Um apelo à intolerância

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Traduzido por Valéria Campelo
21 de agosto de 2023

A América, dizem, está sofrendo de intolerância. Não está. Está sofrendo de tolerância: tolerância em relação ao certo e errado, verdade e erro, virtude e mal, Cristo e caos. Nosso país não está tão dominado por intolerantes quanto está pelas “mentes abertas”.

O homem que consegue ordenar sua mente e arrumar sua própria cama é chamado de intolerante; mas um homem que não consegue ordenar sua mente nem seu próprio tempo é chamado de tolerante e mente aberta. Um homem intolerante é aquele que se recusa a aceitar uma razão para qualquer coisa; um homem mente aberta é aquele que aceita qualquer coisa por uma razão — desde que não seja uma boa razão. É verdade que há uma demanda por precisão, exatidão e definição, mas é apenas para precisão na balança científica, não na lógica. O colapso que produziu este “tolerancismo” antinatural é mental, não moral. A evidência para esta afirmação é tríplice: a tendência de resolver questões não por argumentos, mas por palavras; a disposição incondicional para aceitar a autoridade de qualquer pessoa sobre o assunto da religião; e, por fim, o amor pela novidade.

A religião não é uma pergunta aberta, como a Liga das Nações, nem a ciência é uma pergunta fechada, como a tabuada. A religião tem seus princípios, naturais e revelados, que são mais exigentes em sua lógica do que a matemática. Mas a falsa noção de tolerância obscureceu este fato aos olhos de muitos que são tão intolerantes com os menores detalhes da vida quanto são indulgentes em suas relações com Deus. Nos assuntos comuns da vida, estas mesmas pessoas jamais chamariam um especialista da Ciência Cristã para consertar uma vidraça quebrada; nunca ligariam para um oftalmologista porque quebraram o olho de uma agulha; nunca consultariam um florista porque machucaram a palma da mão, nem iriam a um carpinteiro para cuidar de suas unhas. Elas nunca chamariam um auditor fiscal para extrair a moeda engolida pelo bebê. Recusariam ouvir um assistente social discutir a autenticidade de uma pintura, ou um arborista discutir uma controvérsia jurídica.

No entanto, para o assunto importantíssimo da religião, onde se articulam nossos destinos eternos, para a questão importantíssima das relações do homem com seu ambiente e com seu Deus, elas estão dispostas a ouvir qualquer um que se intitule profeta. E assim nossas revistas estão cheias de artigos escritos para essas pessoas de “mente aberta”, onde todos, de Jack Dempsey ao cozinheiro do Ritz Carlton, discorrem sobre sua ideia de Deus e sua visão sobre religião. Estes mesmos indivíduos, que ficariam exasperados se seus filhos brincassem com um pirulito da cor errada, não ficariam nem um pouco preocupados se a criança crescesse sem jamais ter ouvido o nome de Deus...

A natureza de certas coisas é fixa, e nenhuma mais que a natureza da verdade. A verdade pode ter sido contrariada mil vezes, mas isso só prova que ela é forte o suficiente para sobreviver a mil ataques. Não obstante, para qualquer pessoa, dizer “Uns dizem isto, outros dizem aquilo, logo, não existe verdade” é quase tão lógico quanto seria para Colombo, que ouviu alguns dizerem “A terra é redonda” e outros “a terra é plana”, concluir que “Logo, não existe terra”.

O excitante prazer da novidade, a inquietude sentimental de uma mente desequilibrada e o medo antinatural de uma boa dose de pensamentos complexos, todo um conjunto para produzir um grupo de latitudinaristas adolescentes que pensam não haver diferença entre Deus como Causa e Deus como uma “projeção mental”; que comparam Cristo a Buda, São Paulo a John Dewey, e então dilatam sua vasta mente em uma síntese generalizante que afirma não apenas que uma seita cristã é tão boa quanto as outras, mas que aquela religião mundial é tão boa quanto a outra. O grande deus “Progresso” é então entronado nos altares da moda, e quando os adoradores extasiados são questionados “Progresso em direção a quê?”, a resposta tolerante ressona: “Mais progresso”. Todos os homens sensatos estão se perguntando como pode haver progresso sem direção e como pode haver direção sem um ponto fixo. E porque falam de um “ponto fixo”, são chamados de atrasados no tempo, quando, na verdade, estão além de seu tempo, mental e espiritualmente.

Em face desta falsa mentalidade aberta, o que o mundo precisa é de intolerância. A massa faz distinções precisas e imediatas entre dólares e centavos, navios de guerra e cruzeiros, “você me deve” e “eu te devo”, mas parece ter perdido completamente a faculdade de distinguir entre bom e mau, certo e errado. O melhor sinal deste fato é o frequente mau uso dos termos “tolerância” e “intolerância”. Algumas mentes acreditam que a intolerância é sempre errada, porque fazem “intolerância” significar ódio, discriminação e fanatismo. Estas mesmas mentes acreditam que a tolerância é sempre correta porque, para elas, significa caridade, mente aberta, bom caráter.

O que é tolerância? A tolerância é uma atitude de paciência racional para com o mal e uma indulgência que nos impede de demonstrar raiva ou infligir punição. Porém, mais importante que sua definição é o campo de sua aplicação. O grande ponto aqui é este: a tolerância se aplica sempre às pessoas, mas nunca à verdade. A intolerância se aplica sempre à verdade, mas nunca às pessoas. Tolerância se aplica ao errar; intolerância ao erro.

A tolerância não se aplica à verdade ou a princípios. Sobre estas coisas devemos ser intolerantes e, para este tipo de intolerância, tão necessária para nos despertar do jorro sentimental, faço um apelo. Este tipo de intolerância é o fundamento de toda estabilidade. O governo deve ser intolerante com a propaganda maliciosa e, durante a Primeira Guerra Mundial, estabeleceu um índice de livros proibidos para defender a estabilidade nacional, assim como a Igreja, que está em constante guerra com o erro, fez seu índex de livros proibidos para defender a permanência da vida de Cristo nas almas dos homens. O governo, durante a guerra, foi intolerante com os hereges nacionais que se recusavam a aceitar seus princípios sobre a necessidade de instituições democráticas, utilizando-se de meios físicos para impor tais princípios. Os soldados que foram à guerra eram intolerantes em relação aos princípios pelos quais lutavam, da mesma forma que um jardineiro deve ser intolerante com as ervas daninhas que crescem em seu jardim.

A Suprema Corte dos Estados Unidos é intolerante com qualquer interpretação privada do primeiro princípio da Constituição de que todo homem tem direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade, e qualquer cidadão em particular que interprete a liberdade de maneira muito estreita, como o privilégio de “ultrapassar” um sinal vermelho, logo se encontraria em uma cela sem nenhuma luz, nem mesmo a amarela - a cor das almas tímidas que não sabem quando devem parar ou seguir em frente. Os arquitetos são tão intolerantes com a areia para fundamentar arranha-céus como os médicos são intolerantes com germes em seus laboratórios, e como todos nós somos intolerantes com um vendedor particularmente tolerante e simpático que, ao fechar nossa conta, acrescenta sete e dez para fazer vinte.

Ora, se é certo — e é certo — que os governos sejam intolerantes quanto aos princípios do governo, que o construtor da ponte seja intolerante quanto às leis do estresse e da tensão, e que o físico seja intolerante quanto aos princípios da gravitação, por que não deveria ser a lei de Cristo, a lei de Sua Igreja e a lei dos homens sensatos intolerantes em relação às verdades de Cristo, às doutrinas da Igreja e aos princípios da razão? Podem as verdades de Deus ser menos exigentes que as verdades da matemática? Podem as leis da mente ser menos vinculantes que as leis da ciência, que são conhecidas apenas pelas leis da mente? Deveria o homem, dotado da verdade natural, que se recusa a ser igualmente tolerante com o matemático que diz “dois e dois fazem cinco” e o que diz “dois e dois fazem quatro”, ser chamado de homem sábio, e Deus, que se recusa a ser igualmente tolerante com todas as religiões, ter negado o nome da “Sabedoria” e ser chamado de um Deus “intolerante”?

Por que, então, zombar dos dogmas por serem intolerantes? Por todos os lados, ouvimos dizer “O mundo moderno deseja uma religião sem dogmas”, o que revela o quão néscio é este rótulo, pois quem diz que deseja uma religião sem dogmas está afirmando um dogma, e um dogma mais difícil de justificar que muitos dogmas da fé. Um dogma é um pensamento verdadeiro, e uma religião sem dogmas é uma religião sem pensamento, ou uma religião sem espinha dorsal. Todas as ciências têm dogmas. “Washington é a capital dos Estados Unidos” é um dogma da geografia. “A água é composta de dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio” é um dogma da química. Deveríamos ser “mente aberta” e dizer que Washington é um mar na Suíça? Deveríamos ser mente aberta e dizer que H2O é a fórmula do ácido sulfúrico?

Mas vale tudo, em nome do progresso, para agirem como ratos e devorarem o fundamento de todo o teto sobre nossas cabeças. A intolerância quanto aos princípios é a base do crescimento, e o matemático que zomba um quadrado por ter sempre quatro lados e, em nome do progresso, descarta apenas um dos lados, logo descobrirá que perdeu todo o quadrado. O mesmo vale para os dogmas da Igreja, da ciência e da razão; eles são como tijolos, bases sólidas sobre as quais um homem pode construir, não como a palha, que é a “experiência religiosa”, a qual serve apenas para queimar.

Um dogma, então, é a consequência necessária da intolerância quantos aos princípios fundamentais, e aquela ciência ou aquela igreja que tem a maior quantidade de dogmas é a ciência ou a igreja que construiu o maior pensamento. A Igreja Católica, o mestre-escola há vinte séculos, construiu uma tremenda quantidade de pensamentos sólidos e consistentes e, portanto, construiu dogmas, assim como um homem deve construir uma casa de alvenaria, mas fundada em uma rocha. Ela viu os séculos de entusiasmos passageiros e lealdades momentâneas passarem diante dela, cometendo os mesmos erros, cultivando as mesmas poses, caindo nas mesmas armadilhas mentais, de modo a tornar-se muito paciente e gentil com os alunos errantes, e bastante intolerante e severa com os erros. Ela tem sido e sempre será intolerante, na medida em que a lei de Deus é intolerante com heresias, erros, inverdades, implicando não em assuntos pessoais onde ela possa agradar, mas em um Direito Divino onde não há concessões. Mansa ela é para com os que erram, mas violenta para com o erro. A verdade é divina; o herege é humano. Feita a devida reparação, ela admitirá o herege de volta ao tesouro de suas almas, mas nunca a heresia ao tesouro de sua sabedoria. O certo é certo, ainda que ninguém esteja certo, e o errado é errado, ainda que todos estejam errados. E nestes tempos precisamos, como o Sr. [G. K.] Chesterton nos diz: “não de uma Igreja que esteja certa quando o mundo estiver certo, mas de uma Igreja que esteja certa quando o mundo estiver errado”.

A atitude da Igreja em relação ao mundo moderno sobre esta importante questão pode ser compreendida na história das duas mulheres no tribunal de Salomão [ver III Reis 3: 16-28]. Ambas reivindicavam um bebê. A mãe legítima insistiu em ter o filho inteiro ou nada, pois uma criança é como a verdade — não pode ser dividida sem arruiná-la. A mãe ilegítima, em contrapartida, assentiu. Ela estava disposta a dividir o bebê, e o bebê teria morrido de “tolerancismo”.

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Fulton J. Sheen

foi um bispo americano da Igreja Católica conhecido por sua pregação e, especialmente, por seu trabalho na televisão e no rádio. Ordenado sacerdote da Diocese de Peoria em 1919, Sheen rapidamente se tornou um teólogo renomado, ganhando o Prêmio Cardeal Mercier de Filosofia Internacional em 1923.


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