos que motivaram o novo modo de teorizar visto em 1974 em A Era Ecumênica têm o efeito – quando totalmente apreciado – de mostrar que o uso do “gnosticismo” na Nova Ciência da Política está ultrapassado. Como advertência preliminar, gostaria de enfatizar que “ultrapassado” e “equivocado” são julgamentos muito diferentes e que aqui estou fazendo o primeiro e não o segundo. No fundo, as análises da desordem espiritual e da modernidade em A Nova Ciência da Política não são incorretas e foi por boas razões que Voegelin nunca as renunciou. No entanto, durante as duas décadas seguintes, o desenvolvimento mais completo da teoria da consciência de Voegelin se expandiu de maneira a pressionar o termo “gnosticismo” de 1952 – e de talvez antes – a um ponto de ruptura. Além disso, esses avanços na teoria da consciência, bem como a descoberta da historiogênese por Voegelin, alteram sua compreensão das épocas e do processo histórico de maneira a minar seriamente algumas das teses mais impressionantes da A Nova Ciência da Política sobre o gnosticismo. Para citar o caso mais notável em questão, o título do capítulo Gnosticismo: A Natureza da Modernidade”, de 1952, parece bastante problemático na perspectiva de 1974, quando Voegelin havia questionado se a modernidade tem uma natureza específica e significativa. Nesse momento ele deve empregar o termo “gnosticismo“ de maneira predominantemente figurativa, pois os gnósticos históricos reais se revelaram progenitores extremamente improváveis ​​do que chamamos de “modernidade”.

Seria bom começar com o que Voegelin quis dizer com o termo “gnosticismo”. Em sentido lato, o termo significa a crença de que é possível ao homem escapar ou eliminar os males e dificuldades que afligem sua existência por meio do poder de algum conhecimento especial (gnosis, no grego antigo). Embora o gnosticismo fosse uma fé particularmente “herética”[2] no mundo antigo, Voegelin encontrou (e seguiu vários outros estudiosos nessa busca) variadas crenças nos tempos modernos estruturalmente semelhantes ao gnosticismo. Essa semelhança estrutural consiste, segundo Voegelin, em grande parte na tendência gnóstica – antiga ou moderna – a exibir certa insatisfação radical contra a condição humana e um intenso desejo por maior segurança e poder. [3]  Assim, Voegelin elaborou uma série de contrapontos a uma larga gama de figuras modernas. Embora essas figuras normalmente se considerassem inimigas, Voegelin as tratava como membros de uma mesma e coesa classe, a saber, todas como ideológicas e, em um nível mais profundo, gnósticas. Ao abordar os sistemas de pensamento ideológicos que deram fundamento a movimentos intelectuais (por exemplo, o hegelianismo, o psicologismo, o comportamentalismo e o psicologismo) ou movimentos políticos (por exemplo, o fascismo e o marxismo), Voegelin procurou mostrar que doutrinas tão diferentes dissimulam profundas semelhanças quanto a suas motivações e procedimentos. Apesar de suas doutrinas conflitantes, todas as ideologias identificam algum aspecto do reino mundano como a chave da existência (por exemplo, o progresso histórico [4], as relações de produção [5], a composição racial [6], a racionalidade científica [7]). Em contraste com as grandes filosofias e teologias da Ordem, que percebiam o Fundamento para além mundano [8], as ideologias gnósticas tornam o Fundamento [9] mundano para que o homem possa decifrá-lo e manipulá-lo, alcançando seu objetivo hybrístico [10] de poder e conhecimento absoluto.

O trabalho de Voegelin sobre o gnosticismo atraiu considerável atenção a partir da publicação d’A Nova Ciência Política, em 1952. [11] O tratamento do gnosticismo na segunda metade desta densa e poderosa obra foi tão impressionante que provocou uma reportagem na revista Time e fez com que intelectuais e políticos conservadores [12] criassem grande admiração por Voegelin. Embora Voegelin tenha publicado muitos artigos após emigrar da Áustria, A Nova Ciência Política foi seu primeiro livro em inglês e foi o primeiro trabalho extenso a aparecer depois que ele abandonou um projeto maciço sobre a História da Ideias Políticas (que foi interrompido devido a uma grande mudança em sua metodologia). Consequentemente, A Nova Ciência Política parecia indicar tanto o método quanto a substância dos escritos que se seguiriam nesta nova fase do trabalho de Voegelin.

E de fato seguiu-se assim, rapidamente, após a publicação por Voegelin do primeiro volume de Ordem e História, Israel e a Revelação em 1956, os volumes II e III, em 1957, O Mundo da Pólis e Platão e Aristóteles. Embora não haja dúvidas acerca da grande importância desses livros, aqueles que procuravam especificamente mais escritos sobre o gnosticismo não encontraram muito neles. Não obstante, o plano para Ordem e  História como um todo, resumido brevemente no Prefácio a Israel e a Revelação, ofereceu indicações de que uma análise completa estava prestes a surgir. O plano citava que cinco “tipos principais de ordem, juntamente com sua auto-expressão em símbolos, serão estudados à medida que se sucederem na história”. Os cinco tipos foram:

  1. As organizações imperiais do Antigo Oriente e sua existência na forma do Mito Cosmológico;
  2. O Povo Escolhido e sua existência em forma histórica;
  3. A Pólis e seu mito e o desenvolvimento da filosofia como forma simbólica da ordem; [13]
  4. Os impérios multicivilizacionais desde Alexandre e o desenvolvimento do cristianismo;
  5. Os estados-nação modernos e o desenvolvimento da Gnose como forma simbólica de ordem;

Desde que os três volumes apareceram em rápida sucessão para lidar com os três primeiros tipos de ordem planejados, parecia provável que Voegelin logo oferecesse um tratamento prolongado ao gnosticismo moderno. No entanto, passariam 17 anos antes da publicação de outro volume de Ordem e História. O longo atraso que antecedeu o lançamento do volume IV teve consequências importantes para a recepção do livro.

Enquanto isso, entre 1957 e a publicação de A Era Ecumênica, em 1974, Voegelin publicou apenas dois livros: Ciência, Política e Gnosticismo, um pequeno volume que consiste predominantemente em um ensaio publicado anteriormente como texto de uma palestra, e Anamnese, que permaneceu indisponível em tradução inglesa até 1978. [14] Consequentemente, muitos estudiosos do mundo de língua inglesa não se mantiveram a par das mudanças no pensamento de Voegelin, que se tornaram aparentes apenas com o lançamento de A Era Ecumênica. Quando as mudanças finalmente se tornaram aparentes, causaram considerável surpresa em alguns setores e mais do que um pouco de angústia.

Leitores que se aproximaram da Era Ecumênica tendo lido o Prefácio do volume I esperavam encontrar ensinamentos conclusos sobre o quarto e o quinto tipos de ordem identificados no Prefácio e muitos teriam procurado em particular por tratamentos do Cristianismo e do Gnosticismo que cumpririam as esperanças que alimentaram, mas mantidos em suspensão desde o aparecimento dos comentários marcantes de Voegelin em The New Science of Politics. Por exemplo, com relação ao Cristianismo, Voegelin escreveu em The New Science of Politics:

“...um ciclo civilizacional de proporções históricas mundiais. Dali surgem os contornos de um ciclo gigante, transcendendo os ciclos de uma única civilização. O ápice deste ciclo seria marcado pelo aparecimento de Cristo; as altas civilizações pré-cristãs formariam seu ramo ascendente; a civilização gnóstica moderna formaria seu ramo descendente. “[15]

No entanto, quando The Ecumenic Age finalmente apareceu, muitos cristãos ficaram consternados com a maneira como Voegelin discutiu e descreveu o cristianismo, como observou James Rhodes.[16]

Leitores que chegaram a The Ecumenic Age antecipando um tratamento extenso do gnosticismo ao longo das linhas de The New Science of Politics também estavam sujeitos ao desapontamento. Nesse livro, a análise de Voegelin foi, ao mesmo tempo, específica, ampla e exortativa. Ele identificou especificamente o gnosticismo com a modernidade, intitulando um capítulo “Gnosticismo – A natureza da modernidade”, e advertiu os leitores a “reconhecer a essência da modernidade como o crescimento do gnosticismo.” [17]  Ele associou uma ampla gama de pensadores e ativistas à desordem espiritual e Gnosticismo [18] e encerrou o livro com um apelo para “reprimir a corrupção gnóstica e restaurar as forças da civilização”, observando de forma ameaçadora que “no momento o destino está em jogo”. [19]

Em 1974, os leitores que abriram The Ecumenic Age em busca de um relato igualmente emocionante do desenvolvimento da gnose como a forma simbólica dos estados nacionais modernos encontrariam algo bem diferente. Essas diferenças provavelmente desagradaram alguns leitores, especialmente aqueles que podem ter ouvido uma espécie de grito de guerra pró-cristão e antimoderno nos escritos anteriores de Voegelin sobre gnosticismo. Voegelin não parecia mais inclinado a identificar o gnosticismo e a modernidade ou a limitá-lo a qualquer período particular no tempo ou a associá-lo a ocorrências históricas que poderiam até mesmo mantê-lo circunscrito ao Ocidente. A gama de pensadores e ativistas associados ao gnosticismo foi expandida, mas expandida de uma maneira inesperada e talvez indesejável para incluir figuras e influências cristãs.[20] Considerando que a Nova Ciência da Política falava de uma crise imediata na qual as forças da civilização se agrupam contra um inimigo específico que surgiu por meio de um processo histórico específico e foi marcado por uma pronunciada “alteridade”, A Era Ecumênica privou os combatentes antignósticos de suas ordens de marcha ao despir o conflito de grande parte de sua particularidade em termos de tempo e lugar e por tornar muito mais difícil distinguir o amigo do inimigo.

O que aconteceu nos anos entre a publicação dos volumes III e IV para explicar essa abordagem alterada do gnosticismo? Uma resposta adequada deve levar em conta dois fatores centrais, um no lado teórico do trabalho de Voegelin e outro no lado dos materiais de origem encontrados em suas pesquisas entre 1957 e a conclusão de A Era Ecumênica. Do lado teórico, Voegelin tornou-se cada vez mais imerso na filosofia da consciência, finalmente desenvolvendo uma teoria amplamente original que foi expressa de forma mais extensa na edição alemã da Anamnesis. Esse desenvolvimento teórico radicalizou a ruptura de Voegelin com a abordagem da História das Ideias [Políticas] que caracterizou seus primeiros escritos e que ainda estava presente em um grau reduzido na Nova Ciência [da Política] e nos três primeiros volumes de Ordem e História.

Embora muito tenha sido escrito sobre como essa mudança na direção teórica afetou a concepção de Voegelin da história da ordem [21], relativamente pouca atenção foi dada ao seu efeito no diagnóstico de Gnosticismo e desordem espiritual de Voegelin. Não é possível resumir a mudança no diagnóstico de Voegelin sem perder muitas nuances importantes, mas a formulação a seguir talvez não seja enganosa: a troca envolveu uma mudança de ver exemplos de pensamento e ação gnósticos como eventos conectados na história literária para vê-los como eventos independentes, mas essencialmente equivalentes na consciência. [22]

Antes da mudança, Voegelin escreveu como se instâncias posteriores de pensamento gnóstico fossem resultado de influências de escritos anteriores. Quando considerado dessa maneira, fazia sentido rastrear o gnosticismo de alguém como, digamos, Marx, até os antigos gnósticos, observando as figuras intervenientes que serviam como transmissores; Marx era um admirador de Thomas Münzer, que por sua vez seguia Joachim de Flora, que por sua vez conhecia os antigos escritos gnósticos. Ou, para usar outro exemplo, pode-se dizer que os sectaristas puritanos observados por Voegelin como exemplos de gnosticismo adquiriram padrões de pensamento gnóstico ou quase-gnóstico de seitas como os ortliebianos, paracletes e adamitas, que podem ter sido inspirados pelos Albigenses, que podem ter sido influenciados pelos escritos de Scotus Erigena, cujas opiniões foram afetadas pelos escritos ainda mais antigos de Pseudo-Dionísio. [23]Seguindo essa abordagem do gnosticismo, faria sentido falar de uma “corrente” gnóstica na história que pode inchar em certos momentos enquanto se retraem em outros, ou se referir a certos períodos (como o Renascimento ou meados do século XIX) como períodos marcados por um “crescimento” do gnosticismo. No entanto, se seguirmos a abordagem do gnosticismo que se tornou totalmente aparente na Era Ecumênica, essas noções não fazem mais sentido.

Quando Voegelin concluiu o trabalho sobre A Era Ecumênica, seus estudos sobre a filosofia da consciência o levaram para longe das noções de transmissão literária e para uma perspectiva em que o gnosticismo é visto como uma resposta não à influência de escritos anteriores, mas a tensões inerentes à própria condição humana. Ao descrever a condição humana, Voegelin utiliza o símbolo da metaxia de Platão para sugerir que os humanos existem em um estado intermediário de suspensão entre o meramente humano e o divino. Os seres humanos estão ligados ao reino imanente e mundano em virtude de sua existência física e às necessidades pragmáticas que daí decorrem, mas também participam do divino em virtude de uma atividade espiritual mais ou menos sustentada e autoconsciente de dois tipos fundamentais: buscando a compreensão do divino em sua dimensão como a fonte criativa do cosmos e / ou a capacidade de resposta à presença ativa e sustentadora do divino, conforme experimentado na realidade, mas além do cosmos. Dizer que os humanos existem na metaxia é dizer que eles são mais que animais, mas menos que deuses. Por força da participação no divino, nas formas de contemplação meditativa ou intensas preces, obediência responsiva ou o amor de adoração eles são mais que animais; no entanto, eles não são divinos, pois experimentam o divino como uma realidade que não é eles mesmos, seja em sua dimensão como o começo do cosmos ou em sua dimensão como um além do cosmos para o qual são atraídos.

O Voegelin maduro da década de 1970 fala, portanto, dos humanos como existindo em uma tensão em relação ao divino. Seu uso de “tensão” nesta formulação sugere duas características distintas da condição humana que são importantes para entender sua análise revisada do gnosticismo. Primeiro, seu uso de “tensão” sugere que os humanos são naturalmente atraídos ou “puxados” para o divino, seja por simples curiosidade sobre suas próprias origens, seja por um desejo mais intenso de compreender o fundamento do ser ou por um amor mais específico por eles ou numa forma mais dramática como num evento de revelação. Segundo, seu uso da “tensão” transmite a noção de que a condição humana é inquieta. Se os humanos são mais que animais, mas menos que deuses, eles podem entender a si mesmos apenas por referência a seres que não são, o que é uma importante fonte de desconforto. Além disso, uma vez que eles são atraídos nesses vários modos de participação em direção a uma realidade divina que eles podem experimentar [24], mas não conhecem de maneira alguma, a realidade experimentada à qual os seres humanos devem sua existência e para a qual os seres humanos são atraídos no presente permanecerá – para sempre – um mistério. Para Voegelin, o mistério inelutável do divino agrava ainda mais o mal-estar humano fundamental do qual estamos falando porque também espalha o mistério sobre a humanidade. Ele sustentou que a condição humana só pode ser entendida dentro da matriz abrangente de “Deus e homem, mundo e sociedade” [25] que nenhum elemento único nessa matriz pode ser totalmente compreendido, a menos que todos os seus elementos sejam totalmente entendidos. A natureza do divino e do humano deve sempre permanecer misteriosa em seu âmago e se Aristóteles estava correto ao afirmar na primeira linha da Metafísica que todos os seres humanos, por natureza, desejam conhecer, então todos os seres humanos são obrigados a experimentar frustração por um desejo fundamental.

Em termos simples, a revolta espiritual ou “gnosticismo” no sentido categórico é uma reação agressiva a essa frustração. Como Voegelin o analisa em A Era Ecumênica, o gnosticismo é uma reação a uma experiência na consciência e não, como sugeriram seus escritos anteriores, resultado da influência de um texto. Se os símbolos de um texto gnóstico têm, de fato, o efeito de provocar uma resposta agressiva por parte do leitor contra o caráter incerto e contingente da vida humana é porque o símbolo criado pelo escritor ressoa com uma experiência de frustração e reação agressiva que já está presente na consciência do leitor. Nem todos os que leem textos gnósticos são vítimas do gnosticismo e a razão é que nem todos reagiram de forma rebelde à tensão da existência.

Curiosamente, para Voegelin, o mesmo acontece com a filosofia: nem todos são filósofos lendo diálogos platônicos e a razão é que nem todos reagiram anteriormente com aceitação, fé e amorosa abertura à tensão da existência. Na teoria da experiência e simbolização de Voegelin, que encontramos em A Nova Ciência da Política e que não foi totalmente desenvolvida até pelo menos uma década depois, é um princípio básico que os símbolos não têm vida própria, mas são vitais apenas se eles surgem da experiência pessoal e só são eficazes se forem encontrados por pessoas com experiências pessoais paralelas. Assim, a análise de Voegelin sobre o gnosticismo na Era Ecumênica é nova, pois localiza os fenômenos gnósticos não em um fluxo de transmissão literária, mas na consciência. Mais especificamente, a análise madura de Voegelin localiza o gnosticismo na consciência de indivíduos particulares que não conseguem suportar as tensões da existência na metaxia e que reagem agressivamente contra as incertezas e limitações da existência criativa ao tentar aboli-las através da gnose.

Tendo demonstrado como a análise de Voegelin do gnosticismo foi alterada por seus estudos de teoria da consciência, deve-se notar também que as mudanças foram ditadas pelos materiais históricos que ele encontrou entre 1957 e 1974. Na Introdução à Era Ecumênica, Voegelin observa que:

“Em primeiro lugar, à medida que meu conhecimento dos materiais aumentava, a lista original de cinco tipos de ordem e simbolização revelou-se lamentavelmente limitada; então, quando a base empírica sobre a qual o estudo tinha que se apoiar foi ampliada de modo a se conformar ao estado das ciências históricas, o manuscrito inchou até um tamanho que facilmente teria ocupado mais seis volumes impressos. Essa situação era suficientemente incômoda. Entretanto, o que finalmente rompeu o projeto foi a impossibilidade de alinhar os tipos empíricos em qualquer sequência de tempo que permitiria que as estruturas realmente descobertas emergissem de uma história concebida como um “curso”... A concepção era insustentável porque não levara em devida conta as importantes linhas de significado da história que não corriam ao longo das linhas do tempo“. [26]

Depois de ter tomado em devida conta as linhas de significado que não corriam ao longo das linhas do tempo, Voegelin rejeitou a concepção de história como um curso em favor da visão de que a história “não é um fluxo de seres humanos e suas ações no tempo, mas o processo de participação do homem em um fluxo de presença divina que tem direção escatológica “ (EA, 6). Essas mudanças dramáticas na concepção de história de Voegelin levaram implicações igualmente dramáticas para a concepção da história do gnosticismo. Se não fazia mais sentido falar de um curso ao conceber a história como um todo, não fazia mais sentido conceber a história do gnosticismo como um “curso” ou um “fluxo” ou um “contínuo de movimentos” [27] desde os escritos antigos, passando por uma série de transmissores sectários medievais, até os modernos gnósticos dos movimentos ideológicos. Além disso, se a história “definitivamente não era uma história de eventos significativos a serem organizados em uma linha do tempo”, mas sim um “movimento através de uma rede de significado com uma pluralidade de pontos nodais”, exigindo uma análise que “precisava se mover para trás e para frente e lateralmente“ [28], então dificilmente faria sentido concentrar-se em blocos de tempo como unidades significativas da história.

Além disso, se os blocos de tempo não fossem unidades significativas, eles não poderiam ser adequadamente descritos por referência a qualquer elemento único, embora proeminente. Assim, da perspectiva da história que informa a Era Ecumênica, não fazia mais sentido falar – como Voegelin fazia em A Nova Ciência da Política – do gnosticismo como “a natureza da modernidade”. De fato, uma vez que Voegelin começou a ver instâncias de pensamento e atividade gnóstica através das lentes de sua filosofia da consciência, ele descobriu que mesmo quando as instâncias foram separadas por muitos séculos e por circunstâncias civilizacionais muito variadas elas exibiram paralelos notáveis ​​como reações agressivas a condição humana que não – essencialmente – variam ao longo do tempo. Consequentemente, o Voegelin que poderia, em 1952, admoestar os leitores a “reconhecer a essência da modernidade como o crescimento do gnosticismo” pode mais tarde, depois de descobrir que os ideólogos modernos eram exemplos de uma consciência desordenada também observada no mundo antigo, fazer a pergunta em 1974: “o que exatamente era moderno na modernidade?“. [29] Assim, podemos ver que os estudos de Voegelin de teoria da consciência e sua concepção transformada da estrutura da história se combinaram para produzir uma alteração significativa de sua análise do gnosticismo. Em comparação com a análise de A Nova Ciência Política, seu tratamento em A Era Ecumênica é muito mais complexo e sofisticado.

O conceito de gnosticismo ainda é viável nessa abordagem mais complexa e sofisticada? Mesmo quando Voegelin começou a usá-lo o conceito estava sobrecarregado, pois tinha de incluir não apenas o pensamento e a atividade dos antigos gnósticos, mas também uma vasta coleção de indivíduos que não eram membros de nenhuma seita gnóstica e, em alguns momentos, ele conecta-o a figuras que viveram antes do aparecimento histórico dos próprios gnósticos. Voegelin associa o termo a uma longa lista de indivíduos e grupos altamente variados que se estendem desde a Idade Média até o presente e, ao fazê-lo, frequentemente oscila entre usar o “gnosticismo” como um conceito categórico e como um nome próprio. Isso não é uma mera reclamação gramatical, mas uma fonte de problemas reais, especialmente para quem, como disse Voegelin, é “um homem que gosta de manter sua língua limpa” [30]. Por exemplo, em A Era Ecumênica, quando Voegelin usa o termo “gnosticismo” como substantivo maiúsculo, pode-se perguntar se ele pretende ser um nome próprio para se referir às seitas conhecidas pelos estudiosos da religião como os gnósticos ou se ele pretende isso como um conceito crítico de sua própria criação a ser entendido com as conotações e especificações (em constante mudança) que coloca sobre ele. Além disso, quando ele emprega o termo como adjetivo, questiona-se se ele quer dizer que um pensador foi influenciado pelos gnósticos históricos ou se apenas deseja sugerir que o indivíduo em discussão pense de maneira análoga. Às vezes, ele oscila entre os padrões de uso várias vezes em uma única página ou em uma breve seção, como na Introdução, onde cada um dos quatro usos descritos acima aparece várias vezes entre as páginas 20 e 25 (edição inglesa). Consequentemente, os leitores devem se esforçar continuamente para discernir quem ou o que Voegelin quer designar pelo termo quando o encontram. Os padrões de uso de Voegelin em livros e artigos específicos, tomados isoladamente, nem sempre são inconsistentes, mas seu uso de termos e analogias em relação ao gnosticismo e à desordem espiritual é muitas vezes surpreendentemente indefinido à medida que se passa de uma escrita para outra. Os conceitos anunciados em um trabalho não aparecem no próximo [31], distinções traçadas em um ponto não são desenvolvidas ou aplicadas em outros [32] e termos que surgem em contextos diferentes são frequentemente usados ​​de forma intercambiável [33]. Embora eu certamente não assine a visão de que nunca se deve pedir aos leitores que se esforcem para entender um autor, acho que o uso de “gnosticismo” por Voegelin varia tão amplamente em seus escritos que até mesmo um especialista às vezes pode fazer pouco mais do que adivinhar o que ele quer dizer.

Como Voegelin era um escritor muito cuidadoso, os problemas que marcam a terminologia que ele usou para o diagnóstico de desordem espiritual – que é uma parte importante do seu trabalho como um todo – são intrigantes. Meu único palpite (e me apresso a enfatizar que isso é apenas um palpite) sobre o motivo pelo qual ficamos com uma lista de termos tão enlouquecedora é que Voegelin estava tão empenhado em levar cada uma de suas análises mais perto da essência dos fenômenos sob investigação que ele se sentiu obrigado a neologizar quase continuamente para manter seus conceitos em sintonia com suas ideias cada vez mais penetrantes. Ele conhecia bem pensadores como Hegel e Marx, que deixaram sistemas conceituais maravilhosamente consistentes, mas parecia considerar isso uma tentativa não científica dos ideólogos de encobrir a complexidade e o mistério da realidade, obtendo clareza conceitual em seus sistemas. Uma vez construído um edifício conceitual tão grandioso, a ordem das passagens facilita a residência de epígonos e confere uma imortalidade ao construtor de sistemas por meio do culto a este. Por outro lado, os escritos de Voegelin mostram pouca preocupação com as sutilezas da perfeição e continuidade. Ele parecia completamente despreocupado com o fato de seus leitores não conseguirem acompanhá-lo e fazia muito pouco para arrumar seus escritos para facilitar a leitura de qualquer candidato a discípulo.

Se meu palpite tiver mérito, teremos encontrado nossa explicação para as inconsistências terminológicas de Voegelin, não nas deficiências que marcaram o homem, mas em sua posse da virtude da implacabilidade científica e também, talvez, algo semelhante à magnanimidade, conforme descrito por Aristóteles [34]. Isso não diminui os problemas específicos causados por sua decisão de manter o conceito de gnosticismo para uso, uma vez que seu pensamento tomou as novas reviravoltas manifestadas na Era Ecumênica. Na década de 1970, Voegelin indicou que “provavelmente não usaria [o termo gnosticismo] se aqui estivesse recomeçando” [35] e acredito que ele realmente deveria ter feito uma ruptura clara com ele mesmo, já que suas tentativas de remendo não foram bem-sucedidas. O mais notável deles foi a declaração de Voegelin em 1973 de que:

Desde minhas primeiras aplicações do gnosticismo a fenômenos modernos em A nova ciência da política e em meu estudo Ciência, política e gnosticismo, de 1959, precisei rever minha interpretação. A aplicação da categoria de gnosticismo às ideologias modernas se sustenta, é claro, mas há outros fatores a considerar em uma análise mais completa. Um deles é o apocalipse metastático que deriva diretamente dos profetas de Israel – via apóstolo Paulo – e configura uma linhagem permanente nos movimentos sectários cristãos, chegando até o Renascimento. Uma excelente exposição dessa continuidade pode ser encontrada na obra The Pursuit of the Millennium [Na senda do milênio] [1957], de Norman Cohn. Além disso, descobri que nem a linhagem apocalíptica nem a gnóstica dão conta por completo do processo de imanentização. Esse fator tem origens independentes na retomada do neoplatonismo na Florença de fins do século XV. [36]

Aqui, Voegelin está tentando lidar com um problema que se tornou aparente nos anos após a publicação d’A Nova Ciência Política, a saber, que achados arqueológicos (datados principalmente de 1952) e pesquisas acadêmicas mostraram que o gnosticismo antigo tendia fortemente ao apolitismo, pois denegriu a vida neste mundo em favor da fuga através de algum tipo de ensino secreto ou gnose. O próprio interesse de Voegelin em A Nova Ciência Política estava nas formas que uma reivindicação de gnose poderia assumir quando houvesse interesse em aproveitar o poder desse conhecimento para a transformação do mundo atual. [37] Era para dar conta da vertente de transformação do mundo na Idade Média e de distúrbios modernos nos quais Voegelin começou a falar do hermetismo, alquimia e magia como tendo uma importância comparável ao gnosticismo. Assim, em uma publicação de 1978, ele argumenta que, “... a desordem contemporânea aparecerá de uma maneira bastante nova quando deixarmos o 'clima de opinião' e, adotando a perspectiva das ciências históricas, reconhecermos os problemas da 'modernidade' como causados ​​pela predominância de conceitos gnósticos, herméticos e alquimistas, bem como pela magia da violência como meio de transformar a realidade.[38] Isso me parece retrocesso. Ou seja, Voegelin parece estar revertendo aqui sua abordagem analítica mais desenvolvida para uma ainda lançada no molde da História das Ideias. Mais especificamente, parece uma reversão da visão de que:

    1. Podemos identificar uma equivalência essencial entre simbolismos antigos e modernos de revoltas ocasionados por experiências geradoras essencialmente equivalentes à visão de que,
    2. Podemos mostrar por análise histórica que problemas modernos são “causados“ por resíduos gnósticos, herméticos, alquímicos e mágicos que permanecem nas fontes pré-modernas.

Isso não quer dizer que não haja semelhanças entre ideólogos modernos, milenários medievais, antigos gnósticos e, de fato, indivíduos pré-gnósticos que antecipam ou procuram iniciar uma transformação fundamental das condições da existência humana. Tais semelhanças existem, de fato, na minha opinião, mas não podem ser estabelecidas de maneira satisfatória sugerindo cadeias de influência literária. [39] Um dos eventos mais importantes no desenvolvimento de Voegelin como pensador foi o reconhecimento de que ideias são apenas manifestações epifenomenais das experiências que os engendram e de que se alguém aceita isso como premissa, segue-se que quaisquer pontos em comum entre figuras aparentemente díspares devem ser estabelecidos no nível da experiência. Tentei em outro lugar mostrar que isso pode realmente ser conseguido com referência a um padrão comum de revolta em reação a quatro de experiências fundamentais da condição humana: incerteza, contingência, imperfeição e mortalidade. [40] Independentemente do sucesso ou fracasso desse esforço, está claro que cadeias de influência literária devem ser consideradas restos obsoletos dos primeiros estudos de Voegelin na História das Ideias e que qualquer análise de pontos em comum deve levar em consideração o trabalho tardio de Voegelin na teoria da consciência.

Concluindo, devo enfatizar que embora eu considere o conceito de gnosticismo como uma pedra de moinho nos esforços para entender o papel da desordem espiritual na modernidade, o esforço em si é de grande importância e os problemas causados ​​pelo conceito são diminuídos pela magnitude das realizações de Voegelin nesta área. Além disso, a extensão do dano causado por problemas conceituais é bastante superficial, raramente penetrando no núcleo teórico daquilo que Voegelin deseja enfatizar em escritos específicos. Não obstante, o dano relativamente superficial causado por problemas conceituais dificilmente é trivial, uma vez que muitas das formulações de Voegelin serão seriamente enganosas para aqueles que não estão mergulhados em seus últimos escritos. Assim, por exemplo, eu argumentaria que a famosa afirmação de Voegelin, em A Nova Ciência Política, de que “o gnosticismo é a essência da modernidade” está correta em seu cerne, no sentido de que o que as pessoas geralmente chamam de “modernidade” aquela que nasceu de uma série revoltas pessoais e espirituais contra as limitações e imperfeições da existência humana. Podemos ver que escritos pré-modernos que celebram arrogantemente (hybristicamente) as capacidades humanas eram ocasionalmente admiradas pelos ideólogos modernos no curso de suas próprias revoltas e que esse gênero inclui textos gnósticos, bem como escritos herméticos, especulações sobre alquimia, magia, apocalipticismo, messianismo e assim por diante. No entanto, embora possamos legitimamente dar mais um passo para encontrar nos escritos hybrísticos pré-modernos um padrão de revolta pessoal que é análogo às revoltas modernas, esses escritos pré-modernos não “causam” exemplos modernos de revolta espiritual em nenhum sentido significativo. O trabalho tardio de Voegelin sugere que, se existe uma “causa”, é o complexo de tensões que estão presentes na própria condição humana, na metaxia. É a própria tensão – e não as primeiras simbolizações da tensão – que desencadeiam as várias revoltas, antigas ou modernas. Os anteriores não “causam” ou mesmo influenciam os posteriores de maneira substancial. [41] Nesta perspectiva, é quase completamente sem sentido, no sentido literal, dizer que “o gnosticismo é a essência da modernidade”. O gnosticismo histórico não tem nada substancial a ver com as revoltas de indivíduos como Hegel e Marx e Comte (ou seus vários epígonos e funcionários) e como o trabalho tardio de Voegelin sobre historiogênese demonstra, não há nada essencialmente “moderno” nessas revoltas. [42] Assim, devido ao caráter problemático do conceito de gnosticismo, podemos ver que uma proposição como “gnosticismo é a essência da modernidade” pode ser – ao mesmo tempo – um absurdo virtual em sua face, mas também uma profunda descoberta em seu âmago.

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Eric Voegelin

foi um professor de filosofia política germano-americano. Ele nasceu em Colônia e se formou em ciências políticas na Universidade de Viena, onde se tornou professor associado da faculdade de Direito. Em 1938, ele e sua esposa fugiram das forças nazistas que invadiram Viena.


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