Filósofos e teólogos da tradição cristã têm considerado os seres humanos como distintos dos outros animais pela presença de uma centelha divina em seu interior. Essa fonte interna de iluminação, a alma, não pode ser externamente apreendida e é, de certa forma, desconectada da ordem natural, talvez alçando voo para algum lugar sobrenatural quando o corpo colapsa e morre.
Recentes avanços no campo da genética, da neurociência e da psicologia evolucionista chegaram ao ponto de quase matar essa ideia; mas eles acabaram por levantar a questão do que colocar no lugar dela. Visto que, claramente, apesar de sermos animais conectados na rede de causalidade que nos une à zoosfera, não somos apenas animais.
Existe algo na condição humana que sugere a necessidade de um tratamento especial. Quase todas as pessoas acreditam que é um crime matar um inocente, mas não acreditam ser igualmente um crime matar uma tênia inocente. E quase todas as pessoas acreditam que as tênias são incapazes de inocência em qualquer caso — não porque elas são sempre culpadas, mas porque a distinção entre inocente e culpado não se aplica a elas. Elas são o tipo errado de coisa.
Nós, entretanto, somos o tipo certo de coisa. Então, que tipo é esse? Algum outro tipo de ser, animal ou não, pertence a esse tipo? E o que se segue disso? Essas questões se encontram no centro da investigação filosófica hoje, assim como já se encontravam desde os gregos antigos. Distinguimos as pessoas do resto da natureza de diversas maneiras e construímos nossas vidas de acordo com isso. Acreditamos que as pessoas possuem direitos, que elas são soberanas sobre suas vidas e que aqueles que vivem escravizando e abusando dos outros estão negando sua própria humanidade. [1] Certamente existem fundamentos para essas crenças, assim como existem fundamentos para toda a tradição moral, legal, artística e espiritual que tome a distinção da vida humana como seu ponto de partida.
Se, assim como muitos acreditam, existe um Deus, e esse Deus nos fez à sua própria imagem, então certamente somos distintos da natureza, assim como Ele é. Mas falar sobre a imagem de Deus é uma metáfora para o próprio fato que precisamos explicar, a saber, de que tratamos o ser humano como uma coisa à parte, uma coisa protegida por uma aura sagrada – em resumo, nem do longe uma coisa, mas uma pessoa. [2]
Muito da filosofia do século XX é dirigida à questão de como definir esse fato em termos seculares sem se afundar em ideias religiosas. Quando Sartre e Merleau-Ponty escrevem sobre “le regard” — o olhar — e Emmanuel Levinas sobre o rosto, eles estão descrevendo a maneira pela qual os seres humanos se distinguem do seu arredor e se dirigem uns aos outros com uma demanda absoluta de que nenhuma mera coisa poderia fazer parte. Wittgenstein diz algo parecido ao descrever o rosto como a alma do corpo, assim como Elizabeth Anscombe descreve a marca intencional da ação como a aplicabilidade de um certo sentido da pergunta “Por que?”.
Os seres humanos vivem em responsabilidade mútua, cada um respondendo ao outro e sendo objeto de julgamento. Os olhos dos outros dirigem-se a nós com uma questão inevitável, a pergunta “por que?”. Sobre esse fato é construído o edifício dos direitos e dos deveres. E, no fim, é disso que nossa liberdade consiste — a responsabilidade de prestar contas pelo que fazemos.
Psicólogos evolucionistas contam-nos outra história. Moral, como eles argumentam, é uma adaptação. Se organismos competem por recursos, então a estratégia de cooperação será mais eficaz no longo prazo do que a estratégia do egoísmo puro. Consequentemente, as características cooperativas de um organismo serão selecionadas ao longo do tempo. E tudo que existe de especial na condição humana pode ser compreendido dessa maneira — como o resultado de um longo processo de adaptação que nos conferiu a insuperável vantagem da moralidade, pela qual podemos resolver nossos conflitos sem lutar e nos ajustar às demandas que nos assediam de todos os lados. [3]
O surpreendente equipamento moral dos seres humanos — incluindo direitos e deveres, obrigações pessoais, justiça, ressentimento, julgamento e perdão — é o depósito deixado por milênios de conflito. A moralidade é como um campo de flores sob o qual mil camadas de cadáveres são empilhadas. É um mecanismo evoluído no qual o organismo humano progride pela vida sustentado por todos os lados pelos laços do interesse mútuo.
Estou bastante confiante de que o cenário pintado pelos psicólogos evolucionistas é verdadeiro; mas também estou confiante de que essa não é toda a verdade e de que esse cenário deixa de lado aquilo que é mais importante: o sujeito humano. Nós, seres humanos, não enxergamos uns aos outros como os animais enxergam uns aos outros, ou seja, apenas como membros de uma mesma espécie. [4] Relacionamo-nos uns com os outros não como objetos, mas como sujeitos, como criaturas que abordam umas às outras “eu” para “você” — um ponto feito central para a condição humana por Martin Buber em sua célebre meditação mística “Eu e Tu”. [5]
Entendemo-nos na primeira pessoa e por isso dirigimos nossas observações, ações e emoções não aos corpos das outras pessoas, mas às palavras e aos olhares que se originam no horizonte subjetivo onde só eles podem estar.
Esse fato misterioso é refletido em todos os níveis de nossa linguagem e se encontra nas raízes de muitos paradoxos. Quando falo sobre mim mesmo na primeira pessoa, faço proposições que não afirmo sobre nenhuma base e sobre as quais, em um vasto número de casos, não posso estar errado. Mas eu posso estar completamente enganado acerca desse ser humano que está falando. Então, como posso ter certeza de que estou falando sobre esse mesmo ser humano? Como posso saber, por exemplo, que sou o Roger Scruton, e não o David Cameron sofrendo de delírios de grandeza?
Para encurtar a história: ao falar em primeira pessoa podemos fazer afirmações sobre nós mesmos, responder perguntas e nos envolver em raciocínios e aconselhamentos de maneiras que ultrapassam todos os métodos de descobrimento comuns. Como resultado, podemos participar em diálogos fundamentados na garantia de que, quando eu e você falamos com sinceridade, o que dizemos é confiável: estamos “falando com as nossas mentes”. Esse é o coração do encontro Eu-Você.
Consequentemente, enquanto pessoas, habitamos um mundo vivo que não pode ser reduzido ao mundo da natureza, assim como a vida em uma pintura não pode ser reduzida às linhas e pigmentos das quais é composta. Se isso for verdade, então existe algo sobrando para a filosofia fazer como forma de dar sentido à condição humana. A filosofia tem a tarefa de descrever o mundo no qual vivemos — não o mundo como a ciência o descreve,[6] mas o mundo como ele é representado nas nossas relações, um mundo organizado pela linguagem, no qual conhecemos uns aos outros de Eu para Eu.
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