A relação entre Ciência e Religião

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Por Joel Gracioso
07 de junho de 2022

No decorrer da História o ser humano foi constituindo certas formas de pensar e interpretar a realidade a partir de referenciais e perspectivas distintas. Assim, em alguns momentos procurou vislumbrar o real a partir do mito, isto é, de uma linguagem e de um modo de pensar metafórico e simbólico cujo intuito era expressar por meio de determinadas narrativas uma verdade imemorial. Em outros momentos preferiu, por determinadas condições históricas favoráveis, estabelecer e utilizar um pensamento fundado na razão, cuja lógica exclui a contradição, o fantasioso, considerados absurdos. Neste trabalho de olhar a realidade a partir do logos demonstrativo é que vai surgir também o discurso científico, no sentido moderno do termo. Geralmente o que se denomina conhecimento científico é a noção elaborada a partir da modernidade cujo modelo é a matriz lógico-matemática. Ademais, a possibilidade de verificação experimental de qualquer enunciado é o critério principal da sua veracidade. Excluí-se, portanto, desta concepção, a visão aristotélica de ciência, por exemplo. Além desses meios mencionados, a arte e a religião, uma por meio da experiência estética e outra a partir da questão do sagrado, permitem um outro olhar sobre a mesma realidade. Desta maneira, parece que o que temos é o mesmo homo sapiens analisando a realidade a partir de olhares diferentes.

Entretanto, em todo esse processo, muitas vezes essas visões diferentes da realidade entraram em conflito, predominando umas em detrimento de outras.

A partir da modernidade, e especialmente no mundo contemporâneo, percebemos um atrito mais ou menos constante entre a busca permanente pelo desenvolvimento científico e tecnológico cujo pressuposto básico é conhecer para intervir, e assim resolver alguns problemas por meio do aperfeiçoamento de determinadas técnicas, e por outro lado o discurso religioso que procura preservar determinados valores e princípios tradicionais advindos, ou de uma revelação especial de origem transcendente ou de uma determinada experiência do sagrado e concepção do divino.

Encontramos esse dilema, por exemplo, tanto no caso de Galileu e a revolução copernicana, como na questão da utilização de embriões humanos em pesquisa ou na questão da eutanásia.

Ora, qual a razão de ser desse conflito? Haverá uma oposição intrínseca, necessária, entre o discurso religioso e o discurso científico, entre a fé e a razão? Ou será apenas uma questão de ideologia e de interesse político?

Galileu Galilei

 

No século XVI foi se estabelecendo, cada vez mais, um modo de pensar que afirmava de maneira sempre mais intensa o valor do homem. As culturas gregas e romanas são reavivadas e o desenvolvimento da ciência acontece cada vez de forma mais intensa se apoiando em métodos novos e observações precisas. Assim, a ciência moderna, capacitada de instrumentos de trabalho cada vez mais refinados, foi se afastando de qualquer tipo de argumento de autoridade, inclusive os provenientes da fé. Neste contexto vai se estabelecendo, às vezes, um pensamento secularizado e anti-religioso.

As autoridades eclesiásticas diante dessas novas correntes de pensamento tiveram, muitas vezes, uma atitude rígida e desconfiada para com a nova ciência, tentando preservar aquilo que entendiam como verdadeiro.

Ora foi precisamente neste ambiente que viveu Galileu Galilei, considerado por muitos o pai da ciência moderna.

Durante todo o medievo a física ptolomaica, que ensinava o sistema geocêntrico (a Terra estaria fixa e os astros, inclusive o Sol, girariam em torno dela), predominou totalmente. Entretanto, em 1543 Nicolau Copérnico sugeriu outro modo de pensar essa questão fazendo uma inversão. Ou seja, a Terra não é o centro do universo, sendo ela que gira em torno do Sol, daí o nome a esse sistema de heliocêntrico.

Esse modo de pensar, para os cristãos da época, foi algo conflitante porque implicaria em afirmar que o homem não habitaria o lugar central do mundo, pois passaria a viver num mero planeta secundário. Além disso, a própria encarnação do Verbo divino também não se daria mais no centro do universo.

Galileu, apesar de ter sido elogiado, num primeiro momento, por alguns jesuítas, ao ir aderindo sempre mais ao heliocentrismo e contrariar o geocentrismo, entrou em conflito com as autoridades religiosas devido à interpretação de certos trechos bíblicos que pareciam ensinar o geocentrismo. Assim, o seu modo de pensar estaria impugnando alguns textos considerados sagrados pela fé cristã. Acusado de heresia foi processado em Roma em 1616, donde resultou a proibição de ensinar o heliocentrismo.

Contudo, Galileu prosseguiu defendendo suas idéias argumentando que não se podia fazer sempre uma leitura literal do texto sagrado, pois os autores da Sagrada Escritura ou, o próprio Espírito Santo que a inspirou, não tinham a intenção de ensinar aos homens as questões de ciências naturais. Para ele a Bíblia não quer explicar o funcionamento natural do céu ou dos corpos celeste, mas sim como se vai para o Céu. Ora, ao defender esse modo de interpretar a Bíblia, Galileu expõe um princípio hermenêutico que se tornará comum, posteriormente, na tradição cristã. Porém, para sua época, pareceu algo muito revolucionário e, assim, foi incompreendido e rejeitado.

Evolucionismo e criacionismo

 

No século XIX a teoria evolucionista, cujo ponto central era a defesa de que as espécies atuais, vegetais e animais, surgiram por evolução de um reduzido número de troncos primitivos ou mesmo de um único núcleo inicial, foi defendida por muitos pensadores, dentre eles: Jean-Baptiste Lamarck, De Vries, Charles Darwin e outros.

Lamarck foi o primeiro a propor sistematicamente a tese evolucionista, que para ele estava intimamente ligada à questão do meio, do tempo e da hereditariedade. As mudanças do meio estimulariam várias alterações nos corpos dos seres vivos. Além disso, a necessidade de uma função, dentro de um determinado ambiente, criaria o órgão respectivo. E, por fim, todas as modificações ocorridas seriam transmitidas hereditariamente, fixando-se na espécie.

De Vries, por outro lado, era adepto do mutacionismo. Ou seja, para ele não há pequenas transformações constantes, mas sim, alterações abruptas de grande amplitude, não havendo formas intermediárias.

Todavia, o pensador que mais chamou atenção foi Darwin. Ele publicou, em 1859, sua famosa obra A origem das Espécies propondo como o ponto principal da evolução a luta pela vida. Todo ser vivo estaria em luta permanente contra o seu meio e as espécies concorrentes. Isso geraria uma seleção natural, na qual os mais fortes e aptos sobreviveriam com suas alterações. Essas, por sua vez, conforme foram crescendo e se estabelecendo devido à utilização são passadas hereditariamente. Portanto, as causas naturais, atuando por elas mesmas, produzem os seres.

Ora, esse modo de entender a origem dos seres entrará em conflito com a visão cristã sobre a origem das coisas, isto é, o criacionismo.

Os cristãos, baseando-se na Bíblia, principalmente nos primeiros capítulos do livro do Gênesis, afirmam que a origem de tudo está num ato voluntário e benevolente de Deus, o qual criou todas as coisas em seis dias e descansou no sétimo. Assim, a origem de tudo não está em causas naturais, mas sim em uma causa sobrenatural. Tudo o que existe é expressão da vontade e da inteligência do criador, que dispôs todas as coisas em harmonia e ordem. Sendo, desta maneira, a beleza das criaturas um reflexo da beleza do criador.

Assim, o evolucionismo parece esvaziar a figura de Deus e sua função criadora na medida em que explica a origem dos seres através de causas meramente naturais sendo, por isso profundamente criticado pelas diversas tradições cristãs.        

A Professora Nancy Pearcey, envolvida no debate atual entre criacionistas e evolucionistas nos Estados Unidos e de tradição cristã reformada, nas suas obras A alma da Ciência e Verdade Absoluta, defende a não oposição entre Ciência e Religião, mas critica fortemente o darwinismo.

Num primeiro momento a autora analisa a relação entre cristianismo e cultura, explicitando como foi se formando uma postura relativista, agnóstica e anti-religiosa no meio acadêmico.

Nos dias atuais, segundo a professora, foi se estabelecendo uma fragmentação muito grande na sociedade criando, assim, uma dificuldade enorme para se viver qualquer tipo de integridade. Na família somos de um jeito, no emprego de outro etc. Qual a razão de ser de tudo isso?

Primeiramente devido a uma dicotomia social. De um lado temos a família, a igreja, os relacionamentos pessoais compondo a esfera privada. Do outro lado temos a esfera pública constituída da política, da academia etc. Essa dicotomia estaria apoiada numa outra divisão entre fatos e valores. Os primeiros como algo objetivo que se aplicam a todas as pessoas e os segundos como algo totalmente subjetivo. Assim, na medida em que a religião pertence à esfera privada ela é algo meramente subjetivo e a ciência na medida em que pertence à esfera pública é algo objetivo. Portanto, temos já estabelecido o início do conflito entre Ciência e Religião levando, por conseguinte, segundo a autora, a um duplo âmbito da Verdade e até das ciências, pois de um lado teríamos as ciências humanas as quais estariam no âmbito do subjetivo e do relativo, e do outro lado as outras ciências que estariam no âmbito do materialismo e do naturalismo. O equipamento da mente moderna, portanto, levaria a isso.

Assim, para a professora Nancy, essa dicotomia social leva a uma dicotomia mental e epistêmica, na qual a verdade objetiva pode estar presente na ciência, na história, mas não nas questões éticas, por exemplo. Mas nem sempre foi assim segundo a professora. No século XIX, por exemplo, a unidade da verdade era defendida. Onde ou quando começou essa mudança?

No entendimento de Pearcey foi no ensino da evolução e na visão naturalista do conhecimento. A partir desse referencial, os dogmas teológicos e os absolutos filosóficos passam a serem vistos como fraudulentos. A religião pode existir e funcionar desde que não faça afirmações com pretensão de serem verdadeiras. Enfim, tanto a religião como a ética foram transpostas para o âmbito meramente pessoal.

Segundo a referida professora a guerra entre cristianismo e ciência é um mito produzido pela teoria evolucionista. Portanto, os pressupostos e implicações do darwinismo, sejam no âmbito epistemológico, antropológico como moral, precisam ser abandonados, seja devido às suas limitações, seja para termos uma outra compreensão da relação entre fé e razão, religião e ciência.

Por fim, segundo Nancy Pearcey, é preciso recuperar a unidade da Verdade. Uma Verdade que tenha condições de tornar o todo da realidade coerente. Uma visão unificada da realidade contra a fragmentação moderna.O conflito, portanto, não é entre Ciência e Religião, mas sim entre uma cosmovisão e outra. Segundo Nancy, é preciso ter a coragem de se perguntar: minha cosmovisão consegue explicar e sustentar a totalidade da experiência humana?  Segundo a professora uma cosmovisão materialista e naturalista, como o darwinismo, não.

Todavia, nem todos os cristãos vêem contradição entre criacionismo e evolucionismo.

Teilhard de Chardin foi um sacerdote jesuíta que, além de sua formação religiosa, possuía um vasto conhecimento e experiência na área das ciências naturais. Seu livro mais conhecido é O fenômeno humano, no qual ele procura demonstrar a não contradição entre fé e razão.

Ele parte do pressuposto que a evolução é um fato universal e nada do que é criado escaparia deste processo. Seu começo se dá na matéria corpuscular, chegando ao homem, indo além até atingir o seu fim. Ele procurou observar o desenvolvimento da matéria corpuscular e da energia na escala dos seres, percebendo neste desenvolvimento o aparecimento de estruturas cada vez mais complexas.

O universo, portanto, se origina de um ponto de partida único, que se distribuí em vários raios de seres. Estes, contudo, se inclinariam para um ponto supremo de convergência. É neste ponto que se encontra Deus, centro universal de unificação, no qual cada espírito repousa. Este ponto superior, todavia, é distinto dos homens e não absorve a personalidade de cada humano que caminha em direção a ele.

Encontramos, então, no pensamento de Teilhard de Chardin a concepção de uma evolução teleológica ou teísta, que será usada também por outros pensadores cristãos de matizes diversos. Nesta concepção os seres surgem por evolução não aleatoriamente, mas sim visando um fim.

João Paulo II e a referência a Tomás de Aquino

 

O Papa João Paulo II, no ano de 1998, lançou a carta encíclica Fides et ratio – Sobre as relações entre fé e razão, na qual condena tanto o fideísmo, o qual entende que somente a fé basta, como o racionalismo, que cairia na absolutização da razão.

No entendimento do bispo de Roma há no coração humano uma demanda pelo absoluto, um desejo natural pela verdade e uma necessidade radical de encontrar um sentido para a existência. Ora devido a isso, os homens sempre se interrogaram sobre quem são, sobre a origem do mundo e da vida, sobre a morte e o mal.

No desenrolar da História, tanto no Oriente como no Ocidente, a humanidade foi construindo várias respostas a essas interrogações, seja por meio das mais diversas tradições religiosas, seja por intermédio da Filosofia.

Na sua relação com o mundo o homem se maravilha, se espanta e devido a isso procura adquirir conhecimentos fundamentais e universais. Sem esse assombro, portanto, a existência se tornaria algo superficial e repetitivo.

No entendimento de João Paulo II na busca pela verdade o autoconhecimento tem um papel fundamental, pois na medida em que o ser humano se conhece o sentido das coisas se torna mais presente e a realidade vai se desvelando. Ademais, nessa busca o homem deve levar em consideração tanto a fé como a razão, pois essas duas formas de conhecer são como que duas asas por meio das quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Não são duas vias independentes e separadas do conhecimento humano que precisam ser conciliadas. Na realidade a relação entre fé e razão deve ser de circularidade, pois ambas são manifestações do espírito humano que deseja penetrar a realidade na sua dimensão mais profunda.

Todavia, o pontífice lembra que a partir da modernidade, representada no pensamento de René Descartes, o modo de se pensar essa relação mudou.

No âmbito filosófico, desde o período antigo, a razão foi concebida, na maioria das vezes, com uma abertura ao ser e uma capacidade de reflexão metafísica. Já, no mundo moderno, a concepção de razão muda. O modelo lógico-matemático e empírico-formal vai ser a base da nova concepção de razão. A Transcendência real é trocada pela transcendência lógica. O primado não é mais do ser, mas sim do sujeito do conhecimento. Fé e razão são duas modalidades de conhecimento totalmente independentes. A razão moderna, portanto, é primordialmente operacional vendo o homem apenas como objeto e esquecendo que este é chamado a voltar-se a uma realidade que o transcende.

Segundo João Paulo II, a ausência de referência a essa realidade transcendente levou o pensamento filosófico moderno e contemporâneo a ficar preso ao niilismo ao relativismo, ao pragmatismo, ao primado da técnica, concentrando-se mais nas incapacidades e limitações humanas do que na capacidade do homem de conhecer a Verdade.

O caminho para superar essa dificuldade seria retornar a pensar as questões metafísicas, interrogando-se sobre a verdade última da existência. Sendo preciso, portanto, uma certa reformulação na concepção da razão humana.

Tomás de Aquino (1224/1225 a 1274), no entendimento do pontífice, é um grande exemplo de um pensador que viveu a unidade do espírito humano e da busca pela verdade. Por quê?

Seguindo a posição defendida pela maioria dos pensadores da tradição cristã, Santo Tomás defende uma estreita relação entre razão e fé, Filosofia e Teologia.

Entendia que Filosofia e Teologia se diferenciavam pela finalidade (a primeira oferecendo um conhecimento natural sobre as coisas e a segunda um conhecimento sobre as verdades necessárias à salvação) e pelo método (a Filosofia parte das criaturas e chega a Deus, a Teologia o contrário). Contudo, apesar dessas diferenciações, haveria uma harmonia entre fé e razão não sendo possível contradizerem-se pelo fato das duas procederem da mesma origem, Deus.

Um exemplo desse modo de pensar de Tomás é a questão de Deus. Tomás entende que a essência de Deus é inefável e, por conseguinte, inacessível. Logo, a fé é imprescindível. Todavia, apesar disso, o homem pode, partindo da observação da realidade concreta e por meio do princípio da causalidade, concluir sobre a sua existência. São as famosas cinco vias.

Ora, usando um referencial aristotélico, parte do pressuposto que todo conhecimento humano começa pelos sentidos e, além disso, de que o mundo está hierarquicamente estruturado. A partir disso, o Aquinate vai argumentar a favor da existência de uma realidade transcendente, fundamento último dos seres em geral que chamamos Deus, sem a qual o próprio mundo torna-se incompreensível.

Segundo o doutor Angélico, na sua primeira via, por exemplo, ao olharmos para o mundo vemos que o movimento existe, ou seja, as coisas passam de potência a ato. Entretanto, algo não poderia atualizar-se por si próprio sendo movido e movente ao mesmo tempo, pois tudo o que é movido é movido por outro. Portanto, quando observamos os entes em geral vemos uma seqüência de movidos e moventes e não sendo possível proceder ao infinito, concluísse que é necessário haver um movente que põe tudo em movimento, mas que nunca foi movido por nada. Temos, assim, o primeiro motor imóvel ou Deus.

Nas outras vias (causa eficiente, o ser necessário, graus de perfeição do ser, teleológico) a estrutura do raciocínio é muito parecida.

Enfim, qual o sentido dessa referência que João Paulo II fez a Santo Tomás? Parece que o intuito do pontífice não foi absolutizar e oficializar o pensamento do Aquinate como o pensamento oficial da Igreja Católica, mas apenas mostrar que é possível buscar a verdade sem cindir o espírito humano.

Considerações finais

 

Por fim, ao analisarmos esses exemplos históricos e ao pensarmos sobre essas questões, percebemos que para abordá-las de maneira minimamente satisfatória, se faz necessário analisá-las numa perspectiva sistemática, além da perspectiva histórica que nos mostra como se deu essa relação no decorrer do tempo. Ora, o que significa isso?

Significa que para respondermos se há ou não uma oposição necessária ou uma complementação entre religião e ciência, fé e razão é preciso analisar a origem e a estrutura de cada discurso. Seus pressupostos epistemológicos e ontológicos. Enfim, o modo de ser e a razão de ser de cada um, seus fundamentos, a concepção de realidade e de verdade subjacente e as implicações de tudo isso na existência humana.

No mundo contemporâneo vemos a presença cada vez maior de fundamentalismos e fanatismos religiosos que geram uma consciência alienada nas pessoas e muitas vezes até conflitos bélicos entre determinados povos. A intolerância e o dogmatismo de alguns acabam gerando dificuldades para o desenvolvimento do conhecimento humano em geral e também impasses para o convívio social sadio e minimamente humano na sociedade.

Contudo, tudo isso é expressão da essência do sentimento religioso ou uma corrupção desse próprio sentimento? O que é de fato o sagrado? Qual a essência da religião? A vivência religiosa e o olhar religioso do ser humano sobre o mundo é na sua essência falso, enganador e alienante? É possível excluir da vida humana qualquer traço de religiosidade?

Mircea Eliade no seu livro O Sagrado e o Profano aponta para dois modos de ser no mundo ou dois tipos de homens: o religioso e o profano. Através da análise do espaço, do tempo, da natureza e da existência humana, ele mostra que o modo como o homem religioso entende essas dimensões é diferente do homem profano, porque o homem religioso vê o mundo e tudo o que está nele como manifestação do sagrado e o profano não. Por exemplo, o espaço para o homem religioso não é homogêneo, pois uma coisa é estar dentro de um templo sagrado, no qual se comunica com uma realidade transcendente, e outra fora dele. Enquanto que o homem profano tenta estabelecer uma homogeneidade do espaço.

Todavia, Eliade mostra que por mais que o homem profano tentou tirar da vida humana todo elemento de sacralidade ou religiosidade não conseguiu, pois sempre permaneceu algum resquício dessa religiosidade, indicando, talvez, que a religiosidade é algo intrínseco a realidade humana.

Por outro lado, quando olhamos na sociedade contemporânea o avanço científico e tecnológico, vemos todos os benefícios da ciência e da técnica para com a sociedade, como na medicina, na engenharia etc. Mas encontramos também a angústia que essas descobertas ou invenções estão trazendo para o homem contemporâneo. A necessidade constante de produzir a cada dia um conhecimento novo ou uma técnica nova para satisfazer as supostas necessidades do ser humano ou talvez na realidade necessidades criadas mais pelo mercado, produz nas pessoas um estado de vazio, de perda de sentido. O processo veloz pelo qual as coisas e os conhecimentos se tornam obsoletos produz a sensação de que tudo se desmancha em segundos e estamos condenados ao nada e a incerteza constante. Ademais, da parte de alguns, a crença absoluta de que a ciência, com seus métodos e critérios, pode sozinha resolver todos os problemas humanos e descrever a realidade tal como ela é, gera a idéia de que não há limites para o avanço da técnica e da pesquisa científica. Uma certa mentalidade utilitarista e economicista muitas vezes predomina no mundo contemporâneo, transformando o útil e o econômico no ético, criando, também, muitas dificuldades para a sociedade.

Ora, não será o cientificismo tão dogmático e perigoso quanto os fundamentalismos religiosos?

Notamos, assim, a necessidade de indagarmos até que ponto uma expressão humana, seja qual for, pode afirmar a posse da totalidade da verdade e a partir disso demonstrarmos a importância dos diversos olhares possíveis do ser humano sobre a vida, o mundo. Talvez o olhar do homo cientificus não deve excluir o olhar do homo religiosus, nem o olhar do homo poeticus, pois todos esses olhares, antes de tudo, refletem os modos de adaptação do homo sapiens ao seu meio, que é ao mesmo tempo misterioso, operacional e poético, e muitas outra coisas que nem sequer podemos ainda cogitar.

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Joel Gracioso

Mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e Especialização em Teologia. Tem experiência no ensino de Filosofia e Teologia, com ênfase em História da Filosofia Medieval, Patrística, Ética, Antropologia Filosófica, Filosofia da Religião e Teologia Cristã Oriental. Estuda o final da Antiguidade e o Medievo, e suas relações com o pensamento contemporâneo.


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