Um Senso Comum e Raro

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Traduzido por Valéria Campelo
08 de junho de 2022

A Rare and Common Sense

 É um fato curioso que as ditaduras comunistas foram mais populares entre os intelectuais Ocidentais enquanto ainda possuíam a coragem de sua brutalidade. Uma vez acostumados à opressão cotidiana e aos atos relativamente menores de repressão violenta (julgados, é claro, pelos seus próprios padrões a este respeito), deixaram de atrair os louvores extravagantes daqueles intelectuais que, em seus próprios países, consideravam intolerável mesmo a menor derrogação à sua absoluta liberdade de expressão. É como se, não sonhos, mas fome e massacres totalitários, agissem como a realização freudiana do desejo desses intelectuais ocidentais. Falavam em liberdade ilimitada, mas desejavam poder ilimitado.

Mao Zedong era a página em branco ou a tela em que podiam projetar as fantasias que consideravam belas. A China estava muito longe, centenas de milhões de camponeses inescrutáveis, mas conhecidos por serem empobrecidos e oprimidos pela história; sua cultura era impenetrável para os Ocidentais sem muitos anos de dedicação severa ao estudo; os sinólogos Ocidentais, quase todos, sustentavam a versão maoísta do mundo, alguns por medo de perder seu acesso à China se não o fizessem, criando, assim, a impressão de que o maoísmo era intelectual e moralmente respeitável. Desse modo, criou-se as condições perfeitas para a mais voluntária e completa suspensão de descrença. Os pensamentos de Mao — isto é, clichês, chavões e mentiras — eram tratados por pessoas inteligentes e instruídas como se fossem mais profundos e possuíssem mais sustentação espiritual e mental do que os de Pascal. Como era de se esperar, a mera realidade vivida por dezenas de milhões de pessoas tinha pouco interesse para os intelectuais em comparação com suas próprias concepções e esquemas mentais. “Que caiam os céus, portanto que me sinta bem comigo mesmo” era o seu lema. Se melhor rir ou chorar, não se sabe.

Nesse equivalente moderno de intelectual pastoral, surge a figura até então desconhecida de Pierre Ryckmans, escrevendo como Simon Leys, um sinólogo belga de imensa inteligência e erudição, cujos interesses eram, até então, mais estéticos que políticos. O primeiro livro publicado deste ilustre conhecedor da arte chinesa foi uma tradução em francês extremamente detalhada e referenciada de um tratado de pintura chinês do início do século XVIII, Remarks on Painting by Shitao, publicada pelo Belgian Institute of Higher Chinese Studies. Por mais refinado que pareça à maioria dos leitores ocidentais, pode-se encontrar até mesmo aqui a sensibilidade que perdurou pelo resto da vida de Ryckmans, o que é evidente em todo o seu trabalho. Cito Shitao, ou melhor, minha tradução de sua tradução de Shitao: “Eliminada a estupidez, nasce a inteligência; extirpada a vulgaridade, aperfeiçoa-se a clareza”.

Simon Leys, pseudônimo de Pierre Ryckmans Para Leys, a assim chamada Revolução Cultural (nem cultural, nem revolução em sua opinião, mas uma sórdida luta pelo poder, na qual, mais uma vez, Mao estava disposto a sacrificar as vidas de milhões de compatriotas em seu próprio altar) fora ocasionada, ou provocada, pela cegueira intencional e, pior ainda, pela indiferença dos intelectuais ocidentais em face do que realmente acontecia na China, a qual Leys tanto amava. Em The Chairman’s New Clothes (“As Novas Roupas do Presidente” — tradução livre), Chinese Shadows (Sombras Chinesas) e Broken Images (“Imagens Quebradas”), revelou-se um polemista de talento, embora com uma sábia e escrupulosa consideração pela verdade. Desde a primeira linha escrita, estabeleceu uma autoridade que era a de alguém simultaneamente na posse dos fatos relevantes e da mais evidente probidade moral (de maneira alguma contérmino). Era um homem contra muitos, mas sua perspicácia mordaz, seu desprezo por argumentações apelativas e intelectuais manipuladores, seu profundo senso comum prevaleceram; seus livros sobreviverão, enquanto todo o trabalho de seus oponentes, detratores, caluniadores e diversos maoístas acadêmicos apodrecerão nas coleções de reserva das bibliotecas. Por acaso, possuo alguns desses trabalhos, principalmente porque não gosto de dispor de qualquer livro após adquiri-lo.

Leys tinha uma mente que se destacava tanto na seleção quanto na exclusão: a seleção do essencial e a exclusão do irrelevante. Talvez isso tenha sido resultado do seu ano de estudo da pintura chinesa, onde aquilo que não é retratado é tão importante quanto o que é. Mas, seja qual for sua origem, essa extraordinária faculdade é evidente em tudo que escreveu. Quem não consegue compreender de imediato o profundo significado da anedota com a qual introduziu as Chinese Shadows?

Todos conhecemos a história do recente incidente de um jornalista americano: como todo mundo, escreveu um relato de sua viagem à China. O único detalhe é que ele nunca esteve na China. Quando finalmente descoberto, instaurou-se um escândalo, e o pobre diabo acabou demitido. O que é surpreendente nessa história é que sua fraude nunca fora sequer encoberta.

Partindo disso, sabemos imediatamente, incontestavelmente e sem apelo, que todo um gênero, toda uma biblioteca de livros do assim chamado testemunho ocular, é totalmente inútil (o famoso economista J. K. Galbraith escreveu um deles). Não poucos autores devem ter corado no momento em que leram a notícia: visitaram a China sem experimentá-la, mais do que o jornalista americano que nela nunca pusera os pés.

Mais uma vez, o próprio título de um de seus ensaios,“A Arte de Interpretar Inscrições Inexistentes Escritas em Tinta Invisível em uma Página em Branco", diz o essencial que você precisa saber sobre a decodificação de publicações provenientes da China, o tipo de regime que tornava necessária uma arte tão misteriosa, e por que qualquer um que considerasse as declarações oficiais como autênticas era, na melhor das hipóteses, um ingênuo, e, na pior das hipóteses, um idiota ou um tolo.

O que Leys escreveu em 1984 num pequeno livro sobre George Orwell poderia muito bem ter sido escrito sobre ele mesmo: “Em contraste com especialistas certificados e acadêmicos renomados, viu a evidência diante de seus olhos; em contraste com políticos astutos e intelectuais da moda, não tinha medo de dar um nome; e, em contraste com sociólogos e cientistas políticos, sabia como soletrar em uma linguagem compreensível”.

Leys fez distinção entre simplicidade e simplificação: Orwell possuía a primeira sem indulgência na segunda. Mais uma vez, o mesmo poderia ser dito de Leys, que, é claro, como Orwell, tomara um pseudônimo, com o tipo de trabalho de quem possuía diversos paralelos em si mesmo.

Todavia, o imenso feito de Leys de destruir as ilusões ridículas dos intelectuais ocidentais — o que Orwell tentara fazer antes dele —, foi uma tarefa a ele imposta pelas circunstâncias, não por escolha própria. Ele era, por natureza, um esteta e um homem das letras; e confesso que grande foi minha surpresa (e admiração) ao descobrir que Leys fora, também, além de um grande sinólogo, um excelente ensaísta literário.

Entre seus dons, destacava-se o da mais precisa e mordaz citação. Talvez “dom” não seja exatamente a palavra, pois era preciso uma imensa erudição e uma discriminação altamente disciplinada para citar com tanta propriedade. No entanto, foi uma espécie de gênio, pois só o esforço jamais teria produzido os mesmos resultados. De fato, Leys publicou um delicioso livro de citações, The Ideas of Others (As Idéias dos Outros — tradução livre), onde a qualidade de sua própria mente é claramente refletida — a qualidade de ser capaz de enxergar a verdade óbvia, porém escondida, ou a verdade que escondemos de nós mesmos:

No momento em que o bom gosto conhece a si mesmo, parte da sua bondade é perdida.

C. S. Lewis

Grandes escritores e artistas deveriam participar da política apenas como uma defesa contra a política.

Tchekhov

Desta última citação entende-se como um homem fundamentalmente indiferente, ou até mesmo hostil à política como Leys, pode não ter escrito muita coisa sobre política e mesmo assim ter escrito tão bem sobre ela. Somente um homem para quem a política é uma distração lamentável daquilo que é mais importante na vida possui desapego suficiente para ser tão perspicaz.

Os ensaios de Leys muitas vezes combinam delicadeza e profunda ironia — uma combinação que poucos escritores alcançam, especialmente em nossos tempos de estridência e parti pris. Aqui, por exemplo, está o início de seu ensaio “An Introduction to Confucius” (“Uma Introdução a Confúcio): “Se considerarmos os maiores mestres de sabedoria da humanidade — Buda, Confúcio, Sócrates, Jesus —, ficaríamos impressionados com um interessante paradoxo: hoje, nenhum deles poderia obter nem o mais modesto dos postos de ensino em qualquer uma de nossas universidades. Nós rimos — o que, é claro, é o melhor tributo à seriedade do seu raciocínio. Ele prossegue explicando: “A razão é simples: suas qualificações são insuficientes — eles não publicaram nada.

Em duas frases, Leys prendeu, como uma borboleta à agulha de um entomologista, a doença burocrática que tomou nossas instituições de ensino superior (e não apenas estas). Não há loucura mais difícil de tratar do que a que se considera sensata, e não há irracionalidade maior do que aquela que se acredita perfeita. Não é de surpreender que Leys tenha se retirado cedo de sua cátedra universitária, porque a universidade não tinha mais nenhuma semelhança com aquilo que fora outrora e que induzira os estudantes e o resto da sociedade a acreditar que ainda era. Uma comunidade de estudiosos tornou-se uma organização de capatazes em uma linha de produção.

Em seu belo ensaio sobre as frases de abertura de romances, Leys relata como estava navegando em uma livraria quando se deparou com as primeiras palavras do romance de G.K. ChestertonO Napoleão de Notting Hill, até então desconhecido para ele: “A raça humana, à qual tantos dos meus leitores pertencem...”. Comprou o livro e saiu rapidamente, pois o espetáculo de um homem velho (como ele mesmo se chamava) a rir sozinho consigo  provavelmente causaria alarme. O resto do livro não poderia cumprir suas dez primeiras gloriosas palavras, não fossem estas virtuosas e espirituosas linhas: “Assim como um homem mau é, não obstante, um homem, um poeta mau é, não obstante, um poeta”.

Comparou, então, a linha de abertura de Chesterton com a de Poderes Terrenos de Anthony Burgess: “Era a tarde do meu octogésimo primeiro aniversário e eu estava na cama com o meu catamito, quando Ali anunciou que o arcebispo chegou e queria me ver”.

Leys compara a frase inicial de um livro a uma isca de pescador, e diz sobre Burgess:

No caso, o pescador conseguiu sua mordida — porque eu comprei o livro —, mas não conseguiu pousar o peixe no banco (pelo menos onde eu estava interessado), já que este volume maciço continuou por dezenove anos a juntar poeira majestosamente em minha estante: eu ainda não li.

Passa então a analisar o que há de errado com a frase de abertura de Burgess comparada à de Chesterton:

Perguntava-me, ademais, se, mesmo em sua astúcia, essa primeira frase do romance de Burgess não era, para a verdadeira literatura, o que uma mosca artificial é para um inseto real... Burgess certamente fabricou um começo impressionante para seu Poderes Terrenos; o único problema é que tinha cheiro de fabricação.

E essa fabricação, por sua vez, sugeriu um problema generalizado em nossa cultura:

Um perigo frequente para os escritores de talento é que, em seu desejo de impressionar o público, acabam arruinando seus esforços mais ambiciosos. No mundo moderno, esta tentação de jogar poeira nos olhos, à qual tantos artistas sucumbem, reflete a dominação exercida pela indústria publicitária sobre praticamente todos os aspectos da cultura.

A crítica literária de Leys contém sempre um significado mais amplo do que uma mera avaliação de livros, embora essa avaliação seja importante para ele, assim como seus escritos sobre a China refletem no Ocidente tanto quanto na China. Leys é verdadeiramente um filósofo, no sentido século XVIII da palavra.

Não quero apresentá-lo como infalível, de modo algum. Ninguém pode escrever tanto quanto ele escreveu sem cometer erros; nem mesmo ele, penso eu, desejaria que alguém pensasse assim. (Leys citou Orwell a respeito da suposta santidade de Gandhi). Por exemplo, ao criticar a realpolitik de Nixon, Kissinger e Alain Peyrefitte (o político e intelectual gaullista que argumentava que os direitos humanos, não sendo um conceito chinês, nada significavam ou eram inaplicáveis aos chineses), Leys cita Claude Roy com aprovação: “A verdadeira clivagem entre a direita e a esquerda reside no privilégio [moral] concedido ou negado aos homens de poder”.

Esta é uma afirmação surpreendente, considerando tudo que acontecera anteriormente na obra de Leys, demonstrando que muitos da esquerda haviam recebido, apoiado e exaltado uma tirania tão grande quanto qualquer outra que o mundo conheceu; e é uma evidência de que Leys temia ser considerado um homem da direita um aspecto interessante e culturalmente revelador deste homem destemido e perspicaz. Apesar disso, mesmo Homer assentiu.

De qualquer maneira, Leys é uma imensa alegria de se ler, por sua honestidade, sua coragem, seu humor, seu estilo de prosa, sua erudição levemente desgastada, sua elegância de pensamento e expressão, sua sabedoria sobre arte, vida e literatura. Discretamente, mas extremamente importante para ele, era um homem de fé. Era um verdadeiro gigante dos nossos tempos e agora é merecidamente o tema de uma esplêndida biografia, escrita por outro sinólogo belga, Philippe Paquet.

É uma longa biografia — setecentas ou mais páginas impressas contudo, incomum para uma biografia moderna; não é muito longa, pelo menos não para qualquer pessoa interessada na vida de uma mente, e, no final, lamentei ter rompido com o assunto. Lembro-me de ter lido uma biografia de Brecht com aproximadamente o mesmo tamanho, que, de certa forma, era uma imagem espelhada dessa biografia: considerando que em setecentas páginas Brecht raramente fazia algo decente, em setecentas páginas mostrou-se que Leys não fez outra coisa.

Não é uma mera hagiografia, pois quando o autor claramente admira demais seu objeto, é porque Leys era realmente admirável. Duvido muito que alguém no futuro venha a descobrir que Leys tinha pés de barro ou praticava vícios secretos, que são o deleite comum de biógrafos, editores e do público nos momentos em que tentamos encaixar grandes homens no leito procustiano da nossa própria mediocridade. O que Paquet demonstra é que Leys (ou melhor, Ryckmans) foi, desde o início, o notável descendente de uma culta e notável família: um tio era um douto, humano e ilustre governador-geral do Congo, e um outro, o decano dos eruditos da Arábia pré-islâmica. Ele foi dotado com o que parece ter sido uma independência natural de pensamento e (o que é muito mais raro) consistência de julgamento.

Realizando uma viagem ao Congo, quando um jovem de 20 anos, Ryckmans não aproveitou suas conexões para viajar com luxo, mas, pelo contrário, insistiu em enxergar a África de baixo para cima. (Nenhum homem era menos ambicioso ou aspirava menos luxos do que ele). Suas reflexões publicadas sobre o destino da África ao se aproximar da independência são de uma maturidade e uma penetração surpreendentes.

Em linhas gerais, podemos dizer que sua ambição [a dos africanos] os empurra, ao mesmo tempo, a rejeitar e a tornar-se a Europa (quando falo da Europa, refiro-me à Europa que eles conhecem, isto é, a Europa na África). Eles querem ser como esses homens poderosos que os humilham; querem ser aqueles que não querem..."

“Quem pode culpá-los por sua ávida ambição, seu desejo de poder, sua aridez cultural? Estes homens algemados não podem planejar sua fuga a não ser pela imitação dos únicos modelos de liberdade e grandeza que lhes demos. E que outra imagem da Europa eles têm, senão a da ganância sem medida, da riqueza sem justificação espiritual e do exercício do poder sem limites?

Pode haver melhores descrições acerca da situação da África na época de sua independência (e muito tempo depois), mas, se assim for, não as conheço.

O fato é que Leys demonstrou a mesma profundidade e julgamento em todos os assuntos sobre os quais escolheu escrever (e foram muitos). Ele foi uma espécie de senso comum elevado a um poder superior, o mesmo tipo de senso comum que o dr. Johnson possuía. Não por acaso, talvez Leys, excepcionalmente para um escritor francófono e como outra manifestação da independência e da solidez de seu julgamento —, tivesse uma grande admiração por Johnson e o que ele chamou de sua “fonte inesgotável de sabedoria”. Não posso deixar de pensar no que um homem distinto disse a Boswell sobre a morte de Johnson: “Ele criou um abismo que não apenas nada pode preencher, como nada possui a tendência de preencher. Johnson está morto. Passemos, então, para o próximo melhor: não há ninguém; nenhum homem pode ser comparado a Johnson”.

Penso que o mesmo pode ser dito de Leys.

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Theodore Dalrymple

é um médico psiquiatra e escritor britânico, também conhecido pelos pseudônimos Theodore Dalrymple e Edward Theberton, entre outros.


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