Sobre as Revoluções

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Traduzido por Valéria Campelo
03 de fevereiro de 2023

Neste trecho da obra “Considérations sur la France” de Joseph de Maistre,apresentamos uma leitura da Revolução Francesa de uma perspectiva pouco usual: a de quem estava lá.

 

Joseph de Maistre, 1796

Estamos todos ligados ao trono do Ser Supremo por uma corrente flexível que nos restringe sem nos escravizar. O aspecto mais esplêndido do esquema universal das coisas é a ação de seres livres sob orientação divina. Livremente escravos, eles agem tanto por vontade quanto por necessidade: realmente fazem o que desejam sem serem capazes de interferir nos planos gerais. Cada um está no centro de uma esfera de atividade cujo diâmetro varia conforme a decisão da geometria eterna, que pode estender, restringir, examinar ou dirigir a vontade sem alterar sua natureza.

Nas obras do homem, tudo é tão pobre quanto seu autor; a visão é confinada, os meios são limitados, o alcance é restrito, os movimentos são funcionais e os resultados são monótonos. Nas obras divinas, riquezas ilimitadas revelam-se até mesmo no menor componente; seu poder opera sem esforço: em suas mãos tudo é flexível, nada pode resistir; tudo é um meio, nada um obstáculo; e as irregularidades produzidas pelo trabalho dos agentes livres encaixam-se na ordem geral.

Imagine-se um relógio cujas molas variam continuamente em força, peso, dimensão, forma e posição, e que, no entanto, invariavelmente mostra o horário correto, e então se pode ter uma ideia da ação dos seres livres em relação aos planos do Criador.

No mundo político e moral, como no físico, há uma ordem usual e há exceções a esta ordem. Normalmente, vemos uma série de efeitos seguindo as mesmas causas; mas, em certos momentos, vemos efeitos usuais suspensos, paralisados, e novas consequências emergentes.

Um milagre é um efeito produzido por uma causa divina ou sobre-humana que suspende ou é inconsistente com uma causa comum. Se, no meio do inverno, um homem, diante de mil testemunhas, ordenar a uma árvore que se cubra instantaneamente de folhas e frutos, e a árvore obedecer, todos proclamarão um milagre e se prostrarão diante do taumaturgo. Mas a Revolução Francesa, assim como tudo que está acontecendo na Europa neste momento, é tão miraculosa quanto a frutificação instantânea de uma árvore em janeiro; não obstante, os homens ignoram ou murmuram bobagens, em vez de admirar. Na ordem física, onde o homem não interfere como causa, ele está sempre pronto para admirar o que não entende; mas na esfera de sua própria atividade, onde ele sente que age livremente como causa, seu orgulho facilmente o leva a enxergar desordem onde quer que seu poder seja perturbado ou suspenso. Certas ações dentro do poder do homem produzem regularmente determinados efeitos no curso normal dos acontecimentos; se errar o alvo, ele sabe ou acha que sabe por quê; reconhece as dificuldades, aprecia-as, e nada o escandaliza. Mas nos tempos revolucionários, a corrente que liga o homem é abruptamente encurtada, seu campo de ação é comprometido e seus meios o enganam. Levado por uma força desconhecida, revolta-se contra ela e, em vez de beijar a mão que o abraça, a ignora ou insulta.

"Eu não entendo nada" é o lema popular. A frase é sensível se nos leva à raiz da grande visão que agora é apresentada aos homens; é estúpida se expressa apenas lamúria ou desânimo estéril. O choro  se levanta de todos os lados: “Como podem, então, os homens mais culpados do mundo triunfar sobre o mundo? Um regicídio medonho alcança todo o sucesso esperado pelos seus perpetradores. A monarquia adormece em toda a Europa. Seus inimigos encontram aliados até mesmo nos próprios tronos. Os maus prosperam em tudo. Realizam os mais imensos projetos sem dificuldade, enquanto os justos são infelizes e infortunados em tudo que empreendem. Opiniões se espalham contra a fé em toda a Europa. Os principais estadistas erram continuamente. Os maiores generais estão humilhados. E assim por diante”.

Sem dúvida, pois sua condição primária o determina, não há meios de impedir uma revolução e nenhum sucesso pode atender àqueles que desejam impedi-la. Mas o propósito nunca é mais evidente, a Providência nunca é mais palpável, do que quando o divino substitui a ação humana e opera sozinho. Isto é o que vemos neste momento.

O aspecto mais marcante da Revolução Francesa é esta força avassaladora que desvia de todos os obstáculos. Seu sopro levanta como palha tudo que o poder humano contra ela opõe. Ninguém marchou contra ela impune. A pureza da motivação foi capaz de tornar a resistência honrosa, mas isso é tudo; e esta força impetuosa, movendo-se inexoravelmente para o seu objetivo, rejeita tanto Charette quanto Dumouriez e Drouet.

Alguém disse com boas razões que a Revolução Francesa lidera os homens mais do que os homens a lideram. Esta observação é perfeitamente sensata; e, embora possa ser aplicada mais ou menos a todas as grandes revoluções, nunca esteve mais ilustrada do que neste momento. Os vilões que parecem guiar a Revolução só participam dela como simples instrumentos; e assim que aspiram dominá-la, caem sem glória. Aqueles que estabeleceram a República o fizeram sem desejar e sem perceber o que estavam criando; foram conduzidos pelos eventos: nenhum plano atingiu seu objetivo pretendido.

Nunca Robespierre, Collot ou Barere pensaram em estabelecer o governo revolucionário ou o reino do Terror; eles foram levados imperceptivelmente pelas circunstâncias, e tal perspectiva nunca mais será vista outra vez. Homens extremamente medíocres estão exercendo sobre uma nação culpável o mais pesado despotismo que a história já viu, e, entre todos no reino, certamente são eles os mais surpreendidos com o seu poder.

Mas, no exato momento em que esses tiranos cometeram todo crime necessário para esta fase da Revolução, um sopro de vento começou a derrubá-los. Este poder gigantesco, diante do qual a França e a Europa tremiam, não pôde resistir à primeira rajada; e porque não poderia haver nenhum traço possível de grandeza ou dignidade em uma revolução tão absolutamente criminosa, a Providência decretou que o primeiro golpe deveria ser desferido pelos Setembristas, de modo que a própria justiça pudesse ser degradada.

É surpreendente e espantoso que os homens mais medíocres tenham julgado melhor a Revolução Francesa que os mais cultos; que tenham acreditado nela tão firmemente enquanto os homens estudados permaneceram incrédulos. Esta convicção foi um dos principais elementos da Revolução, que só poderia obter sucesso devido à extensão e ao vigor do espírito revolucionário, ou, como se pode expressar, devido à fé revolucionária. Homens extremamente inaptos e ignorantes dirigiram habilmente aquilo que chamam de “carruagem revolucionária”; todos se aventuraram sem temer a contrarrevolução; dirigiram todo tempo sem olhar para trás; e tudo desabou em seu colo, por serem apenas instrumentos de uma força  muito mais previdente. Não deram passos em falso em sua jornada revolucionária, pela mesma razão que o flautista de Vaucanson [1] nunca tocou uma nota falsa.

A corrente revolucionária tomou rumos sucessivamente diversos; e os líderes revolucionários mais proeminentes adquiriram o tipo de poder e renome que lhes foi dado apenas por seguirem as exigências do momento. Uma vez que tentaram se opor a elas ou até mesmo afastar-se de seu curso predestinado, isolando-se e seguindo sua própria vontade, sumiram de cena...

Em suma, quanto mais se examina as personalidades aparentemente mais ativas da Revolução, mais se encontra algo passivo e mecânico sobre elas. Não é demais repetir que os homens não guiam a Revolução de fato; é a Revolução que usa os homens. Foi bem dito que ela tem seu próprio ímpeto. E isso mostra que o Divino nunca antes se revelou tão claramente em um evento humano. Se ele emprega os instrumentos mais vis, é para regenerar através da punição.

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Joseph de Maistre

foi um escritor, filósofo, diplomata e magistrado. Foi um dos proponentes mais influentes do pensamento contrarrevolucionário ultramontanista no período imediatamente seguinte à Revolução Francesa de 1789.


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