Sobre o Panenteísmo

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Por Joathas Bello
07 de junho de 2022

Neste artigo, procuro determinar:

  1. O conceito de “panenteísmo”, partindo do seu uso original na história da filosofia;
  2. a. sua diferença para uma metafísica teísta, a partir do exemplo do filósofo espanhol Xavier Zubiri (1898-1983);
  3. b. alguns exemplos concretos importantes de panenteísmo na história das religiões e da filosofia.

1. O que é “panenteísmo”?

O termo “panenteísmo” foi usado pela primeira vez pelo filósofo Karl Christian Krause, como nos diz José Ferrater Mora, em seu famoso Dicionário:

Segundo Krause, embora haja uma estreita relação entre o mundo e Deus, nenhum desses termos absorve o outro e nenhum se identifica com o outro. O panenteísmo de Krause se opõe ao panteísmo e nega que o mundo seja Deus, ou que tudo seja divino. Opõe-se também ao teísmo e nega que Deus seja transcendente ao mundo. Contudo, o panenteísmo de Krause se inclina mais para o panteísmo que para o teísmo, e constitui uma variedade do panteísmo, que sublinha a comunidade e reciprocidade do mundo e de Deus.

(FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia: Tomo III (K-P). 2ª edição. São Paulo: Loyola, 2004, vocábulo “Panenteísmo”).

O próprio Ferrater Mora nos dá mais umas pistas no vocábulo “Krause”. É uma citação longa, mas é importante entender algo da filosofia dele para entender sua noção de panenteísmo:

De acordo com Krause, o pensamento procede de dois modos: primeiro, subjetiva ou analiticamente e depois objetiva ou sinteticamente. O ponto de partida analítico consiste num exame dos processos subjetivos, entendendo-se estes como processos próprios do sujeito cognoscente enquanto cognoscente. Nesses processos produz-se a ‘objetivação’ ou transformação do dado em ‘objeto de conhecimento’. Mas a objetivação requer um ente objetivante. Este não pode ser o mero eu psicológico; tem de ser um eu mais fundamental, um proto-eu (Ur-Ich) que é a unidade última de todo o subjetivo, incluindo o corporal e o intelectual. O proto-eu, no entanto, não se basta a si mesmo; seus elementos componentes, o corpo e o intelecto, são essências finitas que fazem parte, respectivamente, da Natureza e do Espírito. Embora essas essências estejam fundadas, por sua vez, numa essência unitária e originária, que as abarca, essa essência continua a ser finita e infundada. Portanto, deve-se buscar sua fundamentação numa essência mais básica e originária. Essa essência é um puro Wesen, um ser essencial infinito, capaz de abarcar os elementos diversos e contrários: é o Absoluto ou Deus.

É importante notar aqui o seguinte: Deus ou o Absoluto, a essência originária, não é um ser feito de 2 partes ou composto, mas é um ser que inclui unitariamente isto que é dual ou diverso no mundo. E é só por isso que ela pode ser o fundamento buscado por Krause. Sigamos com Ferrater Mora:

O ponto de partida subjetivo ou analítico conduz, portanto, a um pensar objetivo ou sintético. A ciência que leva a cabo esse pensar o Absoluto é a ciência fundamental, base de todo conhecimento. O pensar objetivo ou sintético percorre o mesmo caminho do pensar subjetivo ou analítico, mas em sentido inverso: vai do Ser Absoluto ao homem. Por isso, ele começa com uma teoria da proto-essência (Urwesen), continua com uma ciência da razão da razão, passa a uma ciência da Natureza e desemboca numa ciência da essência unificada. Esta última é uma ciência do homem enquanto humanidade. A possibilidade de ir do sujeito a Deus e de Deus ao sujeito levou Krause a pensar que há uma estreita relação entre Deus e o mundo, de um lado, e entre o mundo e Deus, de outro. Esta relação não é para Krause, todavia, uma relação na qual um termo absorva o outro. Por isso ele rejeita a possibilidade de se qualificar sua doutrina como ‘panteísmo’. De todo modo, o que ele defende é aquilo a que dá o nome de ‘panenteísmo’, isto é, uma doutrina que, longe de identificar o mundo e Deus (ou vice-versa), afirma a realidade do mundo como mundo-em-Deus. A comunidade entre Deus e o mundo é a comunidade das essências, que não se reduzem por isso a uma essência única; não se trata de redução, mas de integração”

(FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia: Tomo III (K-P). 2ª edição. São Paulo: Loyola, 2004, vocábulo “Krause”).

Em que sentido o mundo é “mundo-em-Deus”, ou o que significa a “comunidade entre Deus e o mundo enquanto comunidade de essências que não se reduzem a uma essência única”? Krause não está se referindo à tomista presença de Deus no mundo pela sua causalidade (S.Th. I, q.8), nem ao entendimento bíblico da presença do mundo criado em Deus, que podemos ler nos Atos dos Apóstolos 17,28 (“nEle somos, nos movemos e existimos”), já que esta fórmula, que alude à Ação divina conservadora, não pode não ser, por óbvio, conforme o teísmo bíblico e cristão, ou ao monoteísmo da criação ex nihilo.

A explicação deve ser de acordo com Krause (cf. Ferrater Mora): tanto o proto-eu, quanto a dualidade de essências mundanas, a Natureza e o Espírito, são essências finitas: as duas últimas por integrarem um todo maior, que é o justamente o proto-eu, e este, por ser composto daquelas. Deus é a essência infinita por abarcar os elementos diversos e contrários, e não por ser composto por eles. Ou seja, em Deus, Natureza e Espírito estão presentes indiferenciada e unitariamente. No proto-eu, Natureza e Espírito são realmente distintas.

Por isso Deus é distinto do mundo: no primeiro não há distinção entre Natureza e Espírito, e no “mundo”, elas são essências distintas, finitas, limitadas uma pelo outra. Onde reside a comunidade de essências entre Deus e o mundo? Só pode ser no proto-eu: Deus é “mais” que o proto-eu, porque a indistinção precede a composição, mas o proto-eu, em sua unidade composta, reproduz a essência divina de maneira limitada, onde a limitação aqui é a composição (daquilo que era abarcado de modo unitário e indiferenciado).

E por que o mundo é distinto de Deus? Porque só “coincide” ou “se comunica” com o Absoluto pelo ápice, que é o proto-eu, e não em sua totalidade. Se a “estreita relação entre Deus e o mundo” foi pensada por Krause em virtude da possibilidade de ir do sujeito a Deus e de Deus ao sujeito, é porque esta comunicação entre Deus e o mundo se funda na comunidade de essências entre o proto-eu que funda o sujeito e Deus que funda o proto-eu.

Vejamos outro autor, o russo Bulgakov, que é apresentado por Ferrater Mora, como “panenteísta”:

Mais tarde, [Bulgakov] rompeu completamente com o marxismo, aderindo ao idealismo e mais tarde à tradição religiosa representada por Soloviev. Bulgakov afirmou que há uma ‘alma do mundo’ que unifica toda a realidade, fazendo dela uma espécie de organismo. Tanto o mundo como a alma do mundo foram criados por Deus. Influenciado pela tradição platônica e neoplatônica, Bulgakov concebeu a criação do mundo como uma espécie de emanação de Deus. A alma do mundo é a sabedoria, que medeia entre Deus e o mundo e é como o aspecto feminino do criado. A Sabedoria é ao mesmo tempo de Deus e do mundo, embora se possa distinguir uma sabedoria divina de uma sabedoria mundana. Essas ideias beiravam o panteísmo, mas Bulgakov rejeitou toda acusação de panteísmo e manteve uma espécie de panenteísmo semelhante ao desenvolvido por Krause”.

(FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia: Tomo I (A-D). 2ª edição. São Paulo: Loyola, 2004, vocábulo “Bulgakov”).

Aqui nós temos uma noção de “alma do mundo” ou “sabedoria criada”, que é uma espécie de “dobradiça” entre Deus e o mundo, mas esta é uma ideia bem diferente do proto-eu de Krause ou, por exemplo, do Intelecto plotiniano, porque é possível metafísica e teologicamente que um “primeiro ser criado”, por exemplo, a Sabedoria criada dos livros sapienciais do Antigo Testamento, tenha comunhão com Deus, sem que esta comunhão ou santidade faça dela uma hipóstase divina, e domine sobre a criação,  sem que as coisas mundanas e cada uma das almas coincida em seu ser profundo com este “primeiro ser” eminente e santificado; assim, este primeiro (ato de) ser é distinto do Ser de Deus (porque ele criatura, é elevado pela Graça) e é distinto do ser de cada criatura.

Quando as almas e o mundo não têm outro ser que o da divindade manifesta, então é que há a confusão metafísica e, consequentemente, uma concepção teológica “gnóstica”, da auto-divinização, em que as almas coincidem, no fundo ou no íntimo, com a “centelha divina”, o atman, o nous divino etc., de acordo com o freguês (não se trata do gnosticismo dualista, evidentemente, mas de uma gnose sofisticada). Neste horizonte metafísico-teológico do panenteísmo, a teologia cristã da criação ex nihilo, da queda, da redenção e da deificação perdem o sentido, o homem podendo divinizar-se com suas próprias forças, com o conhecimento de técnicas ascéticas e com o conhecimento da teologia negativa, em linhas gerais.

Vejamos algo que Ferrater Mora nos diz sobre o “panteísmo”, que é importante para o problema do panenteísmo:

“[...] o termo ‘panteísta’ (Pantheist) foi usado, pela primeira vez, por John Toland (1705) e o termo ‘panteísmo’ (Pantheism) pelo adversário de Toland, J. Fay (1709). [...]  Tanto Toland quando Fay entendiam por ‘panteísta’ aquele que crê que Deus e o mundo são a mesma oisa, de modo que Deus não tem nenhum ser fundamentalmente distinto do do mundo, e por ‘panteísmo’ a correspondente crença, doutrina ou filosofia. [...] a rigor, certas doutrinas não-modernas, orientais e ‘ocidentais’, não são retamente entendidas quando as classificamos de ‘panteístas’ pela simples razão de que seu ‘panteísmo’ não identifica Deus com o mundo, mas parte de uma unidade prévia que não é possível separar nos dois aspectos ‘Deus’ e ‘mundo’. Por exemplo, é de duvidar que sejam propriamente panteístas as doutrinas dos pré-socráticos, ou o neoplatonismo (ou se continuarem sendo qualificadas de ‘panteístas’ é preciso entender-se sobre o peculiar significado do termo). Seria melhor, quando se trata do ‘panteísmo’ pré-moderno, ou não usar o vocábulo ou usá-lo somente com qualificações. Em geral é mais adequado limitar o panteísmo ao ‘panteísmo moderno’.

(FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia: Tomo III (K-P). 2ª edição. São Paulo: Loyola, 2004, vocábulo “Panteísmo”).

Pois bem, penso que bem entendidas, estas teorias, pré-socráticas ou, principalmente, neoplatônicas, são muito melhor definidas como “panenteístas”!

Vejamos algo que Ferrater Mora diz sobre o “monismo místico”, que também poderia ser melhor definido como panenteísta:

[...] Podem-se ainda classificar as doutrinas monistas, como o fez Nicolai Hartmann, como ‘monismo místico’ e ‘monismo panteísta’. O primeiro é representado por Parmênides, cuja fórmula da identidade do ser com o pensar predeterminou o curso ulterior da maioria das doutrinas monistas. O principal e mais característico representante do monismo místico é Plotino, cuja noção de ‘Uno’ constitui o princípio que enseja a oposição entre sujeito e objeto mediante o processo de suas emanações.

 (FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia: Tomo III (K-P). 2ª edição. São Paulo: Loyola, 2004, vocábulo “Monismo”, negritos meus).

2. Panenteísmo x teísmo 

Um autor recente, Sanchez Gauto, considerou que Xavier Zubiri fosse panenteísta (Sanchez Gauto, C. Eduardo. “The Transcendental Panentheism Of Xavier Zubiri In Nature, History, God And Man And God”. In: The Xavier Zubiri Review, Vol. 13, 2013-2015, pp. 107-132). É uma tese falsa, e buscarei indicar sua falsidade no confronto entre a argumentação do autor e os textos zubirianos, através do qual também mostrarei a diferença entre a visão panenteísta e a visão teísta que leva em consideração que Deus está no mundo e que o mundo está em Deus.

Algumas citações sobre o panenteísmo que o autor traz:

O panenteísmo pode ser genericamente definido como uma visão de Deus na qual “Deus e o mundo são ontologicamente distintos e Deus transcende o mundo, mas o mundo está em Deus ontologicamente” (Cooper, Panentheism-The Other God of the Philosophers, p. 27).

O “panenteísmo tipicamente se refere a uma síntese entre o tradicional teísmo e o panteísmo, pelo qual se acredita que o mundo inteiro (e tudo nele) esteja em Deus, embora Deus transcenda os limites do mundo natural e seja mais do que a natureza” (Stephen Palmquist, “Kant’s Moral Panentheism,” Philosophia 36, no. 1 (2008): 1728, doi:10 . 1007 / s11406 - 007 - 9098 - 0, p. 20).

O autor explica assim esta segunda citação (negrito meu):

Isto é, o mundo e tudo que há nele está está no ser de Deus ou ontologicamente em Deus. A noção de que o mundo está no ser de Deus, isto é, ontologicamente em Deus, é a chave do panenteísmo e ela serve para distingui-lo das afirmações modernas do teísmo clássico, que enfatizam fortemente a noção de imanência divina.

Não está claro o que possa significar “o mundo está no ser de Deus, ontologicamente em Deus”, já que estas afirmações, sem mais explicações podem encontrar significação teísta, a partir da famosa passagem de At 17,28: “NEle somos, nos movemos e existimos”.

Já estas “afirmações modernas do teísmo clássico” que enfatizam a imanência divina são aquelas que afirmam a Transcendência de Deus Criador e ao mesmo tempo afirmam que Deus tem algum tipo de imanência, por exemplo, como Conservador do mundo desde “dentro”. Ou, como diz o autor, citando a outrem:

Cooper explica que, para o teísta clássico, Deus não é apenas imanente; ele poderia ser absolutamente imanente porque a transcendência de Deus é absoluta (cf. Cooper, Panentheism-The Other God of the Philosophers, p. 329-330).

Isto se dá precisamente porque não se pode “dividir” Deus em uma “parte” transcendente e outra “parte” imanente: Deus é inteiramente transcendente enquanto Deus, isto é Absolutamente Absoluto, Separado, Autossuficiente e, ao ser o Criador do mundo por amor, é inteiramente imanente enquanto Causa Conservadora, porque sua Ação Causal não é distinta da Própria Essência ou Ser Divino, sem que isto signifique, de modo algum, alguma espécie de “confinamento” de Deus no interior do mundo, nem de “confinamento” do mundo no interior de Deus: aqui as imagens espaciais de nada servem, pois nos conduzem ou a algum tipo de gnosticismo dualista, ou a algum tipo de panteísmo.

Outra citação feita pelo autor:

‘panenteísmo’ significa literalmente ‘tudo em Deus’. (A palavra foi cunhada por [...] Karl Christian Friedrich Krause). Ele afirma que os indivíduos não-divinos estão incluídos em Deus, estão completamente dentro da vida divina. Deus sabe tudo o que existe sem externalidade, mediação ou perda (embora o conhecimento e a avaliação de Deus sejam mais do que as experiências das criaturas, que estão totalmente incluídas na experiência divina). Deus capacita tudo o que existe sem externalidade, mediação ou perda (embora exista uma genuína indeterminação e liberdade de escolha e ação que Deus capacita no reino da criatura). Isso contrasta com o teísmo tradicional, que tende a considerar Deus totalmente distinto da criação e das criaturas. O deísmo é um extremo dessa tendência. Por outro lado, o panenteísmo também se distingue do panteísmo (literalmente ‘tudo é Deus’). Defende que Deus não é redutível aos indivíduos não divinos, ao universo como um todo ou à estrutura do universo; antes Deus os transcende, tendo uma realidade – uma consciência e um poder – que inclui, mas não se esgota, pela realidade da criação e pelas experiências e ações das criaturas (Nikkel, Panentheism in Hartshorne and Tillich: A Creative Synthesis, p. 2-3).

Nesta visão, o panenteísmo significa que os indivíduos não-divinos estão incluídos em Deus, em contraste com o teísmo, em que Deus é totalmente distinto das criaturas. Mas Deus não é redutível aos indivíduos não-divinos ou ao universo. Com esta ideia da “inclusão”, o autor citado parece se referir àquele momento em que, para Krause (ou talvez para Plotino) os indivíduos estariam indiferenciados em Deus, mas em que, num “panenteísmo cristão” (sic), seriam conhecidos individualmente por um Deus onisciente pessoal. Nesse modelo, mais simples, as pessoas e o mundo são partes de Deus, mas Deus é maior, e por isso não há panteísmo.

Quanto ao deísmo, que o autor menciona, enquanto crença ou filosofia, ele é corolário da visão agnóstica moderna a respeito da Revelação Sobrenatural ou do conhecimento do Mistério de Deus que vem através da Fé, precisamente porque tal agnosticismo nasce no âmbito de uma “distância” espiritual entre o homem e o Criador.

 Outra citação que o autor faz ajuda a ver o “panenteísmo cristão” (sic) na forma em que eu esclareci:

O vínculo ontológico entre Deus e o mundo é bem descrito na teologia explicitamente panenteística de Jürgen Moltmann, que afirma: ‘A essência de Deus tem em si a ideia do mundo desde toda a eternidade’ (Jürgen Moltmann, Trinidad y Reino de Dios: La doctrina sobre Dios (Salamanca: Sígueme, 1983), p. 122).

 O autor explica assim esta passagem: “Como a essência de Deus é também Sua existência, a criação é necessária e uma extensão do Ser divino, em vez da caracterização totalmente contingente da criação que prevalece no teísmo clássico (cf. S.Th. I, q. 19 a. 3 ad 5; S.Th. I, q. 46, a. 1)”.

Ora, o fato de que a ideia do mundo esteja eternamente na Mente Divina, no Próprio Deus, não significa que o pensamento do mundo a ser criado seja o mundo a ser criado! E é aqui precisamente onde reside um dos grandes erros panenteístas: identificar as possibilidades lógicas da Mente Divina (que são todas pensadas eternamente, simultaneamente, sem discursividade e sem confusão – de um modo que não podemos imaginar –, não havendo, assim, necessidade de emanar um intelecto divino ad extra) com uma espécie de “potência passiva”, isto é como o mundo “já” existindo virtual ou potencialmente, para ser “necessariamente” emanado, porque haveria uma “tensão” em Deus. A criação assim não é mais fruto de uma vontade livre e amorosa, que cria sem necessidade, para doar o ser participado ao que não necessitava nem merecia existir.

O autor cita um trabalho que traz várias classificações para o panenteísmo (cf. Cooper, Panentheism-The Other God of the Philosophers, “Basic Terms and Distinctions in Panentheism”, in Chapter I, pp. 26-30):

  1. Panenteísmo explícito ou implícito. O panenteísmo explícito é assumido distintamente por seus proponentes, enquanto outros pensadores têm uma teologia panenteísta enquanto evitam o uso do termo ou simplesmente não o usam.
  2. Panenteísmo pessoal ou não pessoal. Alguns pensadores panenteístas veem Deus como não-pessoal, enquanto outros veem Deus como pessoal.
  3. Panenteísmo parte-todo ou relacional. Alguns panenteístas consideram o mundo como parte de Deus, sem ser totalmente Deus. Outros veem Deus distinto do mundo, mas ligado ontologicamente de maneira simbiótica.
  4. Panenteísmo voluntário ou natural. Alguns pensadores panenteístas consideram a criação do mundo necessária para Deus. Outros veem o mundo como o produto de um ato criador gratuito de Deus.
  5. Panenteísmo clássico ou moderno. O panenteísmo clássico afirma a maioria dos atributos teístas de Deus, incluindo a onipotência, enquanto o panenteísmo moderno afirma que Deus é afetado pela liberdade criadora”.

Um panenteísmo com Deus pessoal (2) e criação gratuita (4) teria que ser um “panenteísmo cristão” (sic), e então seria necessário precisar o sentido desta “gratuidade”: ela teria que significar um mundo no qual todas as coisas têm um ser simultaneamente criado/participado e elevado/santificado desde o princípio. Mais ou menos como se o cosmos criado inteiro fosse uma “encarnação” de Deus.

O modo de afirmação dos atributos teístas no “panenteísmo clássico” (5), se por “clássico” se entende a concepção do bramanismo ou do neoplatonismo, por exemplo, estão associados a uma divindade impessoal; a afirmação de que Deus é afetado pela liberdade criadora está associada a visões como a da filosofia hegeliana, por exemplo. Esta ideia de que Deus é afetado é uma distorção da noção da Encarnação divina em Cristo, a qual é aplicada ao mundo todo, e no fundo está relacionada à ideia de uma criação necessária, não como uma imposição física, mas como uma necessidade ontológica que nasce de uma incompletude inicial, para que a própria divindade alcance a plenitude espiritual. Sobre o provável panenteísmo de Hegel, podemos ler em Charles Taylor:

[...] Hegel não foi um panteísta. Para ele, o mundo não é divino, nem qualquer parte dele. Deus é, muito antes, o sujeito da necessidade racional que manifesta a si mesmo no mundo.

O que distinguia a posição de Hegel do panteísmo, em sua própria opinião, era a necessidade racional, que, é certo, não poderia existir sem o mundo enquanto conjunto das coisas finitas, mas que era superior ao mundo no sentido de ter determinado sua estrutura de acordo com suas próprias exigências. O Geist de Hegel, por conseguinte, é tudo menos uma alma cósmica, cuja natureza estaria dada exatamente como a nossa [...]

Também há quem tenha chamado a teoria de Hegel de ‘panenteísta’ ou ‘emanacionista’ e, nesse tocante, a tenha ligado à de Plotino. Certamente, há afinidades entre as duas. E Hegel, assim como os gregos, parece estar envolvido com algo como um universo eterno [...].”

(TAYLOR, Charles. Hegel: Sistema, método e estrutura. São Paulo: É Realizações, 2014, pp. 128-129)

Assim, as alternativas do ponto “3” seriam as mais decisivas para uma compreensão essencial do panenteísmo: este é fundamentalmente um entendimento específico do vínculo real entre Deus e o mundo. Elas basicamente dizem (associando-as à definição geral do autor das classificações, assumida pelo autor do artigo): o mundo está em Deus, no ser de Deus, ou ontologicamente em Deus, mas Deus o transcende (parte-todo); o mundo está em Deus, no ser de Deus, ou ontologicamente em Deus, mas sua realidade não está toda incluída em Deus, de modo análogo a como Deus o transcende, senão que eles têm uma “intersecção”, por assim dizer (a ligação “simbiótica”).

O problema todo é que o que importa, filosófica e teologicamente na questão, é o modo como o mundo está em Deus! É o entendimento deste modo que permite distinguir rigorosamente uma metafísica panenteísta tanto de uma metafísica panteísta, quanto de uma metafísica teísta que reconhece a relação criatural inseparável entre Deus e o mundo.

E aí voltamos ao que havia ficado bem estabelecido anteriormente, a partir das contribuições de Ferrater Mora a respeito de Krause: no panenteísmo, o “ponto de encontro” entre a realidade divina e a realidade cósmica é uma primeira realidade medial (primeira depois do Absoluto) composta das distinções que são indiferenciadas na realidade divina una inicial (e que assim não podem gerar imediatamente o múltiplo), e a partir da qual surgem as demais realidades mundanas; esta realidade medial entre a divindade una e o mundo múltiplo é a própria essência divina manifesta, ela é da divindade, que a supera em sua unidade indiferenciada, e é do mundo, que reflete e concretiza as múltiplas possibilidades dessa essência divina sem chegar a ter uma outra realidade que ela (sem que se possa dizer que é “criado” em sentido forte).

Que haja um “ser” intermédio entre a divindade e o mundo, que seja a própria divindade manifesta, e que seja também o ser do mundo, isto é o essencial do panenteísmo. Isto se encontra, por exemplo, e como já mencionei, no neoplatonismo (o Intelecto), ou no bramanismo (o atman), por exemplo.

Para que o panenteísmo seja definido por “o mundo em Deus”, sem confusão com o fundamento que Deus criador oferece ao mundo criado distinto dEle (At 17,28), isto deve significar que o mundo é Deus pelo ápice – não em cada realidade empírica –, possui a própria divindade como sua realidade última, não diretamente a divindade inicial, mas a divindade manifesta, que é unida à divindade inicial.

A falta de rigor e de clareza do autor – e de suas fontes, a bem da verdade, ao menos na consideração dos trechos que ele traz – leva-o a considerar Zubiri um “panenteísta”, por causa de sua doutrina da “religação” ontológica do homem a Deus. Vejamos algumas das razões que ele apresenta, a partir de sua leitura de Natureza, História, Deus (NHD) e El hombre y Dios (HD).

A respeito de Em torno do problema de Deus, ensaio recolhido em NHD, o autor afirma que “pela religação, a humanidade e o mundo inteiro estão ‘em Deus’ ontologicamente” e que a seguinte passagem descreve a “visão panenteísta” (sic):

Deus não é algo que está no homem como parte dele, nem é algo que lhe é acrescentado, de fora, nem é um estado de consciência, nem é um objeto. O que de Deus haja no homem é tão somente religação em que somos abertos a Ele, e nessa religião Deus se nos patenteia. Por isso não se pode, a rigor, falar de uma relação com Deus.

(ZUBIRI, Xavier. Natureza, História, Deus. Prefácio de Joathas Bello. Tradução de Carlos Nougué. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 422) 

O que o autor vislumbra como panenteísmo aqui é simplesmente a “religação”, que Zubiri, nesse momento, define como “o vínculo ontológico do ser humano, não a algo que nos é extrínseco, mas ao que nos faz ser” (cf. NHD, 415), que “nos torna patente... a fundamentalidade da existência humana” (NHD, 416), que é uma “dimensão formalmente constitutiva da existência” (NHD, 417), a “estrutura ontológica da pessoa” (NHD, 418), pela qual somos abertos a Deus (o fundamento a ser descoberto pela razão), como na passagem citada.

A religação é um conceito que, nesse momento, descreve o fato ontológico de que nossa existência é inseparável do fundamento que nos faz ser, e que não “nos é imposto extrinsecamente” (como obrigação), nem “nos inclina intrinsecamente como tendência constitutiva do que somos” (cf. NHD, 415), ou seja, tal fundamento não é algo do nosso ser. Prossigamos com o autor:

A religação nos mostra que Deus não é uma coisa. O homem não está com Deus (como é o caso das coisas); o homem está em Deus. Zubiri aqui cita Atos 17:28: “Movemo-nos, vivemos e somos n’Ele”. O homem não precisa chegar a Deus; ele está vindo dEle. O problema de Deus é, portanto, o problema da religação.

A própria passagem, tão recorrente, sem que seja necessário aduzir nada mais, evidencia que há uma compreensão teísta do “estar em Deus”.

O conceito de ser torna-se problemático, e é aqui que o panenteísmo faz um círculo completo para Zubiri: Como Deus está além do ser, precisamos de um conceito diferente do que é um ser. A doutrina da creatio ex nihilo, combinada com a idéia aristotélica de substância, poderia levar ao resultado indesejável do panteísmo. Qualquer coisa que "é" é qualquer coisa que vem de Deus. Como o status de Deus agora é um problema metafísico, o mundo também se torna problemático ao mesmo tempo. Qual é a resposta? Panenteísmo.

E para buscar provar o seu ponto, o autor cita Zubiri: “A existência religada é uma "visão" de Deus no mundo e o mundo em Deus” (NHD, 431). 

Na realidade, é o autor que se enreda no seu círculo: ele postulou que “panteísmo” era x, sem formalizar adequadamente o conceito, e este x é suficientemente vago ou ambíguo para abrigar coisas variadas, incluindo a religação zubiriana. A questão que deveria ser formulada, a partir de uma compreensão adequada do panenteísmo, de um conceito rigorosamente distinto das possibilidades expressivas do teísmo clássico e do monoteísmo revelado, é: este “em” da religação é uma realidade medial que é simultaneamente a realidade de Deus e a realidade do homem e do mundo? Considerando todo o desenvolvimento da filosofia de Zubiri: o “poder do real” é a Realidade Divina Absolutamente Absoluta e é também a realidade humana relativamente absoluta?

A propósito do ensaio O Ser Sobrenatural: Deus e a deificação na teologia paulina, o autor nos diz:

Mesmo através do objetivo principal da deificação ser o homem, toda a criação material não pode ser completamente excluída desse processo e, de certa forma, é afetada por ele. Dessa maneira, o panenteísmo de Zubiri fundamenta sua interpretação filosófica da doutrina cristã e católica romana. Assim, em "Deus e Deificação", temos uma teologia neoplatônica que é fortemente imanentista e, na opinião deste escritor, até panenteísta. Deus é visto como amor efusivo e a Trindade é Sua vida como emanações ou "efusões" de seu amor. Fora da Trindade, o amor de Deus emana ou derruba de duas maneiras. Naturalmente, na criação, através da efusão ou emanação de uma hierarquia de seres que permanecem ontologicamente ligados à realidade transcendente de Deus. Sobrenaturalmente, “deificando” toda a sua criação por uma encarnação pessoal em Cristo e santificação pela graça para a humanidade. Deificação é uma maneira de a criação retornar à vida íntima de Deus.

Ora, Zubiri certamente é influenciado pelo neoplatonismo cristão do Pseudo-Dionísio neste texto. Eu, particularmente, considero que o Pseudo-Dionísio tem muitas ambiguidades, que podem soar de acordo com o panenteísmo neoplatônico de Plotino ou de Proclo. Mas Zubiri, como de outra parte S. Tomás e a tradição oriental, tomam o Dionísio como ortodoxo, de tal modo que as concepções de “emanação” e de “ser”, entre outras (toda a angelologia dionisiana, por exemplo), do autor neoplatônico, puderam servir aos dois autores católicos, sem que ambos caíssem em panenteísmo. Aliás, o texto teológico de Zubiri em NHD é muito claro ao ensinar os critérios que distinguem a criação teísta da emanação panenteísta:

Salta aos olhos uma diferença essencial com o amor como princípio da vida intradivina. Ali o amor comunica sua idêntica natureza a cada uma das três pessoas. Aqui [na criação] não se trata disso; seria um panteísmo. Os Padres o combateram energicamente em face do gnosticismo e do neoplatonismo de Plotino. Nesse amor de caráter pessoal que é a ágape, sua nota característica é a liberalidade. Mas, enquanto se trata de sua própria natureza divina essa liberalidade significa simplesmente autodoação natural, aqui significa a liberdade como que, ademais, se compraz em produzir outras coisas, outras naturezas.

Em segundo lugar, essa produção é essencialmente diferente, apesar de emergir da mesma raiz, de certo modo, em que está ancorada a expansão intrapessoal do ser divino. Enquanto em Deus mesmo essas processões formais existem por geração e por aspiração, aqui se trata de uma produção transcendente: é a posição não só de outros, como acontece ad intra, mas, ademais, de outras coisas. Contra toda possível forma de emanatismo, o Novo Testamento e os Padres gregos insistem tematicamente nesse caráter transcendente do ato criador em face das processões imanentes que produzem as pessoas divinas (NHD, 484).

Deus só comunica sua natureza ou essência ou só comunica o seu ser ou realidade integral (o ser e a essência em Deus se identificam) nas processões intra-divinas. As criaturas possuem outras naturezas ou outras essências, delimitadas ou criadas, possuem outro ser ou realidade que o Ser Divino, precisamente porque não recebem sua natureza divina enquanto são criaturas (embora pela Graça o homem possa participar da natureza divina e o cosmos possa ser glorificado):

A deificação não é propriamente falando, criação. Na criação, produzem-se coisas diferentes de Deus; na deificação, Deus se dá pessoalmente. [...] Na Trindade, Deus vive; na criação, produz coisas; na deificação, as eleva para associá-las à sua vida pessoal (NHD, 493).

Poderíamos dizer que uma nota essencial do panenteísmo quando ele é religioso, é a inexistência da diferença entre criação e deificação: nesses sistemas panenteístas religiosos, a divinização do homem não é uma potência da Graça Sobrenatural, mas de uma “graça intrínseca” (sic), a de já ser, no fundo, a divindade, devendo apenas ser realizado o esforço ascético e dialético para se obter a “gnose”.

A propósito de El hombre y Dios, o autor considera que o poder do real zubiriano “está fundamentado na própria estrutura da realidade, distinta das coisas reais, mas que constitui as coisas como tais. Essa realidade é Deus”.

Ora, Zubiri não diz isto, mas fala da “estrutura do poder do real” (ZUBIRI, Xavier. El hombre y Dios. 6ª edição. Madrid: Alianza, Fundación Xavier Zubiri, 1998, p. 308).

O poder do real não é nada mais que a “formalidade de realidade”, aquilo que Zubiri denomina “de suyo”: o objeto da inteligência é algo “de seu”, algo “que se pertence” e não à inteligência, algo que está na intelecção “desde si mesmo”. É a “realidade” sob o aspecto da “dominância” que o real exerce na vida humana (cf. HD, p. 28; p. 88). O poder do real é um "mais" nas coisas reais: ele é a realidade das coisas reais (o ser dos entes, em termos tomistas), e não está fundado na "própria estrutura da realidade" (da qual ele é um “momento”), como diz o autor, mas no Fundamento Divino da realidade, distinto dele.

Segue dizendo o autor:

Vemos, então, que, para provar a existência de Deus, Zubiri recorre a uma visão panentística de Deus, onde Ele fundamenta toda a realidade pelo elo ontológico da religação.

O fundamento de toda a realidade é para Zubiri o poder do real. Esse poder vem da presença formal e constitutiva de Deus em todas as coisas reais. Não é o poder de Deus, mas é um veículo dele. Essa estrutura ontológica do poder do real é outro veículo de Deus no panenteísmo de Zubiri: Certamente, o poder do real não é formalmente o poder de Deus, assim como uma coisa real não é formalmente Deus. Mas o poder do real "transporta" o poder de Deus, transporta Deus como poder: as coisas reais são, por essa razão, o "assento" de Deus como poder. Na medida em que é fundada em Deus, o poder do real é "veículo" e "assento".

Ora, numa visão panenteísta, o poder do real teria de ser a própria essência divina no fundo das coisas, e não um efeito da presença divina nas coisas. Como já dito, o poder do real não é o “fundamento de toda a realidade”, mas é a própria "realidade" das coisas reais; é a esta realidade ou a este poder que o homem está religado em primeira linha, para poder se elevar à constatação da religação a Deus, Fundamento da realidade. O fundo das coisas reais é “sua realidade’, é “o poder do real”, e o Fundamento deste fundo é Deus. Vejamos o que diz Zubiri:

Efetivamente, o fundo das coisas não é uma physis ou uma natura nem naturata nem naturans. É justamente sua realidade: o caráter de realidade. E na medida em que Deus está constituindo in acto exercito e em todo instante esse caráter de realidade por sua transcendência nas coisas, Deus é algo que está presente no fundo de todas elas de uma maneira contínua, constante e constitutiva [constituinte da realidade da coisa, é o sentido] (HD, pp. 312-313).

O autor assim resume os pilares do “panenteísmo zubiriano” (sic):

  1. Deus está presente em todas as coisas e todas as coisas estão em Deus; e Deus fundamenta sua realidade pelo poder do real.
  2. As coisas são um assento da presença imanente de Deus e isso lhes dá a "deidade".
  3. Finalmente, o homem acessa essa realidade pelo dispositivo fenomenológico da religação.

Em resposta:

  1. As coisas estão "em Deus" enquanto fundadas por Ele, e não enquanto têm o seu Próprio Ser, Essência ou Realidade (o que é essencial ao panenteísmo retamente compreendido).
  2. A "deidade" ou poder do real não é a essência divina, mas a realidade criada, em termos teológicos.
  3. O sentido da religação já foi bem determinado: vínculo metafísico com o poder do real ou a realidade das coisas reais, que a busca racional descobre como fundado em Deus, descobrindo assim também nossa religação a Deus.

Acrescenta o autor o seguinte:

O panenteísmo de Zubiri é reforçado pela universalização das declarações com relação às coisas para o mundo. As coisas na realidade têm o atributo da respectividade, e a unidade da respectividade é o mundo. Portanto, qualquer coisa que possa ser atribuída à relação Deus-coisas pode ser dita também à relação Deus-mundo.

O que ele está a dizer é que, como as coisas consideradas individualmente estão “religadas” e assim, “em Deus”, o mundo inteiro estaria “em Deus”, no sentido do peculiar panenteísmo defendido pelo autor. Mas na realidade isto apenas significa que todo o mundo é religado a Deus.

O mundo é a “respectividade do poder do real enquanto real”. Deus funda a mundanidade do cosmos (que em Zubiri é “a respectividade das coisas reais enquanto tais coisas reais”, enquanto têm essências ou conteúdos determinados, e não enquanto simplesmente reais). Dizer que Deus funda o poder do real ou a realidade das coisas reais e das pessoas é o mesmo que dizer que ele funda o mundo. O “mundo” tem o mesmo status metafísico do poder do real: é o veículo da presença de Deus no cosmos. Para que houvesse panenteísmo, o mundo teria de ser a própria essência ou realidade divina.

Zubiri critica o bramanismo justamente naquilo que constitui o fulcro do panenteísmo corretamente caracterizado:

A tese do panteísmo te muitas formas na história. [...] A primeira, a mais sutil, a mais próxima à verdade [...] é o panteísmo brahmânico que entende à última hora que tudo é Deus; que esta realidade radical, necessariamente existente, é a própria totalidade do mundo, mas não por razão “do que” são as coisas do mundo, senão pura e simplesmente no sentido de que todas elas têm uma só subsistência, a subsistência divina. O que para o europeu se lhe faz duro de interpretar, a saber: que Jesus Cristo seja Deus apensar de ter natureza humana, isto é, que seja Deus nada mais que por razão subsistencial, para o brâhmane não só não é ininteligível, senão que é o próprio do universo inteiro; nenhuma de suas coisas tem natureza divina, mas todas elas não têm mais que uma subsistência, que é a divina. E digo que isto é o mais próximo à verdade. Aí está o caso de Cristo. E desde logo é o ABC da teologia que isso poderia ter sido o caso do universo inteiro, e não por razão de uma só pessoa, senão das três ao mesmo tempo (ZUBIRI, Acerca del mundo [1960]. Alianza; Fundación Xavier Zubiri: Madrid, 2010, p. 217).

Outras palavras de Zubiri sobre o Ato criador divino, no escrito que recolhe alguns cursos teológicos que ele deu na Universidade Gregoriana de Roma na década de 70: “Assim como nas processões trinitárias se constitui a essência infinita de Deus, assim também na processão criadora se constitui a essência finita das coisas. Em definitivo, a essência divina não é aquilo que são as coisas” (ZUBIRI, El problema teologal del hombre: Cristianismo. 1ª reimpressão Alianza; Fundación Xavier Zubiri: Madrid, 1999, p. 217).

Por fim, trago aqui o testemunho do Dr. Jesús Sáez Cruz, que provavelmente escreveu a obra mais substancial e mais fundamentada sobre a relação entre Deus e o mundo em Zubiri: SÁEZ CRUZ. La accesibilidad de Dios: Su mundanidade y transcendencia em X. Zubiri. Salamanca: Universidad Pontificia Salamanca, 1995 (Bibliotheca Salmanticensis, Estudios 174). Vejamos o que ele diz:

não é preciso acudir a inspirações de tendências pantenteístas, para explicar a filosofia de Zubiri, quando afirma que as coisas e o mundo estão em Deus e nisto consiste a constituição formal do real por Deus (p. 278, nota 7).

Creio que este “estar em Deus” [do mundo] é muito distinto de toda concepção panenteísta. O “em” aqui é uma categoria de atualização [presença desde si mesmo, não identificação] referida tanto a Deus como ao mundo (e às coisas): Deus “em” as coisas e as coisas “em” Deus (p. 233).

quero assinalar aqui que o estar de Deus “em” a coisa e o estar da coisa “em” Deus são dois modos de enunciar a mesma ação fundamentante [de Deus] desde distintas atualizações [Deus está no fundo das coisas fazendo-as reais e as coisas assim estão em Deus como em seu inseparável Fundamento]. Não é isto panenteísmo, a meu parecer, nem tem nada a ver historicamente com as doutrinas autodeclaradas panenteístas [nas quais Deus não é o Fundamento da realidade das coisas, mas a realidade das coisas] (p. 302).

Zubiri supera o deísmo de um Deus estranho “fora” do mundo ou “sobre” o mundo, para encontrar um Deus cuja nua realidade, força e poder absolutos fundamentam o mundo desde dentro de sua própria realidade. [...] Esta é a transcendência de Deus “em” as coisas. E esta é também a presença mundana de a “outra realidade” que não é “o totalmente outro”, por ser transcendência mundanal acessível na realidade que não é Ele. E, sem cair em sutis panenteísmos, mas ancorando suas raízes na tradição do pensamento grego dos Padres da Igreja (p. 308). 

A doutrina chamada “perenialismo” também possui uma metafísica panenteísta. Fritchof Shuon, em sua Unidade Transcendente das Religiões, afirma o seguinte (negritos meus):

A ideia de realização metafísica [significa a] realização mediante a qual o homem toma consciência do que em realidade jamais cessou de ser, a saber, a identidade essencial do homem com o Princípio divino que é o único real. Por sua parte, o exoterismo está obrigado a manter a distinção entre o Senhor e o servidor, abstração feita de que os profanos afetam não ver, na ideia metafísica da identidade essencial, mais que panteísmo...

O que ele chama de “exoterismo” é a metafísica teísta da criação ex nihilo. A “distinção entre o Senhor e o servidor” é a distinção Criador-criatura, Ser Absoluto-ser participado. E efetivamente esta doutrina perenialista não é panteísmo, porque o panenteísmo não é panteísmo. O resto é retórica propagandística, e não argumento intelectual.

Rigorosamente falando, o panenteísmo é uma crença, uma ficção filosófico-teológica, que parte da instalação no Absoluto e procura entender a criação “desde dentro” da Divindade; ora, daí não se tem como sair realmente. É claro que se pode construir, a partir da ideia do Absoluto, um discurso super-lógico e um monismo super-sofisticado em comparação com os gnosticismos dualistas e os panteísmos toscos, mas toda esta sofisticação é, repito, uma crença.

A partir dos argumentos legítimos para se buscar intelectualmente a existência divina, que são os argumentos quia, podemos constatar a existência do Ser Pleno (cf. S.Th. I, q2, a2), mas não podemos jamais constatar nem pressupor a identidade entre o nosso ser e este Ser Pleno. E a partir da Revelação da Trindade, como vimos, podemos confirmar a distinção real entre o Ser Absoluto e o ser criado e participado.

A modo de conclusão

O panenteísmo deve ser conceituado, portanto, como a cosmovisão em que Deus e o mundo são unidos por um “ser” intermédio que é como que uma hipóstase da divindade e que participa este seu ser divino ao mundo.

Não se trata aqui da identidade panteísta entre Deus e o mundo, já que o mundo e as almas, só são divinos pelo ápice. Nem se trata do gnosticismo dualista, porque o mundo é “bom” e não “mau”, ainda que possa ser “ilusório” ou “transitório”, mero caminho de regresso à unidade divina.

Não há, no panenteísmo, uma distinção entre a criação e a deificação, já que a criação já é a doação de tudo que é necessário para que as almas retornem à divindade originária, apenas restando o esforço ascético e dialético para aceder ao atman, ao nous divino, à “centelha divina” ou qualquer coisa semelhante.

Quaisquer que sejam as distinções categoriais entre os vários panenteísmos (compreensões particulares da emanação, do regresso, dos meios etc.), penso que se pode afirmar que a estrutura essencial do panenteísmo é esta aqui apresentada.

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Joathas Bello

é Licenciado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e mestre pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) em Filosofia, com a tese "Deus, experiência do homem, em Xavier Zubiri". Atualmente reside em Pamplona, Espanha, onde cursa, desde janeiro de 2006, o doutorado na Universidade de Navarra, com bolsa da CAPES (governo brasileiro), aprofundando no problema filosófico de Deus e das religiões em Zubiri.


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