O que realmente disse Olavo de Carvalho sobre a Igreja Ortodoxa e o projeto eurasiano

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Por Valéria Campelo
07 de junho de 2022

Não sabemos que espécie de tragédia assola a “intelligentsia” conservadora brasileira para não ser capaz de suportar um simples questionamento sobre nada que aceita como verdade suprema e incontestável. Não toleramos essa postura de todo modo infantil, que é ainda mais proeminente entre seguidores do professor Olavo de Carvalho e alguns de seus alunos conhecidos. 

Não estamos aqui na missão vaidosa de criar controvérsias sem causas para ganhar visibilidade, como parece ser a regra do “jogo virtual” de que muitos se conformaram em participar. Nossas dúvidas são genuínas, e ao contrário de como são tratadas por aí, brotam de nossos cuidadosos estudos e da nossa própria experiência, já que neste assunto alguns de nós não apenas estudamos como “vimos de perto” nosso objeto de estudo, de modo que nossas dúvidas são vistas por nós não apenas como “normais”, mas como verdadeiro sinal de nossa sanidade mental e equilíbrio espiritual. Em verdade, para nós seria bem mais preocupante se não tivéssemos nenhuma pergunta. 

Se há alguém aí capaz de escutar educada e humildemente nosso rogo e responder nossas questões com cuidadosa atenção, aqui vão, como prometemos, algumas questões sobre a Igreja Ortodoxa Russa que explicam por que não assumimos uma postura tão radical, fechada e resolvida como a que vemos emergir das referências olavistas da direita brasileira, especialmente após o início da guerra eslava. 

Pois bem, ao se referir à Igreja Ortodoxa, onde presumimos estar se referindo especificamente à igreja ortodoxa russa, o professor Olavo deixa claro que o projeto eurasiano depende da igreja e vice-versa. Em suas palavras expressas, principalmente, no conhecido debate com Alexandr Dugin, ele diz: 

“O projeto eurasiano é a única saída que a Igreja Ortodoxa tem se não quiser ficar confinada aos limites da nação russa, falhando à sua missão declarada de religião universal”.

No entanto, sabemos que a Igreja Ortodoxa Russa é composta por 110 milhões de fiéis, onde, destes, 15 milhões estão fora dos "limites da nação russa" e cerca de meio milhão faz parte da Igreja Ortodoxa Russa Fora da Rússia, conhecida como  ROCOR, a qual foi fundada durante a revolução bolchevique, devido, justamente, à campanha de perseguição instaurada contra a Igreja. Logo, a expansão da igreja ortodoxa russa para fora da nação russa deu-se, em números particularmente expressivos, antes mesmo de Dugin ser um espermatozóide no ovo do general seu pai, e continua a crescer a despeito da possível concretização de um projeto eurasiano. Como isso se explica? 

Além disso, nunca ouvimos falar, nem nos nossos estudos, tampouco em nossa vivência, que a missão da igreja ortodoxa é se tornar a religião universal. Quando, através de quem e onde está documentado que a Igreja Ortodoxa algum dia declarou que sua missão é ser “a religião universal”? 

Diz Olavo também:

“A Igreja Ortodoxa, através do prof. Dugin, ainda está buscando uma saída para o mundo e não vê outro meio de encontrá-la senão constituir-se um Império Mundial”.

Sabemos que há, contudo, um capítulo inteiro no “catálogo de hereges” do Patriarcado de Moscou atribuindo à teoria eurasiana de Dugin verdadeiro status de anátema, uma heresia perigosíssima; e que Dugin jamais encontrou de fato um prestígio relevante na Igreja Ortodoxa Russa, já tendo inclusive se afastado da Igreja canônica devido a sua rejeição. Como, então, a Igreja Ortodoxa Russa pode estar buscando “alguma coisa” através do Dugin?

Além disso, um estudo não muito dispendioso é suficiente para esclarecer que o cristianismo ortodoxo, como um todo, rejeita a ideia de buscar qualquer saída e qualquer solução para o mundo, mas, ao contrário, têm esperança na realidade vindoura e eterna, a qual deve ser perseguida acima de qualquer objetivo social ou mundano. Assim, para a Igreja Ortodoxa, a salvação da alma humana precede qualquer objetivo social. 

Não encotramos registro documental em que o prof. Olavo afirma que a Igreja Ortodoxa é “braço da KGB”, atuando, assim, como verdadeiro braço político de um governo soviético, como muitos desavisados insistem por aí, a pretexto de serem endossados pelo professor.  Ele diz, na verdade, que

“a Igreja Ortodoxa Russa não pode entrar no 'projeto eurasiano' sem tornar-se instrumento passivo nas mãos da KGB”.

Ou seja, atribui à instrumentalização da Igreja pela KGB um fator condicionante à sua entrada no projeto eurasiano. E logo em seguida insiste:

“Leiam as obras da grande tradição ortodoxa russa, como a Filocalia ou os Relatos de um Peregrino Russo, e comparem com os discursos ideológicos do Prof. Dugin. Que pode haver de comum entre a apoteose da vida contemplativa e a prostituição de tudo aos ditames da luta política? Que acordo pode existir entre Nosso Senhor Jesus Cristo e o demônio?”.

Em outra ocasião, em 2012, atendendo a um seguidor que lhe pergunta “como aprender mais sobre a igreja ortodoxa?”, Olavo responde: “leia a Filocalia, os Relatos do Peregrino Russo e a obra do Vladimir Soloviov”.

Sabemos, no entanto, que nenhuma dessas obras reflete a igreja ortodoxa como “braço da KGB”, pelo contrário. Ainda, ao citar Soloviov como fonte para entender o cristianismo ortodoxo, Olavo, na verdade, mostra-se carente de fontes verdadeiramente ortodoxas, uma vez que Soloviov é conhecido por ser um autor altamente influenciado pela visão cristã e filosofias ocidentais em detrimento da visão cristã genuinamente oriental. 

Para nós, é no mínimo compreensivo que essas palavras partam de um homem que nunca se dedicou de fato ao estudo da Igreja Ortodoxa e que defende veementemente a relevância intelectual de seu adversário, sustentando que a Igreja Ortodoxa Russa pós-revolucionária perdeu tudo que a identificava com a Igreja pré-revolucionária, tendo sucumbido completamente ao projeto soviético e, após, ao projeto eurasiano, de modo que Dugin tenha se tornado seu verdadeiro primaz. Como explicamos, no entanto, isso não condiz com o posicionamento aberto da Igreja Ortodoxa Russa sobre Dugin nem com sua conhecida e conturbada trajetória na Igreja Oriental.

Um estudo elementar também pode esclarecer que a Igreja Ortodoxa possui vários patriarcados e jurisdições, sendo a Igreja Russa apenas um deles, e com os quais está em comunhão espiritual e ecumênica, de modo que não pode existir um patriarcado russo à revelia dos demais. Assim, é inconcebível para a Igreja Ortodoxa que um de seus patriarcados exista de forma independente dos demais patriarcados e jurisdições, assumindo para si a missão exclusiva de se tornar a “religião universal” sem que, com isso, desencadeie um novo e verdadeiro Cisma.

É inevitável, assim, que quanto mais nos aprofundemos no estudo da igreja ortodoxa russa e da igreja ortodoxa no geral, mais a visão do professor Olavo sobre aquela realidade específica nos pareça, na verdade, um tanto limitada e distante do real. 

Fora esses, outros questionamentos também nos surgem sobre a visão do Olavo sobre a teoria duginista, que não tratam especificamente da igreja ortodoxa. Nos contentamos, por ora, com os já explanados e deixaremos os demais para outra ocasião, uma vez que, ao que nos parece, não se admitindo e comprovando que a Igreja Ortodoxa está verdadeiramente comprometida com o projeto eurasiano, tanto o projeto eurasiano como a visão geopolítica do professor Olavo neste assunto acabam se tornando obsoletos. 

De todo modo, uma coisa nos parece evidente: ao tratarem deste assunto tão complexo de maneira tão superficial e descuidada, num país de minoria ortodoxa inexpressiva, onde ortodoxos de todas as jurisdições ainda se arrastam para traduzir fontes de estudos confiáveis e toná-las acessíveis; e, diferente do professor Olavo, concentrando suas análises não na força da Igreja Ortodoxa como agente histórico que transcende os Estados e Impérios (como não o deixa de ser, também, a Igreja Católica Romana), os comentaristas políticos de “direita” da recém-iniciada era pós-Olavo de Carvalho tornam a igreja ortodoxa vítima de uma verdadeira campanha de difamação e fofocas travestidas de análises geopolíticas, sob o pretexto de serem endossadas pela “única” autoridade intelectual no assunto.

Não compartilhamos dessa atitude, que mais parece tentar agregar a análises carentes de fontes e fatos uma aparência de sustentação e solidez intelectual do que defender a verdade em si. 

Para nós, a essas pessoas se aplica o mesmo dito por Olavo sobre o Dugin: a insistência em encarar tudo pelo viés da Geopolítica, como se os fenômenos de ordem espiritual fossem determinados pelos caprichos dos poderes deste mundo, leva-os a torcer e caricaturar mesmo os fatos históricos da maior envergadura. 

Lembrem-se, senhores, que à Igreja a qual chamam levianamente de “braço da KGB” foi concedido pela KGB mais de 20 mil mártires. 

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Valéria Campelo

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Maranhão. Redatora, tradutora, advogada e "ademira" do CoA.


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