A Quádrupla Raiz

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Traduzido por Vitor Matias
07 de junho de 2022

Por F.C. White

Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio de Razão Suficiente foi escrito em 1813 como dissertação acadêmica quando Schopenhauer tinha apenas vinte e seis anos. Ele a apresentou na Universidade de Jena para sua graduação como Doutor em Filosofia, e após isso, publicou-a como livro no mesmo ano. Quase que imediatamente após, pôs-se a escrever o que viria a ser sua obra capital, O Mundo como Vontade e como Representação, encerrando a empreitada em 1818. Muitos anos depois, revisou e complementou profundamente sua Quádrupla Raiz, no que viria a ser sua segunda edição em 1847.[1]

No prefácio da segunda edição, Schopenhauer refere-se à Quádrupla Raiz como um ‘tratado de filosofia elementar’, e guardadas as devidas proporções, é exatamente isso. Consequentemente, pode ser proficuamente lido, especialmente na primeira edição, como um cauteloso tratado da natureza e estrutura do mundo da ciência, do senso comum, e da explicação dos princípios do conhecimento que governam o mundo em razão de necessidade. Mas Schopenhauer também diz no prefácio da segunda edição que a Quádrupla Raiz se tornou o fundamento de todo o seu sistema, e desde o começo foi feito com essa intenção. Na primeira edição de O Mundo como Vontade e como Representação, ele afirma peremptoriamente que sem a leitura da Quádrupla Raiz, é impossível que se entenda corretamente o presente trabalho, e que seu ensaio é sempre pressuposto como devidamente lido. Novamente, o primeiro livro de O Mundo como Vontade e como Representação carrega o subtítulo de A Representação Submetida ao Princípio de Razão Suficiente: o Objeto da Experiência e da Ciência, e os leitores logo descobrem a impossibilidade do correto entendimento do livro sem que se conheça o dito princípio de razão suficiente exposto na Quádrupla Raiz; Schopenhauer se referirá a seu livro repetidamente.

Dados estes fatos, e o interesse em Schopenhauer como um filósofo articulador e sistemático, o presente artigo irá tratar da Quádrupla Raiz primariamente como pedra angular de seu sistema.

O que se segue são as doutrinas imediatamente derivadas de seu sistema: o mundo do dia-a-dia, do senso comum e da ciência em geral, não existe independentemente, mas apenas na consciência que o experimenta; isto é, existe apenas como representação [2]; contudo, existe algo mais que apenas representação [3], e está é a coisa em si, conhecida como Vontade. Representações constituem o outro lado da realidade, e a coisa em si, o interior do real; não há caminho inferencial de um para outro. O conhecimento da coisa em si deve ser unicamente direto.

Dado este sumário seletivo, é possível dizer onde e de que forma a Quádrupla Raiz se encaixa no sistema schopenhauriano. Ela serve como tentativa de se estabelecer o mundo como representacional, estabelecer que os princípios de racionalização e governança do mundo não nos autorizam a fazer inferência alguma para algo que esteja além dele mesmo, e para refutar qualquer um que defenda o contrário.

1.O Esboço da Quádrupla Raiz

A asserção básica da Quádrupla raiz é que o mundo do cotidiano é constituído de objetos inclusos em quatro classes, todas elas representacionais. A primeira classe consiste em ‘objetos reais’ [4], como mesas e cadeiras; a segunda é constituída de conceitos e suas combinações em juízos verdadeiros; a terceira, do tempo e do espaço; a quarta, das vontades humanas particulares.

Os objetos são uniformemente conectados de várias formas, de modo que muitas perguntas podem ser feitas acerca de cada uma delas e devidamente respondidas. Por exemplo, em primeiro lugar, objetos reais estão sujeitos à mutação, e qualquer dessas mutações levanta a questão ‘por que ocorre? ’, que pode ser a princípio, respondida segundo o suposto de que sempre há alguma razão para tal. Em segundo lugar, conceitos combinados apropriadamente constituem verdadeiramente juízos, e para cada um deles, a questão ‘por que isso é verdadeiro? ’ pode ser feita, e a princípio, respondida. Em terceiro, tempo e espaço são compostos de partes, e qualquer uma delas levanta a pergunta ‘porque isso possui prioridades e características matemáticas? ’ que pode ser feita e respondida, a princípio. Novamente, há sempre uma razão. Finalmente, agentes humanos realizam ações, e em qualquer uma dessas ações, podemos perguntar ‘porque foi feita? ’ e esta pode ser respondida a princípio. Novamente, é necessária uma razão.

A razão em questão é a razão suficiente, e desde que a separemos em quatro tipos, providenciando quatro perguntas a questões concernindo quatro classes de objetos, cada classe pode ser dita como regida por uma forma específica do princípio de razão suficiente, aquele que em sua forma mais geral afirma que nada corre sem razão ou explanação de ser ou por que não o é. [5] As quatro formas do princípio assim visto são assim ordenadas: toda mudança dada em um objeto real possui uma causa; a verdade de todos os juízos verdadeiros repousa sobre algo diferente de si; todas as propriedades matemáticas estão enraizadas e outras propriedades matemáticas; toda ação possui um motivo.

O esquematismo das coisas provém daí: o mundo cotidiano comporta objetos de quatro classes, onde na primeira classe comportamos as mutações, na segunda a verdade, na terceira as propriedades matemáticas e na quarta os motivos que influenciam ações. Mas esses objetos e suas propriedades não coexistem em meras justaposições; antes, são interconectados por fios de uma dupla necessidade no decorrer do sistema. Necessariamente, todas as mudanças, instancias de verdade, propriedades matemáticas, e ações, possuem uma razão, e essas razões são suficientes para suas consequências — isto é, em razão de necessitate. [6] Por exemplo, necessariamente, se uma mudança E ocorre, há uma razão para E, a saber, a causa C. Pari Passu, C é suficiente para E; assim, C necessitates E. [7]  Segue-se que em todo o mundo, há uma relação de dupla interdependência entre cada um dos quatro tipos — entre causas e efeitos, entre verdades e fundamentos, entre propriedades matemáticas e outras propriedades matemáticas, entre ações e motivos — em cada tipo reporta-se uma forma específica do princípio de razão suficiente. Ao mesmo tempo, cada um constitui a raiz do princípio de razão suficiente em sua forma geral. Mais brevemente, as quatro formas são necessariamente conectadas no cotidiano, formando a quádrupla raiz do princípio, e daí o nome da obra.[8]

Ao lado da asserção fundamental de que o mundo é constituído de representações, a Quádrupla Raiz contém a teoria materialista da mente, afirmando que a mente é idêntica ao cérebro. Como visto, a combinação de doutrinas dá origem ao problema da fundamentação do sistema schopenhauriano, que talvez seja insolúvel.

2.A Primeira Classe de Objetos e a Forma do Princípio de Razão Suficiente em Convergência.

Schopenhauer começa pela descrição dos objetos da primeira classe como representações completas, empíricas e intuitivas, e enquanto eles são simplesmente referidos como objetos reais, e sua descrição completa é uma declaração concisa do Schopenhauer Kantiano. Como dito anteriormente, ao chamar tais objetos de representações, ele quer dizer que, ao contrário da coisa em si, eles não existem independentemente. Ao chama-los intuitivos, ele quer dizer que, ao contrário dos conceitos, eles são sempre particulares. [9] Para ilustrá-lo, Bucephalus é uma representação intuitiva; mas o conceito de cavalo que aplicamos a ele não o é. Ao chamá-las de completas, ele quer dizer que as representações têm propriedades tanto formais como materiais, e a distinção é importante para que apontemos a razão subjacente de Schopenhauer concordar com Kant quando crê que os objetos reais são representações. As propriedades formais dos objetos reais são aquelas necessárias para que eles o sejam como tais; isto é, são necessárias para que os objetos reais sejam, e não que sejam apenas um tipo específico de objeto real. Todas as outras propriedades são materiais. Para ilustrar tal distinção, existir no tempo e no espaço são propriedades formais de objetos reais; ser vermelho ou redondo são propriedades materiais. Schopenhauer segue Kant ao explicar a necessidade das propriedades formais dos objetos reais ao considera-las como impostas pelo intelecto sobre os dados dos sentidos: sua faculdade do sentido interno impõe a forma do tempo, e a faculdade do sentido externo impõe a forma do espaço, enquanto sua faculdade do entendimento impõe a forma ou a categoria da causalidade. O resultado são os objetos reais, que, sendo dependentes do entendimento e suas propriedades formais, são representações. [10]

Schopenhauer argumenta detalhadamente ao defender que o espaço, o tempo, e a causalidade são conjunturas necessárias para a existência de objetos reais. Objetos reais, como pontuado, são coisas que perduram, e o perdurar demanda tanto o espaço quanto o tempo. É por isso que os objetos, ao perdurarem, retém sua identidade coexistentemente com as mudanças ao redor. Mas a ideia de uma coisa que retém sua identidade não é inteligível em termos apenas de tempo, desde que o tempo não engloba coexistência, mas apenas sucessão. Consequentemente, é adicionada outra dimensão, o espaço: assim, o tempo e o espaço, juntos, podem reter a identidade entre as mudanças. Por razões análogas, a ideia de uma coisa que retém sua identidade coexistente com o devir não é inteligível em termos apenas de espaço, uma vez que este engloba apenas perduração e não sucessão.

Por essas razões, tempo e espaço são necessários, mas não suficientes para a existência de objetos reais. Eles precisam ser unidos a um terceiro componente, e é a faculdade do entendimento que provê este elemento impondo sua única categoria própria. [11] Essa categoria, diz Schopenhauer, é a causalidade ou a matéria. Tempo e espaço não são suficientes para dar conta dos objetos reais, visto que é claro que não há objetos reais em um tempo e espaço vazios. Os dois, assim, devem ser ‘preenchidos’ pela matéria. E assim o é de fato, diz Schopenhauer, visto que a matéria é idêntica à causalidade, que por sua vez significa algo material, em contraste com a região [formalmente] vazia do tempo e do espaço, e apenas por isso possui poderes causais. Em suma, para que algo seja um objeto real, deve, por um lado, estar localizado no espaço e no tempo, e por outro, deve afetar e ser afetado por outros objetos. Essas propriedades específicas, como ser vermelho, redondo, ou duradouro, são instâncias específicas de seus poderes causais ou realizações específicas de sua localização no tempo e no espaço. [12] Em adição à descrição dos objetos reais como intuitivos e completos, Schopenhauer descreve-os como empíricos, e por esse termo significa duas coisas: primeiro, que a percepção de objetos reais é sempre sensível — isto é, objetos reais são apreendidos através dos sentidos; segundo, eles pertencem à ‘totalidade da experiência’, um todo interconectado a todos os objetos espaço-temporais, especialmente e causalmente inter-relacionados. Esse todo é o que se chama realidade empírica.

A interconexão causal dos objetos reais, provocada pela imposição da categoria de causalidade, origina a forma específica do princípio de razão suficiente denominada princípio de razão suficiente do devir. Esse princípio, idêntico à lei da causalidade, afirma duas coisas: primeiro, as mudanças ocorridas em objetos reais são necessariamente precedidas por outras; a primeira se chama causa, e a segunda, efeito; segundo, causas similares em espécie são seguidas de efeitos similares em espécie, e efeitos similares em espécie são precedidos por causas similares em espécie.

Schopenhauer afirma repetidamente que causas e efeitos são mudanças reais em objetos reais, e um modelo simplificado servirá para ilustrar o pensamento aqui exposto: suponhamos que eu martele minha unha em um pedaço de madeira; o movimento do martelo, como mudança relacional do estado do martelo, é a causa, e o movimento da unha como mudança relacional do estado da unha, é o efeito. Nesse exemplo simplificado, a causa e o efeito são mudanças em objetos reais e Schopenhauer sustenta aqui a realidade da causa e do efeito: todas e as mudanças são causas e efeitos, e consequentemente os objetos em si mesmos não o são. Seu raciocínio aqui é que os objetos reais são substâncias — isto é, são constituídos de matéria — e, pela matéria ser eterna e inalterável, ele acredita que as substâncias também não possuem início ou fim [temporal]. Segue-se que elas não são mutáveis, e logo não podem ser causas ou efeitos. Existe, no entanto, a tentação de pensar que os objetos reais são causas: é uma tentação pensar, digamos, que o martelo é a causa do movimento da unha através do impacto; mas isso se mostra falso após alguma reflexão. Se o martelo enquanto [qua] objeto fosse a causa do movimento da unha, não haveria explicação do movimento ocorrendo agora e não há alguns minutos atrás, pois o martelo é objeto tanto antes como agora. Portanto, fica patente que as mudanças no martelo que causam o movimento da unha — o martelo se move no ar e transfere energia cinética, e assim por diante.

Existe uma tentação correspondente de pensar que objetos reais são efeitos — que martelos são os efeitos de ferreiros, e assim por diante — mas claramente não são, visto que as substâncias, sendo eternas e inalteráveis, não são produzidas por algo ou alguém.

É precisamente por Schopenhauer acreditar que mudanças e apenas mudanças são causas e efeitos que ele se refere à lei da causalidade como o princípio da razão suficiente do devir. De acordo com este princípio, toda mudança de um estado E em um objeto real é um efeito, seguindo-se a ocorrência de uma mudança precedente que é uma razão suficiente para E e constitui sua causa. Essa causa é um estado complexo, compreendendo eventos necessários e sumamente comuns para E, e, sendo ela própria uma mudança, ela também tem uma causa, e essa causa tem uma causa, e assim ad infinitum.

A asserção de Schopenhauer, por um lado, de que a lei da causalidade concerne apenas a mudanças de estado em objetos reais e, por outro lado, de que toda mudança possui uma causa, é de importância capital para seu sistema. Pois, se for verdade, refuta todos os argumentos tradicionais da existência de Deus causa primeira incausada. Deus não pode ser uma causa, já que Deus não é uma mudança, e somente mudanças podem ser causas; nem podem as mudanças em Deus serem causas, já que não há mudanças em Deus. Além disso, o mundo dos objetos reais não pode ser um efeito de Deus como sua causa, pois os objetos reais são substâncias e, portanto, diferentemente dos efeitos, não têm um início. Em qualquer um dos casos, a própria noção de causa incausada é desprovida de sentido, uma vez que toda causa é certa mudança e, portanto, ela mesma requer uma causa. Incoerente também é a noção de Deus como causador de si mesmo ou causa sui; [13] tal noção é contraditória e de fato, pensa Schopenhauer, risível. [14]

Esses apontamentos acerca de argumentos sobre a existência de Deus como causa primeira aplicam-se da mesma forma aos argumentos que procuram alcançar o absoluto, Egos, ou o noumenon kantiano. Eles também se aplicam a argumentos que procuram alcançar objetos de sujeitos ou sujeitos de objetos, uma vez que o princípio da razão suficiente do devir refere-se apenas a mudanças em objetos e, portanto, não pode ser aplicado a relações entre objetos e sujeitos. Assim, inutilizam-se todos os argumentos deste tipo. Inferências baseadas no princípio da razão suficiente do devir são inaplicáveis para além da realidade empírica e não podem fazer mais do nos levar de uma mudança empírica para outra.

Este último ponto é aplicável de forma mais geral a todas as classes de representações. “O princípio da razão suficiente explica combinações e conexões entre fenômenos, e não os fenômenos em si” (W1 82 / H 2, 98).

3.A percepção para além do mundo

Até o momento, Schopenhauer propôs uma análise da causalidade e argumentou que o princípio da razão suficiente que governa os objetos reais não pode nos levar para além deles; também propôs uma análise dos próprios objetos reais, segundo os quais suas propriedades essenciais são temporalidade, espacialidade e causalidade. Mas essas análises e argumentos, ainda que persuasivos, não servem para mostrar que objetos reais são representações. O que é necessário é uma prova de que suas propriedades essenciais e, idealmente, suas propriedades não-essenciais também são dependentes em sua existência das mentes daqueles que as percebem.

É verdade que, ao tratar sobre o tempo, o espaço, e a causalidade como formas puras da intuição sensível e do entendimento, Schopenhauer assumiu que as propriedades essenciais dos objetos reais são infusas pela mente, e, consequentemente, dependem dela, e ele poderia até mesmo ter referido seus leitores, implicitamente e em termos gerais, aos argumentos da estética e da analítica transcendental de Kant. [15] É verdade, também, que ele assumiu que objetos reais são contingentes em virtude do fato de que, precisamente, objetos dependem de um sujeito.[16] Mas suposições e referências não são uma prova, e é uma prova que agora é necessária se Schopenhauer quiser convencer seus leitores de que objetos reais – coisas simples como mesas e cadeiras – têm um status ontológico tão dependente quanto o das ilusões e sonhos.

A prova é de fato levada a cabo detalhadamente, mas quase por acidente. O que ocorre é que, tendo completado sua análise dos objetos reais em termos de tempo, espaço e causalidade, e da própria causalidade em termos de condições necessárias e suficientes, Schopenhauer apresenta um argumento para mostrar que o princípio da causalidade é conhecido por nós a priori,[17] e é o cerne desse argumento que constitui sua ‘prova’ da natureza representacional dos objetos reais. É uma prova de que o mundo dos objetos perceptíveis enquanto tais é uma criação in toto das mentes de seus observadores, uma criação que é impossível sem o princípio de causalidade.

Para usarmos a mesma expressão de Schopenhauer, o objetivo dessa prova é mostrar que ‘a percepção é intelectual’, i.e, mostrar que o mundo dos objetos reais e perceptíveis é criado pelo entendimento. Mas é notório que a palavra entendimento neste contexto tem um alcance restrito de aplicação. Em outros lugares, é sinônimo de mente e, portanto, abrange todas as faculdades mentais: sentido interno, sentido externo, entendimento e razão. Aqui, no entanto, exclui a faculdade da razão, que para nós pode parecer constituir a própria essência do entendimento, e a prova de Schopenhauer, portanto, é que o mundo dos objetos reais e perceptíveis é criação das faculdades de sensibilidade e do entendimento apenas. A importância disso logo ficará clara.

A prova mesma pode agora ser resumida da seguinte forma: tudo o que compõe a percepção é subjetivo; consequentemente, quando percebemos, não apreendemos objetos existentes independentemente de nós, ou, contrariamente, o que apreendemos é construído por nosso próprio intelecto.

Nossos intelectos subsumem conjuntos de sensações ou dados sensíveis[18] e, ao impor as formas do tempo, do espaço e da causalidade, criam os objetos reais. Os dados da percepção, são, portanto, subjetivos; as formas impostas a eles são subjetivas e, consequentemente, os objetos formados a partir deles também são subjetivos. Os dados são subjetivos porque eles não são nada além de sensações que ocorrem dentro de corpos particulares, e as formas são subjetivas porque elas não são nada além de estruturas de entendimentos particulares. Dado isto, a percepção é intelectual no sentido de que é a criação de objetos pelo entendimento; não é uma questão de ter sensações nuas. Como Schopenhauer enfaticamente observa, não há possibilidade de o mundo encontrar seu caminho em nossas cabeças através de sensações nuas; estes são muito escassos em conteúdo para algo do tipo.

A sensibilidade desempenha um papel importante na criação de objetos reais, impondo as formas do tempo e do espaço aos dados concedidos ao intelecto, mas é a faculdade do entendimento que desempenha o papel principal, tanto ‘invocando o espaço’ em seu auxílio, como impondo sua própria forma, a causalidade, sobre os dados dos sentidos. O que ocorre é que os dados sensíveis são apresentados ao intelecto e ‘concebidos’ pelo entendimento como efeitos; ou, para colocar o ponto de outra maneira, o entendimento infere que os objetos causam os dados. Uma vez que o sentido interno impõe a forma do tempo aos dados, e uma vez que o sentido externo impõe a forma do espaço, o resultado é um objeto inferido, espaço-temporal, e causalmente ativo. [19] Para ilustrar o processo, é isso o que ocorre quando percebemos uma bola de bilhar vermelha. Recebemos um conjunto de dados sensíveis, ‘vermelho’, ‘brilhante’, ‘suave’, e assim por diante. Mas esses dados são sensações dentro de nós enquanto a bola de bilhar vermelha é percebida como fora de nós, no tempo e no espaço públicos. A explicação é que as faculdades dos sentidos interno e externo acrescentam o tempo e o espaço aos dados sensoriais, e como resultado, eles [os objetos] se apresentam como ‘existentes’ no tempo e no espaço públicos. Mas isso ainda não é suficiente, já que ao perceber a bola de bilhar vermelha nós não entendemos ‘vermelho’, ‘suave’ e ‘brilhante’ como puramente espaço-temporais. Nós os apreendemos como pertencentes conjuntamente a um objeto e em um objeto que apreendemos como existente independentemente de nossa percepção e como causadores de nossos estados de consciência. A explicação desta vez é que a faculdade de compreensão infere que os dados espaço-temporais presentes à nossa consciência são o efeito complexo de um objeto existente independente de nós, um objeto que perdura no tempo e localiza-se no espaço.

A faculdade do entendimento não emprega conceitos para levar a termo esse trabalho criativo, sendo conceitos o domínio exclusivo da faculdade da razão. Em outras palavras, o entendimento não apreende os dados sensíveis como efeitos seja conceitualmente, reflexivamente, discursivamente ou linguisticamente; ele os apreende intuitivamente. A fortiori, não passa por um processo de aprendizagem para apreender dados sensoriais como efeitos; ao compreendê-los, ele os inclui imediatamente sob a lei da causalidade conhecida a priori.

Isso completa o esboço da prova de Schopenhauer de que a percepção é intelectual. Sua importância não precisa ser enfatizada, pois, se bem-sucedida, mostra que mesmo os objetos mais intrincados do senso comum são representacionais, e o próprio Schopenhauer enfatiza a importância da prova dedicando mais de um quinto da segunda edição da Quádrupla Raiz a ela. A prova também é importante porque, pelo menos dentro do próprio esquema de Schopenhauer, a existência das outras classes de objetos é contingente a dos objetos reais, de modo que, se for bem-sucedida, a prova mostra que todos os quatro são representacionais. [20] Por estas razões, a prova merece mais atenção do que outros tópicos deste ensaio.

Contrastando com sua importância, a cogência da prova não é fácil de avaliar, em grande parte porque se emaranha, como se verá, em uma pilha de exemplos irrelevantes. A melhor maneira de começar a avaliar isso, então, é focar no ponto central que precisa estabelecer para ser bem-sucedida, ou seja, que o intelecto cria objetos reais a partir de dados sensoriais que são sem forma — isto é, dados que não são nem temporais, espaciais nem causalmente ativos. Este é o ponto principal que precisa ser estabelecido, porque todo o propósito da prova é mostrar que o tempo, o espaço e a causalidade não estão presentes desde o início, mas apenas "subsequentemente" impostos sobre os dados que faltam a eles.

No decorrer da implantação de sua prova, Schopenhauer cita muitos exemplos de dados trabalhados pelo entendimento, e alguns deles são exatamente o que ele exige — dados visuais sem forma, como cor, luz e sombra, e dados táteis sem forma, como sentimentos de resistência e pressão. Ao contrário do que às vezes se afirma, não há nada de incoerente em considerar dados desses tipos como algo sem sentido, e o próprio Kant na Crítica da Razão Pura sugere uma maneira pela qual eles podem ser inteligivelmente distintos das formas que os acompanham. Kant argumenta que se pensarmos em um corpo qualquer e então removermos uma a uma suas propriedades que nos são dadas via experiência — cor, dureza, suavidade, peso, impenetrabilidade —, descobriremos que, embora o corpo cesse de existir, o espaço permanece, e, mais importante ainda, que este não pode ser removido. Segue-se que o ocupar do espaço é uma propriedade necessária dos corpos e que o conceito de espaço é a priori (B4-6). Se invertermos o procedimento de Kant de pensarmos em um corpo e removermos uma a uma suas propriedades inerentes como tempo, espaço, e causalidade, chegaremos a aqueles que são materiais mas ‘sem forma’, como cor, luz, sombra, dureza, suavidade e assim por diante.

Assim, Schopenhauer poderia ter articulado sua prova coerentemente, argumentando que o intelecto subsume dados sem forma aos quais subsequentemente dá forma. Mas, quase no início, ele perde de vista o que procura, voltando-se para exemplos de atividade do intelecto sobre dados não tão amorfos. Ele aponta, por exemplo, acerca do entendimento, o ato de julgar duas moedas como uma, à lua como detentora de certo tamanho determinado, certas distâncias através da interpretação de certos ângulos visuais e óticos, à definição de imagens na retina, à interpretação do visto no plano vertical e horizontal, e assim por diante. Mas todos os exemplos são temporais, espaciais e causais: as moedas e a lua são objetos reais, enquanto ângulos visuais e as imagens da retina os pressupõem.

O que torna a prova de Schopenhauer ainda mais difícil de avaliar é que, no curso dela, ele promove uma teoria materialista da mente e da percepção que mina qualquer afirmação de que o intelecto seja apresentado a dados sensoriais amorfos. [21] Logo fica claro que até mesmo os mais básicos dos dados são materiais; até as sensações de luz, escuridão e resistência são materiais, sendo corporais e localizadas nas retinas, nas mãos, logo abaixo da pele, e assim por diante (FR 77 / H.1: 52). Ao mesmo tempo, o próprio intelecto é corpóreo, idêntico ao cérebro (FR 77 / H.1, 53), e o mundo dos objetos reais é um 'fenômeno cerebral' (FR 103 / H.1, 71). Mais especificamente, a faculdade do entendimento é o cérebro (FR 121 / H.1,84), e as três formas, tempo, espaço, e causalidade, estão ali localizadas (FR 77, 118 / H.1, 53, 82).

Duas consequências desastrosas derivam prima facie desse relato materialista do intelecto e da percepção: uma, já deixada clara, é que quando Schopenhauer afirma que todos os elementos da percepção são subjetivos, ele deve agora ser levado a dizer que, sendo corporais, estão localizados dentro do corpo do observador. Mas isso implica que todos os dados sensoriais apresentados ao entendimento são corporais e, portanto, não podem desempenhar o papel de dados sem forma exigidos deles. A outra e mais embaraçosa consequência à luz das restrições de Schopenhauer aos metafísicos tradicionais, é que o intelecto, por ser idêntico ao cérebro, é um objeto real. Segue-se disso que, como outros objetos reais, o intelecto é criado pelo intelecto. Isto é causa sui.

Normalmente conclui-se que a prova de Schopenhauer está arruinada desde o começo, e que nada sobra de seu sistema quanto aos fundamentos, restando apenas os argumentos kantianos em segundo plano. Mas tal conclusão é injustificada, pois o que ele diz sobre a fisiologia da percepção contém os germes de uma prova que não pode ser facilmente descartada.

A tese capital de Schopenhauer sobre a percepção é expressa em sua observação de que seria preciso perder a cabeça para imaginar que o mundo dos objetos reais poderia ser penetrado em nossas cabeças através da mera percepção e ter uma segunda existência como a que está fora dela (FR 76 / H. 1, 52). Este ponto, ainda que estranhamente expresso, é importante, como pode ser visto se o reformularmos e ampliarmos da seguinte maneira: quando uma pessoa, Mary, percebe visualmente uma bola de bilhar, a bola claramente não entra na cabeça de Mary como “entra” em sua mão quando ela a pega. O que acontece é que a luz é refletida na bola, produzindo imagens nas retinas de Mary e induzindo fileiras neuronais lá. Como resultado, juntamente com as atividades químicas próprias, os elétrons viajam ao longo das vias neurais de Mary, afetando o córtex visual e formando uma "representação" da bola de bilhar. Tudo isso nós sabemos. O que não sabemos é como, a partir desses acontecimentos, Mary chega a perceber a bola de bilhar vermelha, redonda e brilhante supostamente diante dela. [22]

Comumente afirma-se que Mary "percebe" a bola de bilhar; além disso, ela percebe isso diretamente, seus processos neuronais não são mais do que condições necessárias para isso. Mas isso é inútil. Para mencionar apenas um problema, [23] ele não dá conta da disparidade entre a bola de bilhar descrita por Mary com base em suas percepções e a mesma bola de bilhar descrita por físicos teóricos com base em suas hipóteses e observações. Se Mary percebesse a bola de bilhar diretamente, seria de esperar que ela a apreendesse como se existisse de forma independente.

De fato, o que mais poderíamos entender, nesse contexto, por “percebê-lo diretamente”? Mas, se o que os físicos dizem sobre a constituição de bolas de bilhar estiver correto, não é o que acontece. Mary não percebe a bola de bilhar como os físicos a descrevem, isto é, consistindo de léptons, quarks e campos de força, mas como um objeto vermelho, redondo, duro e brilhante dotado de superfície contínua.

A disparidade necessita explicação e, de muitos pontos de vista, a explicação mais simples é que a bola de bilhar, como Mary percebe, é uma construção de seu cérebro e, portanto, um “fenômeno cerebral”. E se isso for verdade, Schopenhauer está certo em sustentar que “a percepção é intelectual” e que nenhum objeto real ou perceptível existe independentemente do intelecto.

Não dispomos de espaço suficiente aqui para desenvolver essa interpretação da prova de Schopenhauer detalhadamente, mas pelo menos duas objeções a ela exigem menção: a primeira é que a prova construída até agora se mostra contraditória em si mesma, pressupondo que coisas como corpos com órgãos sensíveis e cérebros existem e concluindo que não.

Não é difícil atender a essa objeção. A conclusão de Schopenhauer não contradiz suas premissas, do mesmo modo como a conclusão dos físicos sobre a natureza da realidade física contradiz a deles. Os físicos começam considerando chapas fotográficas, câmaras de nuvens, contadores Geiger, e assim por diante, e concluem que o que realmente existe é um mundo de partículas fundamentais sem posição e momento determinados. Em outras palavras, a reflexão e o argumento levam-nos a concluir que os objetos reais não são como parecem, mas são em grande medida representacionais. O mesmo acontece com Schopenhauer. A reflexão e o argumento levam-no a concluir que os objetos reais não são como parecem, mas são representacionais in toto. [24]

A segunda objeção, já anunciada, é essa: os objetos reais, segundo Schopenhauer, são criados pelo intelecto. Mas desde que, dada a tese do materialismo, o intelecto é em si um objeto real, segue-se que o intelecto cria a si mesmo. É a causa sui.

Essa objeção pode ser atendida da seguinte maneira: é verdade que a tese do materialismo de Schopenhauer implica que o intelecto cria a si mesmo, mas isso é apenas uma descrição das aparências, não de como o mundo é em si mesmo; o mundo como ele é em si não contém intelectos que criam a si mesmos. Portanto, é infundado acusar Schopenhauer de afirmar que o intelecto causa a si mesmo, consequentemente sua doutrina não se assemelha à doutrina do metafísica que procura dar esse status a Deus. O próprio Schopenhauer afirma implicitamente esse ponto apontando que a doutrina do materialismo é absurda se tomada como relativa ao que existe de fato. É absurdo, diz ele, porque deixa o assunto fora de consideração (W2 13 / H. 3, 15; ver FR 52 / H.1,33); ele “considera a matéria e, com ela, o tempo e o espaço, como existindo de maneira absoluta, e transmite a relação com o sujeito no qual tudo isso existe”.

Isso é absurdo para Schopenhauer, que diz que quando tentamos pensar o materialismo até suas últimas consequências, como a de que o conhecimento é um mero modo da matéria desconsiderando o sujeito, somos tomados por ‘um repentino ataque de riso como o dos olimpianos’ (W1 27 / H.2). 32).

Os materialistas sem dúvida retrucarão que não deixam o assunto de lado, afirmando que, ao conhecer a si mesmo, o cérebro é ao mesmo tempo sujeito e objeto. Mas não está claro que essa identidade de sujeito e objeto seja possível, mesmo que a rejeição de Schopenhauer seja insatisfatória. [25]

Para concluir o que se diz sobre a percepção, quaisquer que sejam os méritos de sua prova, fica claro que Schopenhauer pensa nos objetos reais como sendo puras criações do intelecto e, portanto, não como fornecendo conhecimento da realidade em si mesma. Para citar em suas próprias palavras, 'nós encontramos dentro de nós todos os elementos da percepção intuitiva empírica e nada neles aponta de maneira confiável para algo absolutamente diferente de nós, para uma coisa em si' (FR 118 / H.1, 82). É igualmente claro que, ao dizer isso, Schopenhauer não se identifica como idealista subjetivo, sustentando que as representações compõem a apenas uma soma da realidade. De fato, apenas algumas frases depois ele deixa claro que não; “No meu trabalho principal”, diz ele, “mostrei que não podemos alcançar a coisa em si — isto é, o que quer que exista independentemente de nossas representações — seguindo o caminho das representações. Para alcançá-las, precisamos seguir um caminho bem diferente, um que passa pelo interior das coisas e nos deixa entrar na cidadela como que por traição” (FR 119-20 / H. 1, 83). Em suma, Schopenhauer afirma que há uma coisa em si e que o nosso conhecimento dela é toto coelo, diferente do nosso conhecimento do mundo cotidiano. Ele até afirma, desconcertantemente à luz da tese principal da Quádrupla Raiz, que o mundo das representações tem "uma explicação metafísica” (eine metaphysische erklärung), diferente em gênero daquela fornecida pelo princípio da razão suficiente e transcendendo aparências. [26] A tarefa da metafísica, como afirma mais tarde, “é a correta explicação da experiência como um todo” (W2 181 / H. 3, 201).

4.A Primeira Classe de Objetos e a Forma do Princípio de Razão Suficiente que a rege

Os objetos que compõe a segunda classe de representações são os conceitos, que ao contrário dos objetos reais como imagens e palavras que são sempre concretos, estes são sempre abstratos (FR 145, 152 / H. 1, 97, 102); são gerais, contendo inúmeros ​​detalhes sob seu escopo (FR 147 / H.1, 98-9). [27]

Embora normalmente Schopenhauer fale como se os conceitos fossem universais reais, existindo além do tempo e do espaço (FR 152 / H.1, 102; cf. W2 66 / H.3, 70), sua visão fundamental é de que eles são totalmente dependentes do mundo [NOTA] e parcialmente constitutivos dele. Eles são abstraídos dos detalhes perceptíveis (FR 146 / H.1, 98), [28] e a faculdade da razão que os abstrai é o cérebro ou uma função do cérebro, [29] sendo eles próprios estão alojados no cérebro (FR 146 / H. 1, 98). São, portanto, tanto uma parte do mundo cotidiano quanto dos objetos perceptíveis, aos quais, de fato, devem sua origem e existência.

Conceitos são representações e não coisas em si, sendo criados pela faculdade da razão e existindo apenas dentro do intelecto. Além disso, como os objetos de que são abstraídos são também representações, os conceitos são “representações de representações”, duplamente fenomênicos.

Os conceitos e a faculdade da razão são importantes porque nos permitem realizar juízos, planejar o futuro, construir teorias científicas, agir propositadamente e cooperar com os outros. Mas eles não fornecem conhecimento algum da realidade; “tudo o que é material em nosso conhecimento — isto é, tudo o que não possa ser reduzido à forma subjetiva — vem de fora e, portanto, da percepção objetiva do mundo corpóreo, uma percepção que tem sua origem na sensação” (FR 170-1 / H.1, 115). Todo conhecimento direto da realidade — isto é, todo “conhecimento primário” (FR 113 / H.1,88) – é alcançado somente pelo entendimento (FR 104 / H.1, 72); toda compreensão de conexões causais e todas as grandes descobertas são a província do entendimento sem o emprego de conceitos (FR 103, 113 / H.1, 71, 78 cf. W1 21 / H.2,24-5), e assim por diante. A faculdade da razão, portanto, é nitidamente sem importância em comparação com a faculdade do entendimento; fornece apenas “conhecimento secundário” — isto é, conhecimento não da realidade, mas de verdades por meio de conceitos e palavras (FR 103 / H.1). 71). “Todo simplório tem a faculdade da razão; dê-lhe as premissas e ele chegará à conclusão. Mas o entendimento fornece conhecimento primário e, portanto, intuitivo” (FR 113 / H.1,88). Por causa disso, Schopenhauer desdenha aqueles que sustentam que a razão transcende a experiência e, “como uma faculdade do supersensorial”, intui as coisas em si (FR 166 / H.1, 112). [30]

Os conceitos são inúteis isoladamente, e funcionam apenas quando combinados para formar julgamentos verdadeiros e expressar conhecimento. Mas, embora os juízos sejam úteis para expressar conhecimento, nenhum deles pode provê-lo de seus próprios recursos; isto é, nenhum [conceito ou juízo] é intrinsecamente verdadeiro. A verdade, afirma Schopenhauer, é uma propriedade relacional: se um julgamento é verdadeiro, ele é baseado em algo diferente de si mesmo, em um motivo ou razão externa. Em suma, Schopenhauer sustenta que necessariamente todo julgamento verdadeiro tem uma razão externa a ele e que constitui seu fundamento. [31] Ele também sustenta que o fundamento em questão é uma razão suficiente, de modo que necessariamente segue-se a verdade de seu juízo.

Essa relação entre a verdade dos juízos e das razões constitui o que Schopenhauer considera ser a raiz da segunda forma do princípio da razão suficiente, nomeada quiçá infelizmente como princípio da suficiente razão do conhecimento. [32] Afirma simplesmente que todo verdadeiro juízo tem uma razão suficiente para a sua verdade.

Schopenhauer classifica as razões que formam os fundamentos da verdade em quatro tipos e, por conseguinte quatro verdades: lógica, empírica, transcendental e metalógica [33]. Um juízo que possua a verdade lógica é baseado na verdade de outro juízo; a conclusão de um silogismo, por exemplo, possui a verdade lógica, baseando-se na verdade de suas premissas. Um julgamento que possua uma verdade empírica é aquele baseado no mundo dos objetos reais. O gato está no tapete, por exemplo, possui uma verdade empírica, baseada no fato de que um objeto empiricamente real, um gato, é posicionado sobre outro, um tapete. Um julgamento que possua verdade transcendental é aquele baseado na existência ou natureza do tempo, espaço ou causalidade, as formas puras da intuição empírica ou do entendimento. Duas linhas retas não encerram um espaço, por exemplo, possuem uma verdade transcendental, baseada na natureza do espaço, e o mesmo acontece com o julgamento nada pode acontecer sem uma causa, baseado na natureza da causalidade. Finalmente, um julgamento que possua a verdade metalógica é baseado nas condições formais de todo pensamento. Nenhum predicado pode ser afirmado e ao mesmo tempo negado de um sujeito possua uma verdade metalógica, baseada na impossibilidade de nosso pensamento em caminhos contrários a ele.

O papel desempenhado no sistema de Schopenhauer por esse censo de conceitos, juízos, razões e verdades é óbvia; conceitos são representações, sendo criações do intelecto e derivadas de outras criações do intelecto ou de suas condições formais; juízos também são representações, sendo combinações de conceitos que têm como objeto criações do intelecto ou suas condições formais. Segue-se que nem conceitos nem juízos fornecem conhecimento da realidade; de fato, como foi observado, eles nem sequer fornecem conhecimento primário da realidade representacional. Além disso, dado que todas as razões que constituem fundamentos de juízos verdadeiros são, elas mesmas, representações de juízos, objetos reais ou formas do intelecto, todas as inferências de juízos a razões, ou de razões a juízos, levam apenas de representações a representações. Em particular, o raciocínio dedutivo, a possível escada racionalista da ascensão ontológica, permanece dentro do domínio dos juízos e, portanto, das representações.[34]

Se Schopenhauer estiver certo, todos os metafísicos que atribuem um papel intuitivo à razão estão equivocados; isto é, todos os metafísicos estão equivocados se afirmarem que a razão é capaz de apreender imediatamente a realidade.Também estão enganados aqueles que afirmam que a razão é capaz por inferência de alcançar a realidade como ela é em si mesma. Assim, segue-se que o argumento ontológico é falacioso, movendo-se como supostamente o faz do conceito ao conceito, juntamente com todos os outros argumentos que buscam alcançar a realidade através das inferências da razão. Mas, ao mesmo tempo, as afirmações de Schopenhauer ameaçam sua própria metafísica: pois se todos os conceitos e todas as palavras derivam de representações, [35] se tudo que é material em nosso conhecimento vem da percepção do mundo corpóreo e tem sua origem na sensação, e se a razão não pode nos levar além das representações, não podemos ajuizar a Vontade e nem falar ou pensar significativamente sobre, e muito menos adquirir conhecimento conceitual dela.

As conclusões alcançadas até aqui na Quádrupla Raiz são as seguintes: o entendimento cria os objetos reais com o auxílio da intuição empírica, e tem conhecimento experiencial deles. Mas as únicas inferências que podem ser feitas a respeito deles [os objetos reais] são inferências acerca de mutações. Da mesma forma, a faculdade da razão cria conceitos e conhece através deles. Mas as únicas inferências que pode fazer são acerca de juízos ente si. Consequentemente, se o conhecimento da coisa em si for possível, isso não será através do entendimento ou da razão.

5.A terceira classe de objetos e a forma do princípio da razão suficiente que a rege

Os objetos que compõem a terceira classe de representações são o tempo e o espaço. Estes, como objetos e conceitos reais, são representações, uma vez que são dependentes do intelecto em sua existência. Eles são formas puras da intuição empírica do sentido externo e interno (FR 193 / H.1, 130), existentes dentro do cérebro (FR 77 / H.1, 53) e impostas aos dados sensoriais para provocar a percepção de objetos reais. Entretanto, como as projeções externas, por assim dizer, da faculdade de sensibilidade, o tempo e o espaço são percebidos, constituindo os objetos da intuição pura, a priori e imediata (Anschauung) (FR 193 / H. 1, 130); e como tal são particulares, não conceitos [que são sempre gerais].

Como particulares, o tempo e o espaço são compostos de partes, e a inter-relação sistemática dessas partes constitui a raiz da terceira forma do princípio da razão suficiente, denominada princípio da razão suficiente do ser. [36]O tempo é constituído por um número infinito de momentos ordenados mais ou menos como pontos em uma linha, e cada momento tem uma posição determinada dependente de um outro, e o conjunto destes constitui sua razão suficiente. O espaço é correspondentemente composto de um número infinito de pontos ordenados, formando linhas, ângulos, áreas e volumes, e qualquer um deles é onde está e como está, pois os outros estão onde estão e como estão. Em outras palavras, as propriedades geométricas de qualquer parte do espaço têm como razão suficiente as propriedades geométricas de alguma outra parte ou partes do espaço. Além disso, a razão suficiente em questão não é causal ou conceitual, mas ontológica. Isto é, se perguntarmos sobre qualquer parte do espaço por que isto é como é, em princípio encontraremos a pergunta em termos de como outras partes são como são. E se perguntarmos, por exemplo, porque os ângulos de um triângulo dado são como são, encontraremos que o são por conta dos lados do triângulo serem como o são.

A existência dos números, pensa Schopenhauer e, portanto, a existência da aritmética, repousa sobre a possibilidade de contar o tempo, e conclui que a aritmética é uma apreensão sistemática e intuitiva das relações temporais, correspondente ao domínio das relações espaciais na geometria — de qualquer forma, a geometria como deveria ser. A qualificação aqui é importante: a geometria como deveria ser, pensa Schopenhauer, é uma percepção não empírica direta das partes do espaço e de suas relações, e critica as provas de Euclides com base no fato de que estas não são o que a geometria deveria ser, mas meros exercícios conceituais relativos a juízos de juízos. Em outras palavras, as provas de Euclides, pensa Schopenhauer, são meros exercícios da razão — de fato, “uma brilhante peça de perversidade” (W170 / H.2, 84) —, não proporcionando nenhuma percepção da realidade do espaço e de suas propriedades. Por outro lado, não se segue que os julgamentos que constituem as conclusões de Euclides não sejam verdadeiros. Eles são verdadeiros; mas a verdade que eles têm como conclusões é lógica, dependente da verdade de suas premissas, e é por isso que as próprias provas estão relacionadas a conceitos e não ao espaço. [37]

Essa crítica a Euclides fornece a confirmação da baixa estima de Schopenhauer sobre a Razão como incapaz de apreender a realidade. Ele está convencido de que a percepção sozinha, não-empírica no caso do tempo e do espaço, é capaz disso.

É óbvio como as visões de Schopenhauer sobre o tempo, o espaço, e a matemática se encaixam em seu sistema. O tempo e o espaço são representações, criações do intelecto e a matemática genuína fornece insights sobre sua natureza. Mas isso não acontece mais. Ele não fornece nenhuma intuição da coisa em si, e as únicas inferências que ela extrai são de partes do tempo ou do espaço para outras partes do tempo ou do espaço.

Se for verdade, isso é um golpe na tradição racionalista da filosofia. Pois essa tradição, no principalmente, diz respeito à matemática como o exemplar do conhecimento que atinge a realidade absoluta somente através do pensamento.

6.A quarta classe de objetos e a forma do princípio de razão suficiente que o rege

Os objetos que compõem a quarta classe de representações são os nossos “eus” individuais, conhecidos diretamente por nós através da experiência autoconsciente. Embora nos conheçamos diretamente, não nos conhecemos como sujeitos do conhecimento, mas sim como sujeitos dotados de vontade ou a vontade mesma. Em outras palavras, na autoconsciência, não nos confrontamos como coisas que conhecemos, mas como coisas que conhecem. A razão para isso, argumenta Schopenhauer, é que o sujeito do conhecimento não pode se conhecer como tal, digo, não pode se conhecer como sujeito que conhece, pois se algo o é conhecido, o deve ser como objeto. (FR 208 / H.1, 141). Dito de outro modo, apenas objetos podem ser conhecidos; consequentemente, quando nos conhecemos, os “eus” que conhecemos não são nosso eu que conhece enquanto tal, mas algo mais, algo que Schopenhauer chama de vontade.

Embora enquanto vontade sejamos atribuídos a um tipo diferente de objeto do que o são nossos corpos, isso não significa que, de acordo com Schopenhauer, cada um de nós compreenda dois seres diferentes, um corpo e uma vontade. Pelo contrário, cada um de nós é um e indiviso. No entanto, enquanto somos unos, nos conhecemos de duas formas independentes. Nós nos conhecemos de fora e, desse ponto de vista, nos conhecemos como corpos; e nos conhecemos de dentro e, desse ponto de vista, nos conhecemos como vontades. A diferença, então, entre nós mesmos como corpos e nós mesmos como vontades é está disposta na ordem do conhecer e não do ser.

Schopenhauer acrescenta mais tarde que o sujeito que se conhece como vontade é idêntico a essa vontade, sendo ambos o mesmo eu. Mas essa identidade, que ele descreve como a unidade final do universo (der Weltknoten), não pode, diz ele, ser explicado; é dado em conhecimento imediato (unmittelbar gegeben). Não pode ser explicado pois as explicações são sempre acerca de objetos e suas relações, e o que está em questão aqui é a identidade entre um objeto e algo fora dessa classe. Consequentemente, essa identidade está radicalmente para além do escopo das explicações e pode ser descrita apenas como o mais notável dos milagres (das Wunder κατεξοχην).

Este relato de nós como duais em relação à ordem do conhecimento é completo e confirmado pela consideração de Schopenhauer acerca da ação, e que é o seguinte: sabemos com certeza que toda ação é precedida por uma ocorrência que é o seu motivo; se fato, é inconcebível que haja uma ação sem motivo, do mesmo modo como o são as ações dos corpos inanimados. A razão disso é que os motivos são causas: são causas vistas por dentro, do mesmo modo que a vontade é o corpo visto por dentro.

Na maioria das instâncias de causalidade, a saber, a mecânica, a química e semelhantes, sabemos que a causa está sempre presente e até mesmo discernimos sua necessidade; mas, permanecendo exteriormente a elas, nada sabemos sobre sua natureza interna. Mas no caso de nossas próprias ações, as coisas são diferentes. Nós realmente temos conhecimento destas de fora, assim como temos conhecimento de nós mesmos como corpos de fora; mas também temos conhecimento deles por dentro. “Aqui estamos, por assim dizer, nos bastidores e descobrimos a natureza mais íntima do processo pelo qual uma causa produz seu efeito” (FR 213 / H.1, 145).

A relação entre motivos e ações, então, é idêntica àquela entre causas e efeitos em objetos reais; mas, por ser conhecida de uma maneira diferente, Schopenhauer considera que ela constitui a raiz de uma forma separada do princípio da razão suficiente, que dessa vez ele nomeia o princípio da razão suficiente de ação. Assim, afirma que toda ação possui algum motivo.

O que Schopenhauer diz sobre as vontades individuais é importante em relação ao seu sistema por uma razão óbvia. Se as vontades são idênticas aos corpos, segue-se que, como outros objetos reais, elas são criações do intelecto e, portanto, não fornecem conhecimento imediato da coisa em si. Ao mesmo tempo, se os motivos e ações, sendo causas e efeitos, são mudanças em objetos reais, as inferências a respeito deles conduzem de mudanças em objetos a mudanças em outros objetos, nunca além.

Há ainda uma razão não tão óbvia mas importante para o sistema schopenhauriano no dito.  O fato de que nossos corpos vistos de dentro são nossas vontades constitui a pedra fundamental de toda a sua “metafísica” (FR 214 / H.1: 145). O que ele quer dizer com isso é que o conhecimento imediato de nós mesmos como vontades nos dá uma compreensão da natureza interna não apenas de nossos corpos, mas de toda a realidade representativa; cada um de nós serve como microcosmo do todo. Simultaneamente, esse conhecimento nos leva a uma compreensão da coisa em si, pois “essa coisa em si mesma, esse substrato de todas as aparências e, consequentemente, de toda a natureza, nada mais é do que o que conhecemos imediata e intimamente, e encontramos dentro de nós mesmos como vontade”. [38] Essa transição do conhecimento do objeto para o conhecimento da Vontade é possível porque os objetos são objetivações e, de alguma forma, revelações da Vontade.

Deve-se dizer que isso é revelado apenas em outros trabalhos de Schopenhauer. Na Quádrupla Raiz mesma não há mais sugestões.

7.Necessidade

Em seu capítulo conclusivo, Schopenhauer discute brevemente a natureza e o campo de atuação da necessidade, e seu principal problema aqui é que a necessidade não significa mais do que a inevitabilidade com a qual o consequente segue o precedente de modo que somente relações condicionais possuem necessidade — relações na forma “se x, então y”. Dado isto, não faz sentido atribuir necessidade a algo que não uma relação, e assim a noção de uma coisa absolutamente necessária se torna contraditória. O que Schopenhauer parece ter em mente aqui é que dizer de uma coisa que é absolutamente necessária é dizer que ela é simultaneamente absoluta e necessária, e que isso implica que ela seja simultaneamente não dependente e dependente. Implica não ser dependente porque dizer de uma coisa que é absoluta é dizer que não é dependente, e implica que ela seja dependente porque dizer de uma coisa que é necessária significa, na medida em que significa qualquer coisa [39] que segue de outra coisa.

Schopenhauer conclui dizendo que as únicas relações necessárias são aquelas inclusas nas quatro formas do princípio da razão suficiente, e que, consequentemente, existem apenas quatro tipos de necessidade: a necessidade lógica, em virtude da qual uma conclusão tem que se seguir de suas premissas; a necessidade empírica, em virtude da qual um efeito tem que resultar de sua causa; a necessidade matemática, em virtude da qual um conjunto de propriedades matemáticas tem que se seguir de algum outro conjunto que constitua sua razão; e a necessidade moral, em virtude da qual uma ação tem que se seguir de seu motivo. [40]

Se o que Schopenhauer diz é correto, isso torna toda a tradição metafísica racionalista errada, visto que para caracterizá-la em poucas palavras, essa tradição tenta inferir a existência e a natureza de uma realidade absolutamente necessária a partir de premissas absolutamente necessárias. Mas realidades e premissas absolutamente necessárias, declara Schopenhauer, são absurdos. Vale acrescentar que as necessidades que Schopenhauer permite que não interessam ao metafísico racionalista, uma vez que elas surgem do cérebro e refletem as limitações do cérebro. Ao falar da necessidade com que pensamos de acordo com as leis do pensamento, Schopenhauer diz que “é tão impossível pensar em oposição a eles quanto mover nossos membros na direção contrária às articulações” (FR 162). / H.1, 109). Ele poderia ter acrescentado que isso é por razões estreitamente análogas.

Se a metafísica conseguir sobreviver ao esquema schopenhauriano, então ela não poderá ser baseada no raciocínio de que necessidades seguem-se de necessidades e deverá apelar ao conhecimento imediato. [41]

8.Dois argumentos implícitos

Dada a importância geral da questão, é útil concluir dizendo algo sobre os argumentos de Schopenhauer quanto à natureza representacional do mundo cotidiano que ele implica no plano da Quádrupla Raiz.

Antes de discutir os objetos que constituem o mundo cotidiano, ele diz que a consciência consciente é dividida entre sujeito e objeto, e que ser objeto de um sujeito é o mesmo que ser uma representação (FR 41-2 / H). 1, 27). Se por isso ele pretende argumentar, como provavelmente o faz, [42] que mesas, cadeiras, conceitos e assim por diante existem na consciência como objetos dependentes de um sujeito, e que, portanto, existem apenas como objetos dependentes de um sujeito, o que ele diz é inexpressivo. [43] Pois, considerados como objetos no sentido de estarem presentes a um sujeito,[44] mesas, cadeiras e o resto são, sem dúvida, dependentes de um sujeito. Mas não se segue que, considerados como objetos no sentido de serem coisas assim presentes, mesas, cadeiras e o resto são dependentes de um sujeito. Pensar assim é como pensar que, pela Sra. Smith ser considerada como uma esposa depende de seu marido, ela é, portanto, dependente dele sans phrase. [45]

Um argumento melhor, de origem kantiana e claramente aludido, embora de maneira concisa na Quádrupla Raiz (FR 28–9, 232 / H.1, 20–1, 158), é apresentado a seguir: dado que o princípio da razão suficiente é uma verdade necessária, conhecida a priori, é dependente de sua origem e existência sobre o intelecto, e daí decorre que todos os objetos cuja natureza é constituída pelas relações expressas nesse princípio são da mesma forma dependente do intelecto. O mundo inventado desses objetos, portanto, é um mundo de representações, não coisas em si mesmas; tal mundo, “apresentando-se em virtude de formas a priori, é precisamente por isso um mero fenómeno” (FR 232 / H. 1, 158). [46]

O argumento quando aplicado a objetos reais chega a este ponto. O princípio de razão suficiente do devir é uma verdade necessária, conhecida a priori, e é, portanto, dependente de sua origem e existência sobre o intelecto. Mas é uma verdade expressando relacionamentos que são constitutivos da natureza dos objetos reais. Ela nos diz que necessariamente todas as mudanças em objetos reais têm causas e são elas mesmas causas, e que isso é uma propriedade de objetos reais constitutivos de sua natureza. Segue-se que os objetos reais, como as relações expressas pelo princípio a priori da suficiente razão do devir dependem do intelecto; são, portanto, representações. O entendimento “em primeiro lugar, torna a percepção possível, pois a lei da causalidade, a possibilidade de efeito e causa, provém apenas do entendimento, e é válida também apenas para ela; daí o mundo da percepção existir apenas para ele e através dele” (W1 20 / H.2,23).

Esse argumento só pode ter sucesso se o princípio da razão suficiente do devir for conhecido a priori; mas, como as considerações a seguir servirão para revelar, não há motivos sérios para acreditar que seja. O princípio declara que necessariamente todas as mudanças nos objetos reais são causadas, que necessariamente toda causa pertence a uma série que não tem começo nem fim, e, por via de corolário, que necessariamente a matéria é eterna (FR 64–5 / H.1,42). –3). Mas não há bons motivos para afirmar que isso seja verdade, quanto mais a priori. Pelo contrário, há boas razões para sustentar que os átomos podem decair sem causa, que a matéria surgiu há cerca de 15 bilhões de anos e que todas as séries causais, como o tempo e o espaço, tiveram um começo. Pensamentos e experimentos futuros podem mostrar que essas crenças são falsas; mas, verdadeiras ou falsas, elas não podem ser descartadas como contraditórias ou inconcebíveis de imediato.

O argumento aplicado ao tempo e ao espaço é, ainda mais brevemente, como segue: o princípio de razão suficiente do ser é uma verdade necessária, conhecida a priori, e é, portanto, dependente de sua origem e existência sobre o intelecto. Mas é uma verdade expressando relacionamentos que são constitutivos da natureza do tempo e do espaço. Ela nos diz que as partes do tempo estão interconectadas pelas relações expressas nas verdades da aritmética, uma interconexão que é constitutiva do tempo, e nos diz que as partes do espaço estão interconectadas pelas relações expressas nos teoremas da geometria euclidiana, [47] uma interconectividade que é constitutiva do espaço. Segue-se que o tempo e o espaço, como as relações expressas nas verdades a priori da geometria aritmética e euclidiana dependem do intelecto. Este argumento não é convincente pelas seguintes razões: enquanto as relações expressas nas verdades da aritmética são conhecidas a priori, não há plausibilidade para a afirmação de que elas são constitutivas do tempo, uma vez que o que constitui o tempo é a sucessão transitória, relações aritméticas, sendo apenas propriedades supervenientes. Da mesma forma, as relações expressas nos teoremas da geometria euclidiana são a priori,[48] mas não há plausibilidade para a afirmação de que elas são constitutivas do espaço, uma vez que elas nem sequer são verdadeiras do espaço. De qualquer forma, dado que os teoremas de outras geometrias têm tanto a pretensão de serem aceitos quanto os da geometria euclidiana, [49] é mais plausível supor que todos são igualmente verdadeiros em virtude dos axiomas de onde provêm, e que essas são questões importantes de escolha e convenção.

Fica claro, a partir dessas breves observações, que Schopenhauer não pode estabelecer a natureza representacional do tempo, do espaço, dos objetos reais e das vontades individuais apelando para o princípio da razão suficiente, [50] mais do que apelando à verdade de que um objeto precisa de um sujeito. Mas lembremos que a história não termina aí: há o argumento baseado em considerações da fisiologia da percepção, e o ponto supostamente importante que Schopenhauer infere destes pode bem ser justificado. “O ponto importante é que qualquer experiência que surja na consciência é uma experiência subjetiva e não faz parte de um mundo externo independente. Esse mundo externo independente é uma ficção gerada para nós pelo cérebro, que erroneamente consideramos real”. [51]

Se Schopenhauer estiver certo em sustentar que o mundo cotidiano é mera representação, ele provavelmente estará certo em sustentar que não podemos extrair inferências a respeito da natureza da coisa em si. Pois, para resumir, essas inferências seriam de propriedades que caracterizam o mundo cotidiano a propriedades análogas que caracterizam a coisa em si. Mas a reflexão sobre as propriedades do mundo cotidiano não fornece nenhuma base para acreditar que a coisa em si é caracterizada por propriedades análogas, porque não fornece nenhuma base para acreditar que ela seja caracterizada por propriedades de forma alguma.

E se podemos conhecer algo da coisa em si, então, nosso conhecimento dela deverá ser não-inferencial.

retirado do livro The Cambridge Companion to Schopenhauer

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