O problema dos universais

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Traduzido por Gabriel Gusso
06 de junho de 2022

Boécio, em seu comentário sobre o Isagoge de Porfírio, cita uma passagem em que Porfírio se recusa a estabelecer se gêneros e espécies são entidades subsistentes ou se são apenas conceitos; se subsistem, se são materiais ou imateriais e, mais ainda, se são separadas ou não dos objetos sensíveis, a tal nível que a elevação da matéria nos impede de tratá-la numa introdução. O próprio Boécio, entretanto, trata do assunto, primeiro ressaltando a dificuldade da questão e o cuidado necessário para abordá-la, depois apontando que existem dois caminhos pelos quais uma ideia pode ser formada de modo que seu conteúdo não seja encontrado em objetos extramentais precisamente como existe na ideia. Por exemplo, pode-se unir arbitrariamente homem e cavalo para formar a ideia de um centauro, unindo objetos que a natureza proíbe unir, e tais ideias arbitrariamente construídas são “falsas”. Por outro lado, se formamos a ideia de uma linha, isto é, uma simples linha como considerada pelo geômetra, então, embora seja verdade que não existe uma simples linha por si mesma na realidade extramental, a ideia não é “falsa”, já que corpos envolvem linhas e tudo o que fizemos foi isolar a linha e considerá-la abstratamente. Composição (como a composição de cavalo e homem para formar o centauro) produz uma ideia falsa, enquanto abstração produz uma ideia verdadeira, ainda que a coisa concebida não exista extramentalmente em um estado de abstração ou separação.

Agora, as ideias de espécie e gênero são ideias do último tipo, formadas por abstração. A semelhança da humanidade é abstraída de homens individuais, e esta semelhança, considerada na mente, é a ideia da espécie, enquanto a ideia do gênero é formada através da semelhança de diversas espécies. Consequentemente, “gêneros e espécies estão em indivíduos, mas, como pensamento, são universais”. Elas “subsistem em coisas sensíveis, mas são entendidas sem corporeidade”. Extramentalmente há apenas um sujeito para gênero e espécie, ou seja, o indivíduo, mas isto não impede que seus seres sejam considerados separadamente não mais do que o fato de que a mesma linha, ao mesmo tempo côncava e convexa, não impede que tenhamos ideias diferentes de côncavo e convexo e as definamos de formas diferentes.

Boécio então forneceu o material para uma solução aristotélica do problema, ainda que ele não pense ser adequado ter que decidir entre Platão e Aristóteles, e tenha dito que só seguiu as opiniões de Aristóteles porque seu livro trata das Categorias, das quais Aristóteles é o autor. Mas ainda que Boécio tenha fornecido material para uma solução do problema dos universais nas linhas do realismo moderado, e ainda que suas citações e comentários sobre Porfírio tenham iniciado a discussão do problema no início da Idade Média, a primeira solução dos medievais não seguiu as linhas sugeridas por Boécio, mas foi uma forma simplista de realismo extremo.

Pessoas sem imaginação podem supor que, ao ocupar-se com este problema, os medievais investigavam um tópico inútil, ou entregavam-se a um malabarismo dialético sem lucros; mas uma breve reflexão deve ser suficiente para mostrar a importância do problema, pelo menos se suas implicações forem consideradas.

Embora as coisas que vemos e tocamos sejam particulares, quando pensamos nelas não podemos deixar de usar ideias e palavras gerais, como quando dizemos “Este objeto particular, que eu vejo, é uma árvore, um ulmeiro para ser preciso.” Este juízo afirma de um objeto particular que ele é de certo tipo, que pertence ao gênero árvore e à espécie ulmeiro; mas está claro que pode haver muitos outros objetos além daquele percebido, abrangidos pelas mesmas ideias aos quais os mesmos termos se aplicam. Em outras palavras, objetos fora da mente são individuais, ao passo que conceitos são gerais, de caráter universal, de forma que se aplicam indiferentemente a uma multitude de indivíduos. Mas, se objetos extramentais são particulares e conceitos humanos são universais, é claramente importante descobrir a relação que os associa. Se o fato de que objetos subsistentes são individuais e conceitos são gerais significa que conceitos universais não possuem fundamento na realidade extramental, se a universalidade de conceitos significa que eles são meras ideias, então uma fenda entre pensamento e objeto é criada, e nosso conhecimento, que é expressado em conceitos e juízos universais, possui no mínimo uma validade dubitável.

O cientista expressa seu conhecimento em termos abstratos e universais (por exemplo, ele não afirma algo deste elétron particular, mas de elétrons em geral), e se esses termos não estão fundados na realidade extramental, sua ciência é uma construção arbitrária que não possui relação com a realidade. Até agora, pois, como os juízos humanos são de um caráter universal ou envolvem conceitos universais, como na afirmação de que esta rosa é vermelha, o problema se estende ao conhecimento humano em geral, e se a questão sobre a existência de um fundamento extramental de um conceito universal é respondida negativamente, daí resulta o ceticismo.

O problema pode ser levantado de várias formas, e, historicamente falando, ele tomou várias formas em várias épocas. Pode-se levantá-lo desta forma, por exemplo. “O que, se há algo, na realidade extramental corresponde aos conceitos universais da mente?”. Esta pode ser chamada de abordagem ontológica, e foi com base nela que se discutiu a questão na Idade Média Arcaica. Ou poder-se-ia perguntar como nossos conceitos universais são formados. Esta é a abordagem psicológica, embora as duas linhas de abordagem estejam estreitamente conectadas e ninguém possa tratar minimamente da questão ontológica sem também responder, de algum modo, a questão psicológica. Então, novamente: se se supõe uma solução conceptualista, de que conceitos universais são simplesmente construções conceituais, pode-se perguntar como o conhecimento científico, que para todos os propósitos práticos é um fato, é possível. Mas, seja qual for o problema, ou a forma do problema, levantado, ele é de importância fundamental. Talvez um dos fatores que possam dar a impressão de que os medievais discutiam uma questão relativamente desimportante é este: que eles praticamente confinaram sua atenção a gêneros e espécies na categoria da substância. Não que o problema, mesmo nesta forma específica, seja de pouca importância, mas se o problema é levantado em relação às outras categorias, suas implicações para no mínimo a maior parte do conhecimento humano fica mais evidente. Fica claro que o problema é, em última instância, o problema epistemológico da relação do pensamento com a realidade.

A primeira solução dada pelos medievais ficou conhecida como “Realismo Exagerado”. Que tenha sido cronologicamente a primeira solução apoia-se no fato de que os opositores desta visão foram por algum tempo conhecidos como modernos, enquanto Abelardo, por exemplo, refere-se a ela como a antiqua doctrina. Segundo esta visão, nossos conceitos genéricos e específicos correspondem a uma realidade que existe extramentalmente nos objetos, uma realidade subsistente que os indivíduos compartilham. Logo, o conceito Homem ou Humanidade reflete uma realidade, humanidade ou a substância da natureza humana, que existe extramentalmente do mesmo modo como é pensada, ou seja, como uma substância unitária compartilhada por todos os homens. Se para Platão o conceito Homem reflete o ideal da natureza humana subsistindo separadamente e “fora” de homens individuais, um ideal que cada homem individual incorpora ou “imita” em maior ou menor extensão, o realista medieval acreditava que o conceito reflete uma substância unitária que existe extramentalmente, da qual o homem participa ou da qual é uma modificação acidental. Esta visão é, por certo, extremamente ingênua, e indica uma completa incompreensão do tratamento que Boécio deu à questão, pois ela supõe que, a não ser que o objeto refletido pelo conceito exista extramentalmente do exato mesmo modo que existe mentalmente, o conceito será puramente subjetivo. Em outras palavras, ela supõe que o único meio de salvar a objetividade do nosso conhecimento é manter uma ingênua e exata correspondência entre pensamento e coisa.

O realismo já está implicado no ensinamento, por exemplo, de Fredegiso, que sucedeu Alcuin como Abade da Abadia de São Martin, em Tours. Ele sustentava que todo nome ou termo supõe uma realidade positiva correspondente (por exemplo, Escuridão ou Nada). Também está implicado nos ensinamentos de João Escoto Eriugena. Encontramos uma afirmação da doutrina no ensinamento de Remígio de Auxerre (c. 841-908), que sustentava que a espécie é uma partitio substantialis do gênero e que a espécie, por exemplo, Homem, é a unidade substancial de muitos indivíduos (Homo est multorum hominum substantiate unitas). Uma afirmação deste tipo, se significa que a pluralidade de homens individuais possui uma substância comum que é numericamente uma, possui a conclusão natural de que homens individuais podem diferir apenas acidentalmente de outro, e Odo de Tournai (m. 1113), da Escola Catedrática de Tournai (que também é chamado Odo de Cambrai, pois ele tornou-se Bispo de Cambrai) não hesitou em tomar esta conclusão, sustentando que, quando uma criança vem a ser, Deus produz uma nova propriedade de uma substância já existente, não uma nova substância. Logicamente, este ultrarrealismo resultaria em um monismo puro. Por exemplo, temos os conceitos de substância e de ser. Dos princípios do ultrarrealismo seguiria que todos os objetos aos quais aplicamos o termo substância seriam modificações de uma única substância, e, mais compreensivelmente, que todos os seres seriam modificações de um único Ser. É provável que esta atitude tenha influenciado João Escoto Eriugena, levando-se em conta que ele pode ser chamado monista.

Como o professor Gilson e outros já apontaram, aqueles que sustentaram o ultrarrealismo na Idade Média Arcaica estavam filosofando como lógicos, no sentido de que eles assumiam que as ordens lógica e real eram exatamente paralelas, e que por conta do significado, por exemplo, de “homem” nas afirmações “Platão é um homem” e “Aristóteles é um homem” ser o mesmo, haveria uma identidade substancial na ordem do real entre Platão e Aristóteles. Mas seria, penso, um erro supor que os ultrarrealistas foram influenciados apenas por questões lógicas: eles o foram também por questões teológicas. Isto fica claro no caso de Odo de Tournai, que usou o ultrarrealismo para explicar a transmissão do pecado original. Se o pecado original é entendido como uma infecção positiva da alma humana, nos deparamos com um dilema aparente: ou se diz que Deus cria a partir do nada uma nova substância humana cada vez que uma criança vem a ser, Deus sendo consequentemente responsável pela infecção, ou nega-se que Deus cria a alma humana. O que Odo de Tournai sustentou foi uma forma de traducianismo, isto é, que a natureza humana, ou substância de Adão, infectada pelo pecado original, é passada na geração, e que o que Deus cria é simplesmente uma nova propriedade de uma substância já existente.

Não é sempre fácil determinar o significado preciso das palavras dos medievais arcaicos, assim como não podemos sempre distinguir com certeza se um escritor reconhecia totalmente as implicações das suas palavras ou se ele estava fazendo um levantamento empático na controvérsia, talvez como um argumentum ad hominem, sem conscientemente desejar que sua afirmação fosse entendida no significado literal. Assim, quando Roscelino disse que as três Pessoas da Santíssima Trindade também podem ser chamadas três deuses, se o uso permitisse, tomando-se que todo ser existente é um indivíduo, Santo Anselmo (1033-1109) perguntou-se como aquele que não entende como uma multitude de homens pode ser especificamente um único homem poderia entender como várias Pessoas, cada uma das quais é perfeito Deus, poderiam ser um único Deus. Com a força desta afirmação Santo Anselmo foi chamado de ultrarrealista, ou realista exagerado, e, de fato, a interpretação natural da afirmação, à luz do dogma teológico envolvido, é esta: assim como não há senão uma Substância ou Natureza na Trindade, não há senão uma substância ou natureza (isto é, numericamente uma) em todos os homens. Pode ser que Santo Anselmo estivesse argumentando ad hominem e que sua questão, como pretendida, apenas estivesse perguntando como um homem que não percebe a unidade específica dos homens (supondo, seja certo ou errado, que Roscelino negou toda realidade ao universal) poderia captar a união muito maior das Pessoas divinas em uma Natureza, uma Natureza que é numericamente uma. Santo Anselmo pode ter sido um ultrarrealista, mas a segunda interpretação da sua questão é apoiada pelo fato de que ele obviamente compreendeu Roscelino como um defensor da tese de que universais não possuem realidade, mas são meros flatus vocis, além do fato de que, nos Dialogus de Grammatico [2], ele distinguiu substâncias primárias e secundárias, mencionando Aristóteles pelo nome.

Se o princípio dos ultrarrealistas era a exata correspondência entre pensamento e realidade extramental, o princípio dos adversários do ultrarrealismo era o de que apenas indivíduos existem. Deste modo Eric (Heiricus) de Auxerre (841-76) observou que se alguém tentasse sustentar que o branco ou o preto existem absolutamente e sem uma substância à qual eles aderem, esta pessoa não poderia referenciar qualquer realidade correspondente: teria de referir-se a um homem branco ou a um cavalo negro. Nomes gerais não correspondem a objetos gerais ou universais; seus únicos objetos são indivíduos. Como, então, conceitos universais surgem e qual é sua função e sua relação com a realidade? Nem a compreensão nem a memória pode captar todos os indivíduos, e assim a mente condensa (coarctat) a multitude de indivíduos e forma a ideia de espécie, isto é, homem, cavalo, leão. Mas as espécies de animais ou plantas são elas mesmas muito numerosas para serem compreendidas pela mente em um só ato, e então reúnem-se as espécies para formar o gênero. Existem, entretanto, muitos gêneros, e a mente dá mais um passo de coarctatio, formando o ainda assim grande e extenso conceito de ousia (οὐσία). Num primeiro olhar, esta parece ser uma posição nominalista, e lembra uma das teorias estenógrafas de J. S. Mill; mas, na ausência de maiores evidências, é difícil afirmar que foi realmente esta a visão sustentada por Eric. É provável que ele só tenha querido afirmar empaticamente que apenas os indivíduos existem, isto é, negar o ultrarrealismo, e ao mesmo tempo dar atenção à explicação psicológica dos conceitos universais. Não temos evidências suficientes para garantir uma afirmação de que ele negou qualquer fundamento real ao conceito universal.

Uma dificuldade de interpretação similar surge em relação aos ensinamentos de Roscelino (c. 1050-1120), que, depois de estudar em Soissons e Rheims, ensinou em Compiègne, sua cidade natal, Loches, Besançon e Tours. Seus escritos foram perdidos, exceto uma carta a Abelardo, e dependemos do testemunho de outros escritores como Santo Anselmo, Abelardo e João de Salisbury. Estes escritores deixam perfeitamente claro que, de fato, Roscelino foi um oponente do ultrarrealismo e que ele sustentou que apenas indivíduos existem, mas seu ensinamento positivo não é tão claro. De acordo com Santo Anselmo [3], Roscelino afirmava que o universal é mera palavra (flatus vocis), daí porque Santo Anselmo o classificou como um dos hereges dialéticos contemporâneos. Anselmo observou que essas pessoas pensam que a cor não é nada além de corpo, e que a sabedoria humana não é nada mais que alma, e que a maior falta dos “hereges dialéticos” está no fato de que suas razões estão tão ligadas às imaginações que eles não podem se libertar de imagens e contemplar abstratos e puros objetos inteligíveis [4]. Que Roscelino tenha dito que universais são palavras, palavras gerais, não podemos questionar, já que o testemunho de Santo Anselmo é bastante claro; mas é difícil entender precisamente o que ele quis dizer com isso. Se interpretamos Santo Anselmo mais ou menos como um aristotélico, isto é, não como um ultrarrealista, então deveríamos dizer que ele entendeu que os ensinamentos de Roscelino envolviam uma negação de qualquer forma de objetividade do universal; ao passo que, se interpretarmos Anselmo como um ultrarrealista, podemos supor que Roscelino estava apenas negando o ultrarrealismo de um modo bastante empático. Não se pode negar, obviamente, que a afirmação de que os universais são mero flatus vocis é, tomada literalmente, uma negação não apenas do ultrarrealismo e do realismo moderado, mas até do conceptualismo e da presença de conceitos universais na mente; mas não temos evidências suficientes para dizer o que Roscelino sustentava sobre o conceito como tal, ou mesmo se ele deu alguma atenção ao assunto; pode ser que, em sua determinação de negar o ultrarrealismo, isto é, a subsistência formal dos universais, ele simplesmente opôs o universale in voce ao subsistente universal, querendo dizer que apenas indivíduos existem e que o universal como tal não existe extramentalmente, mas sem querer afirmar qualquer coisa sobre o universale in mente, que ele pode ter simplesmente ignorado, isto se chegou a pensar no assunto. Fica claro a partir de algumas notas de Abelardo em sua carta sobre Roscelino endereçada ao Bispo de Paris [5], assim como em sua De divisione et definitione, que, segundo Roscelino, uma parte é mera palavra, como quando dizemos que o todo de uma substância é constituído de partes — a ideia de um todo consistindo de partes é “mera palavra” — já que a realidade objetiva é uma pluralidade de coisas individuais ou substâncias; mas seria difícil concluir a partir disso que Roscelino, se cobrado por este posicionamento, estaria preparado para sustentar que não temos a ideia de um todo consistente de partes. Não é possível que ele tenha querido dizer simplesmente que nossas ideias de um todo consistente de partes são puramente subjetivas, e que a única realidade objetiva é uma multiplicidade de substâncias individuais? (De forma similar, ele parece ter negado a unidade lógica do silogismo, dissolvendo-o em proposições separadas.) Segundo Abelardo, a asserção de Roscelino de que as ideias de todo e parte são meras palavras é equivalente à sua asserção de que espécies são meras palavras; e se a interpretação acima é sustentável para a relação todo-parte, poderíamos aplicá-la também à sua doutrina de gêneros e espécies e dizer que, quando ele identifica gêneros e espécies com palavras, afirma deles a subjetividade mais do que nega que exista algo como uma ideia geral.

Ninguém precisa, é claro, bater o martelo sobre uma interpretação de Roscelino. Ele pode de fato ter sido um nominalista em um sentido completo e ingênuo, e eu certamente não estou preparado para dizer que ele não foi um nominalista pura e simplesmente. João de Salisbury parece tê-lo entendido por este lado, já que ele diz que “alguns tem a ideia de que as palavras em si mesmas são os gêneros e as espécies, embora esta visão tenha sido rejeitada há muito tempo e tenha desaparecido com seu autor” [6], uma observação que deve referir-se a Roscelino, pois o mesmo autor diz em seu Metalogicus [7] que a visão que identifica espécies e gêneros com palavras praticamente desapareceu com Roscelino. Mas, ainda que Roscelino possa ter sido um nominalista puro, e embora o testemunho fragmentado dos seus ensinamentos, se tomados literalmente, certamente apoiem essa interpretação, ainda não parece possível afirmar sem dúvidas que ele deu qualquer atenção à questão, ou seja, se temos ideas de gêneros e espécies ou não, mesmo que ele o negasse, mesmo que suas palavras implicassem isto. Tudo o que somos autorizados a dizer com certeza é que, seja nominalista ou conceptualista, Roscelino foi um antirrealista confesso.

Foi dito anteriormente que Roscelino propôs uma forma de “Triteísmo” que provocou a inimizade de Santo Anselmo e que o levou à condenação e à obrigação de retratar sua teoria no Conselho de Soissons em 1092. Esta série de investidas na teologia por parte dos dialéticos foi largamente responsável pela hostilidade recebida por eles de homens como São Pedro Damião. Os dialéticos peripatéticos, ou sofistas, leigos vindos da Itália que viajavam de um centro de estudo para outro, homens como Anselmus Peripateticus de Parma, que tentaram ridicularizar o princípio da não-contradição, naturalmente puseram a dialética sob maus olhos através de malabarismos e verborragias sofísticas; mas assim que limitaram-se a disputas verbais, passaram a ser não mais que uma inconveniência irritante; foi quando começaram a aplicar sua dialética à teologia e caíram em heresia que eles despertaram a inimizade dos teólogos. Assim, Berengário de Tours (c. 1000-88), sustentando que acidentes não podem existir sem a sua substância de apoio, negou a doutrina da Transubstanciação. Berengário foi um monge e não um Peripateticus, mas seu espírito de desprezo à autoridade parece ter sido característico de um grupo de dialéticos do século XI, e foi principalmente esta espécie de atitude que levou São Pedro Damião a dizer que a dialética é uma superfluidade, ou Otlo de S. Emmeran (c. 1010-70) a dizer que certos dialéticos têm mais fé em Boécio do que nas Escrituras.

São Pedro Damião era pouco simpático às artes liberais (são inúteis, ele dizia) ou com a dialética, já que elas não se preocupam com Deus ou com a salvação da alma, embora, como teólogo e escritor, o próprio Santo tivesse de usar a dialética. Ele estava, entretanto, convencido de que a dialética é uma atividade muito inferior, e que seu uso na teologia é puramente subsidiário e subordinado, não só porque dogmas são verdades reveladas, mas também no sentido de que mesmo os princípios últimos da razão falham quando se os aplica à teologia. Por exemplo, Deus, segundo São Pedro Damião, não é apenas árbitro de valores morais e da lei moral (ele provavelmente simpatizaria com as reflexões de Kierkegaard sobre Abraão), mas pode também fazer com que um evento histórico deva ser “desfeito”, com que nunca devesse ter ocorrido, e se isto parece contrariar o princípio da não-contradição, então pobre princípio da não-contradição: isto apenas mostra a inferioridade da lógica em comparação com a teologia. Em resumo, o lugar da dialética é o mesmo da criada, velut ancilla dominae [8].

A ideia de “criada” também foi utilizada por Gerard de Czanad (m. 1046), um veneziano que tornou-se Bispo de Czanad na Hungria. Gerard enfatizava a superioridade da razão dos Apóstolos sobre as de Aristóteles e Platão, e declarava que a dialética deveria ser ancilla theologiae. É de fato frequentemente suposto que esta seja a visão tomista da esfera da filosofia, mas, dada a delineação de S. Tomás de esferas separadas de teologia e filosofia, a ideia de criada não se encaixa à sua professada doutrina sobre a natureza da filosofia: era mais (como M. De Wulf observa) a ideia de um “grupo restrito de teólogos”, homens que não tinham uso para a ciência moderna. Entretanto, eles mesmos não poderiam deixar de usar a dialética, e o Arcebispo Lanfranc (nascido mais ou menos no ano 1010 e morto como Arcebispo de Canterbury em 1089) só usou do bom senso quando observou que não é a dialética em si, mas o seu abuso, que deveria ser condenado.

A oposição de um santo e um teólogo rigoroso à dialética também é um dos temas da vida de Abelardo, cuja controvérsia com Guilherme de Champeaux forma o próximo estágio da discussão dos universais, embora ela tenha afetado apenas a vida de Abelardo, não o último triunfo da sua luta contra o ultrarrealismo.

Guilherme de Champeaux (1070-1120), depois de estudar em Paris e Laon, tomou aulas de Roscelino em Compiègne. Ele adotou, no entanto, a teoria diametralmente oposta à do mestre, e a doutrina que ele ensinou na Escola Catedrática de Paris foi a do ultrarrealismo. Segundo Abelardo, que frequentou as aulas de Guilherme em Paris, e de quem temos de retirar nosso conhecimento dos ensinamentos de Guilherme, este manteve a teoria de que a mesma natureza essencial está totalmente presente ao mesmo tempo em cada membro individual da espécie, com a inevitável consequência lógica de que os membros individuais de uma espécie diferem um do outro, não substancialmente, mas apenas acidentalmente [9]. Se é assim, diz Abelardo [10], há a mesma substância de Platão num lugar e em Sócrates noutro, feita Platão por um conjunto de acidentes e Sócrates por outro conjunto de acidentes. Tal doutrina é, obviamente, a forma do ultrarrealismo corrente na Idade Média Arcaica, e Abelardo não teve dificuldades em demonstrar as dificuldades absurdas que ela envolvia. Por exemplo, se a espécie humana é substancialmente, e portanto completamente, presente tanto em Sócrates quanto em Platão ao mesmo tempo, então Sócrates deve ser Platão e ele deve estar presente em dois lugares ao mesmo tempo [11]. Além disso, semelhante doutrina leva, em última instância, ao panteísmo, já que Deus é substância e todas as substâncias serão idênticas à substância divina.

Sob a pressão de críticas desta espécie, Guilherme de Champeaux mudou sua teoria, abandonando a teoria-da-identidade para a teoria-da-indiferença, dizendo que dois membros da mesma espécie são a mesma coisa, não essencialmente (essencialiter), mas indiferentemente (indifferenter). Temos esta informação por conta de Abelardo [12], que evidentemente tratou a nova teoria como um mero subterfúgio, como se Guilherme agora dissesse que Sócrates e Platão não são os mesmos, mas também não são diferentes. No entanto, fragmentos das Sententiae [13] de Guilherme aclaram sua posição. Ele diz que as palavras “Um” e “mesmo” podem ser entendidas de dois modos, secundum indifferentiam et secundum identitatem eiusdem prorsus essentiae, e explica que Pedro e Paulo são “indiferentemente” homens ou possuem humanidade secundum indifferentiam: assim como Pedro é racional, também o é Paulo, e assim como Pedro e mortal, também o é Paulo etc., de modo que sua humanidade não é a mesma (ele quer dizer que suas essências ou naturezas não são numericamente as mesmas), mas semelhante (similis), pois trata-se de dois homens. Ele complementa que esse modo de unidade não se aplica à Natureza divina, referindo-se, é claro, ao fato de que a Natureza divina é idêntica a cada uma das três Pessoas divinas. Este fragmento, portanto, apesar de uma linguagem mais ou menos obscura, opõe-se claramente ao ultrarrealismo. Quando Guilherme diz que Pedro e Paulo são um e o mesmo em humanidade secundum indifferentiam, quer dizer que suas essências são semelhantes e que esta semelhança é o fundamento do conceito universal de homem, que se aplica “indiferentemente” a Pedro ou Paulo ou a qualquer outro homem. Independentemente do que Abelardo possa ter pensado sobre a modificação da teoria, seja qual for a interpretação pela qual ele a atacou, ela, na verdade, parece-se com uma negação do ultrarrealismo, e não muito diferente da própria visão de Abelardo.

Deveria ser mencionado que o conteúdo acima é, de certo modo, uma simplificação, pois o exato rumo dos acontecimentos na disputa entre Abelardo e Guilherme não é claro. Por exemplo, embora seja certo que Guilherme, depois de ter sido derrotado por Abelardo, recolheu-se na Abadia de São Vitor e lá passou a ensinar, tornando-se subsequentemente Bispo de Châlons-sur-Marne, não é certo em que ponto da controvérsia isto ocorreu. Parece provável que ele mudou sua teoria enquanto ensinava em Paris, e então, sob as novas críticas de Abelardo, com ou sem justificativa, afastou-se da contenda indo para São Vitor, onde continuou ensinando e onde possivelmente construiu os fundamentos da tradição mística da abadia; mas, de acordo com M. De Wulf, ele recolheu-se na abadia e lá ensinou a nova forma da sua teoria, a teoria-da-indiferença. Também se tem afirmado que Guilherme sustentava três teorias: (i) a teoria-da-identidade do ultrarrealismo; (ii) a teoria-da-indiferença, atacada por Abelardo como indistinguível da primeira teoria; e (iii) uma teoria antirrealista, caso em que se presume que ele teria se recolhido em São Vitor depois de ensinar a primeira e a segunda teoria. Isto pode estar correto, e é possivelmente sustentado pela interpretação e crítica de Abelardo à teoria-da-indiferença; mas é questionável se a interpretação de Abelardo foi qualquer coisa além de polêmica, e estou inclinado a concordar com De Wulf em que a teoria-da-indiferença envolveu uma negação da teoria-da-identidade, isto é, que não se tratava de um mero subterfúgio verbal. De qualquer modo, a questão não tem tanta importância, já que todos concordam que Guilherme de Champeaux eventualmente abandonou o ultrarrealismo com o qual começou.

O homem que derrotou Guilherme de Champeaux em debate, Abelardo (1079-1142), nasceu em Le Pallet, Palet ou Palais, próximo a Nantes, derivando daí seu nome de Peripateticus Palatinus, e estudou dialética através de Roscelino e Guilherme, depois de que abriu sua própria escola, primeiro em Melun, então em Corbeil e subsequentemente em Paris, onde conduziu a disputa com seu primeiro mestre. Depois ele voltou sua atenção à teologia, foi aluno de Anselmo de Laon e começou a ensinar teologia em Paris, no ano de 1113. Como resultado do episódio com Héloise, Abelardo teve de se retirar para a abadia de Saint-Denis. Em 1121, seu livro De Unitate et Trinitate divina foi condenado em Soissons, e ele então fundou a escola de Le Paraclet, perto de Nogent-sur-Seine, apenas para abandoná-la em 1125 com o intuito de tornar-se Abade de São Gildas na Bretanha, embora ele tenha deixado o monastério em 1129. De 1136 a 1149 ele ensinou em Santa Geneviève em Paris, onde teve João de Salisbury por pupilo. Entretanto, São Bernardo o acusou de heresia, pelo que foi condenado no Concílio de Sens em 1141. Seu apelo ao Papa Inocêncio II o levou à condenação e a uma injunção contra o ato de ensinar, fazendo-o recolher-se em Cluny, onde permaneceu até sua morte.

Abelardo foi, claramente, um homem de implacável disposição combativa contra seus adversários: ele ridicularizou seus mestres em filosofia e teologia, Guilherme de Champeaux e Anselmo de Laon. Ele também foi, ainda que de certo modo sentimental, egoísta e difícil de se lidar: é significativo que ele tenha deixado tanto a abadia de Saint-Denis quanto a de São Gildas porque lhe era impossível viver em paz com outros monges. Ele foi, entretanto, um homem de grande habilidade, um dialético excepcional, muito superior, neste aspecto, a Guilherme de Champeaux; ele não era um medíocre a ser ignorado, e sabemos que seu brilhantismo e destreza dialética, como, sem dúvidas, seus ataques a outros professores, ganharam-lhe grandes audiências. Suas incursões em teologia, entretanto, especialmente no caso de um homem brilhante com grande reputação, fizeram-lhe parecer um pensador perigoso aos olhos daqueles que tinham pouca simpatia natural por perspicácia intelectual e dialética, e Abelardo foi perseguido pela hostilidade incessante de São Bernardo em particular, que parece ter visto o filósofo como um agente de Satanás; ele certamente fez tudo o que pôde para assegurar a condenação de Abelardo. Entre outras imputações, ele acusou Abelardo de sustentar uma doutrina herética sobre a Santíssima Trindade, uma acusação cuja veracidade Abelardo firmemente negou. É provável que o filósofo não fosse racionalista no senso usual, no que diz respeito às suas intenções (ele não quis negar a revelação ou explicar o mistério); mas, ao mesmo tempo, em sua aplicação da dialética à teologia, ele parece ter ofendido a teologia ortodoxa, mesmo sem querer. Por outro lado, foi a própria aplicação da dialética à teologia o que tornou o progresso teológico possível e facilitou a sistematização escolástica da teologia no século XIII.

Abelardo não teve dificuldade, como vimos, em mostrar os absurdos aos quais o ultrarrealismo de Guilherme de Champeaux logicamente levam; mas era sua responsabilidade produzir uma teoria mais satisfatória. Aceitando a definição aristotélica de universal como dada por Boécio (quod in pluribus natum est praedicari, singulare vero quod non), ele constatou que não se predica uma coisa, mas um nome, donde se conclui que “resta atribuir universalidade desta sorte apenas às palavras” [14]. Isto soa como a visão puramente nominalista tradicionalmente atribuída a Roscelino (de quem Abelardo foi aluno), mas o fato de que ele se dispôs a falar de palavras universais e particulares mostra que não podemos imediatamente concluir que Abelardo negou qualquer realidade correspondente a palavras universais, já que ele certamente não negou que há uma realidade correspondente a palavras particulares, a realidade neste caso sendo o indivíduo. Ademais, Abelardo (na Logica nostrorum petitioni sociorum) distinguiu vox e sermo para dizer não que Universale est vox, mas que Universale est sermo. Por que ele os distinguiu? Porque vox significa a palavra como uma entidade física (flatus vocis), uma coisa, e nenhuma coisa pode ser predicada de outra, enquanto sermo significa a palavra segundo sua relação com o conteúdo lógico e é isto o que é predicado.

O que é então o conteúdo lógico, o que é o intellectus universalis, ou ideia universal, expressado pelo nomen universale? Por ideias universais a mente “concebe uma imagem comum e confusa de muitas coisas.... Quando ouço homem uma certa figura surge na minha mente, tão relacionada ao homem individual que é comum a todos e própria de nenhum”. Esta linguagem sugere que, de acordo com Abelardo, não existem de fato conceitos universais, mas apenas imagens confusas, genéricas ou específicas de acordo com o grau de confusão e indistinguibilidade; mas ele prossegue dizendo que conceitos universais são formados por abstração, e que através destes conceitos nós concebemos o que está no objeto, embora não o concebamos como está no objeto. “Quando vejo este homem apenas pela natureza de substância ou corpo, e não também como animal ou homem ou gramático, obviamente não entendo nada além do que está nessa natureza, mas não apreendo tudo o que ela tem”. Ele então explica que, por ideia de homem “confusa”, quis dizer que por meio da abstração a natureza é libertada, por assim dizer, de toda individualidade, e é considerada de modo a não preservar nenhuma relação especial com qualquer indivíduo particular, mas pode ser predicada de todos os homens individuais. In fine, aquilo que é concebido em ideias específicas e genéricas está nas coisas (a ideia não é vazia de referência objetiva), mas não está nelas, isto é, em coisas individuais, como é concebida. O ultrarrealismo, em outras palavras, é falso; mas isto não significa que universais sejam construções puramente subjetivas, muito menos que são meras palavras. Quando Abelardo diz que o universal é um nomen ou sermo, quer dizer que a unidade lógica do conceito universal refere-se apenas ao predicado, que é um nomen e não uma res ou coisa individual. Se queremos, como João de Salisbury, chamar Abelardo de “nominalista”, devemos reconhecer ao mesmo tempo que seu “nominalismo” é simplesmente uma negação do ultrarrealismo e uma asserção da distinção entre as ordens lógica e real, sem envolver qualquer negação do fundamento objetivo de conceitos universais. A doutrina abelardiana é um esboço, apesar de certa linguagem ambígua, da teoria desenvolvida do “realismo moderado”.

Em suas Theologia Christiana e Theologia, Abelardo segue Santo Agostinho, Macrobius e Prisciano ao posicionar na mente de Deus formae exemplares, ou ideias divinas, genéricas e específicas, que são idênticas ao próprio Deus, e ele elogia Platão neste ponto, entendendo, em um sentido neo-platônico, que ele colocou as Ideias na mente divina, quam Graeci Noyn appellant.

O tratamento de Abelardo ao problema dos universais foi realmente decisivo, no sentido de que desferiu um golpe mortal no ultrarrealismo por mostrar é possível negar esta doutrina sem, ao mesmo tempo, estar obrigado a negar toda a objetividade dos gêneros e espécies, e, embora a Escola de Chartres no século XII (ao contrário da Escola de São Vítor) inclinasse para o ultrarrealismo, duas das mais notáveis figuras ligadas a Chartres, Gilberto de la Porrée e João de Salisbury, romperam com a antiga tradição.

(i) Gilberto de la Porrée, ou Gilbertus Porretanus nasceu em Poitiers em 1076, tornou-se pupilo de Bernardo de Chartres e passou ele mesmo a ensinar em Chartres por mais de doze anos. Mais tarde ele ensinou em Paris, embora tenha se tornado Bispo de Poitiers em 1142. Ele morreu em 1154.

Sobre cada homem possuir sua própria humanidade ou natureza humana, Gilberto de la Porrée era firme [15]; mas ele tinha uma visão peculiar sobre a constituição interna do indivíduo. No indivíduo devemos distinguir a essência individualizada, ou substância, na qual os acidentes da coisa inerem, e a formae substantiales, ou formae nativae [16]. Estas formas nativas são comuns no sentido de que são semelhantes em objetos da mesma espécie ou gênero, seja qual for o caso, e elas possuem seus exemplares em Deus. Quando a mente contempla a forma nativa nas coisas, ela pode abstraí-las da matéria em que estão incorporadas ou concretizadas e considerá-las apenas na abstração: está-se, assim, atingindo o gênero ou espécie, que são subsistentiae, mas não objetos substancialmente existentes [17]. Por exemplo, o gênero é simplesmente a coleção (collectio) de substantiae obtidas por comparação de coisas que, não obstante difiram em espécie, são semelhantes [18]. Ele quer dizer que a ideia de espécie é obtida quando comparamos as determinações essenciais similares, ou formas de objetos individuais similares, e os reunimos em uma única ideia, enquanto a ideia de gênero é obtida quando comparamos objetos que diferem especificamente, mas que ainda possuem certas determinações essenciais ou formas em comum, como o cavalo e o cachorro, que compartilham a animalidade. A forma, como João de Salisbury observa a propósito da doutrina de Gilberto [19], é sensível nos objetos sensíveis, mas é concebida pela mente separada dos sentidos, isto é, imaterialmente, enquanto o individual é ainda comum ou semelhante em todos os membros de uma espécie ou gênero.

Suas doutrinas de abstração e comparação deixam claro que Gilberto foi um realista moderado e não um ultrarrealista, mas sua curiosa ideia de distinção entre essência individual ou substância e essência comum (“comum” significando semelhante em uma pluralidade de indivíduos) o carregou de dificuldades quando ele as aplicou à doutrina da Santíssima Trindade e distinguiu como coisas diferentes Deus e Divinitas, Pater e Paternitas, assim como ele distinguiria Sócrates de humanidade, isto é, da humanidade de Sócrates. Ele foi acusado de obstruir a unidade de Deus e ensinar heresia, São Bernardo tendo sido um de seus acusadores. Condenado no Concílio de Rheims em 1148, ele se retratou das proposições ofensoras.

(ii) João de Salisbury (c. 1115-80) foi a Paris em 1136 e lá assistiu às aulas de, entre outros, Abelardo, Gilberto de la Porrée, Adão Parvipontatus (Smallbridhe) e Robeto Pulleyn. Tournou-se secretário do Bispado de Canterbury, primeiro do Arcebispo Teobaldo e então de São Tomás Becket, sendo subsequentemente nomeado Bispo de Chartres em 1176.

Ao discutir o problema dos universais, diz João, o mundo envelheceu: mais tempo foi tomado nesta busca do que foi requerido dos Césares para conquistar e governar o mundo [20]. Mas qualquer um que procure por gêneros e espécies fora das coisas dos sentidos está gastando seu tempo [21]: o ultrarrealismo é falso e contradiz os ensinamentos de Aristóteles [22], por quem João tinha uma predileção em assuntos dialéticos, observando, a propósito dos Tópicos, que possui mais uso do que quase todos os livros de dialética que os modernos estão acostumados a expor nas escolas [23]. Gêneros e espécies não são coisas, mas formas de coisas que a mente, comparando a semelhança das coisas, abstrai e unifica em conceitos universais [24]. Conceito universais, ou gêneros e espécies abstratamente consideradas, são construções mentais (figurata rationis), já que elas não existem como universais na realidade extramental; mas a construção em questão é fruto de uma comparação de coisas e abstração de coisas, de forma que os conceitos universais não são vazios de fundamento e referência objetiva [25].

Já foi mencionado que a Escola de São Vitor inclinava para o realismo moderado. Assim, Hugo de São Vitor (1096-1141) adotou mais ou menos a posição de Abelardo e manteve uma doutrina clara da abstração, que ele aplicou à matemática e à física. É competência da matemática estudar os actus confusos inconfuse [26], abstraindo, no sentido de estudar em isolamento, a linha ou a superfície plana, por exemplo, embora nem linhas nem superfícies existam separados dos corpos. Em física, também, o físico considera em abstração as propriedades dos quatro elementos, embora na realidade concreta eles sejam encontrados apenas em combinações variáveis. De forma similar, o dialético considera a forma das coisas em isolamento ou abstração, em um conceito unificado, ainda que na realidade as formas das coisas sensíveis não existam nem isoladas da matéria nem como universais.

Os fundamentos da doutrina tomista do realismo moderado foram, portanto, construídos antes do décimo terceiro século, e de fato poderíamos dizer que foi Abelardo quem realmente matou o ultrarrealismo. Quando São Tomás declara que universais não são coisas subsistentes, mas existem apenas em coisas singulares [27], ele está repetindo o que Abelardo e João de Salisbury disseram antes dele. Humanidade, por exemplo, natureza humana, possui existência apenas neste ou naquele homem, e a universalidade que se liga à humanidade no conceito é um resultado da abstração, e é num sentido uma contribuição subjetiva [28]. Mas isto não implica a falsidade do conceito universal. Se abstraíssemos a forma específica de uma coisa e ao mesmo tempo pensássemos que ela realmente existe em um estado de abstração, nossa ideia seria de fato falsa, já que um juízo falso sobre a coisa em si mesma estaria envolvido; mas, embora no conceito universal a mente conceba alguma coisa de maneira diversa do seu modo de existência concreta, nosso juízo sobre a cosia em si não é errôneo; simplesmente a forma, que existe na coisa em um estado individualizado, é abstraída, ou seja, é feita objeto da atenção exclusiva da mente por uma atividade imaterial. O fundamento objetivo do conceito universal específico é, logo, a essência objetiva e individual da coisa, e esta essência é pela atividade da mente libertada de fatores individualizantes — ou seja, segundo São Tomás, matéria — e considerada em abstração. Por exemplo, a mente abstrai do homem individual a essência de humanidade que é semelhante, mas não numericamente a mesma entre os membros da espécie humana, enquanto o fundamento do conceito universal genérico é uma determinação essencial que diversas espécies possuem em comum, assim como as espécie de homem, cavalo, cão etc. possuem “animalidade” em comum.

Deste modo São Tomás negou ambas as formas de ultrarrealismo, a de Platão e a dos medievais arcaicos; mas não mais que Abelardo ele desejava rejeitar a totalidade do platonismo, ou, em outras palavras, o platonismo como foi desenvolvido por Santo Agostinho. As ideias, ideias exemplares, existem na mente divina, embora não sejam ontologicamente distintas de Deus nem sejam realmente uma pluralidade. Até onde vai esta verdade, a teoria platônica é justificada [29]. São Tomás então admite (i) o universale ante rem, insistindo que não se trata de uma subsistência, tanto separada das coisas (Platão) como nas coisas (medievais arcaicos ultrarrealistas), pois considera-se que Deus percebe Sua Essência como imitável ad extra em um certo tipo de criatura; (ii) o universale in re, que é a essência individual concreta, semelhante nos membros das espécies; e (iii) o universale post rem, que é o conceito universal abstrato [30]. Desnecessário dizer, o termo universale in re, usado no Comentário às Sentenças, deve ser interpretado à luz da doutrina geral de São Tomás, isto é, como o fundamento do conceito universal, o fundamento sendo a essência concreta ou quidditas rei [31].

Na Baixa Idade média, o problema dos universais foi renovado, e uma solução diferente foi dada por Guilherme de Ockham e seus seguidores; mas o princípio segundo o qual somente indivíduos existem como coisas subsistentes veio para ficar: a nova corrente do século XIV não se aproximou do realismo, mas se afastou dele. A história deste movimento analisarei no próximo volume [32].

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Frederick Copleston, S. J

foi um padre jesuíta, filósofo e historiador da filosofia, famoso por sua influente obra História da Filosofia.


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