Seria Aristóteles o pai do individualismo radical?

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Traduzido por Vitor Matias
07 de junho de 2022

Há uma história sobre H.L. Mencken[1] que foi muito repetida desde antes de sua morte. A história diz que Mencken respondeu a todas as cartas que recebeu no Baltimore Sun, incluindo as de leitores distantes que o conheciam apenas pela mídia. Ele assinou cada uma dessas cartas, onde se lia, com impecável lógica: “prezado senhor ou madame: talvez você esteja certo”. Por não ser a coisa mais óbvia do mundo, algo precisa ser dito sobre o recente ensaio de Kenneth Odom publicado no The Imaginative Conservative sobre Platão, Aristoteles e a filosofia em geral, para não dizer a filosofia perene em específico. Eu não acredito que ele esteja correto.

Odom propõe que Aristóteles tenha “aberto o caminho” para os hodiernos relativismo e individualismo radical.[2]

Tanto quanto posso dizer, a filosofia grega clássica é a fonte humana da Grande Tradição da “filosofia perene”.[3] Essa visão é amplamente aceita, mas me lembro de passagem que li recentemente esse tipo de referência em Karl Jaspers, como citado por Josef Pieper, e de um estudante de pós-graduação que sugeriu uma citação de Alasdair MacIntyre. Dando nome aos bois, a Grande Tradição começa com Sócrates, Platão e Aristóteles. É claro que continua através de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino, até o século XXI.

Tudo isso permitiu, ainda que diversamente, que os filósofos investigassem em primeiro lugar o mundo experienciado. Assim, é claro, a pergunta “o que é o homem?”[4] é um tema recorrente a todos esses gênios de primeira linha.

Nenhum deles [os proponentes da filosofia perene ou clássica] entende a “existência do homem”, seja metafísica ou moralmente, como “definida por suas relações” (ver, por exemplo, o livro VII da República de Platão). Isso é enfaticamente verdadeiro para Aristóteles, que vê o homem como substância; as relações são apenas acidentes, ainda que próprios dele (ver Metafísica [5], De Anima [6] e Categorias.[7]).

Nem Sócrates, nem Platão, nem Aristóteles consideram “a busca de uma vida ideal” como “o motivo da investigação filosófica”[8] (ver livro I da Metafísica[9] de Aristóteles). Portanto, Sócrates, Platão e Aristóteles não nos fornecem premissas que impliquem a virtude como “gozar de um bom relacionamento do homem com o mundo humano”.[10] E apesar da natureza aporética de seus diálogos, Platão trata a virtude como algo primeiramente referente ao homem e secundariamente a suas relações – Aristóteles o segue nisso.

De qualquer forma, não acho que seja necessário estabelecer distinções acadêmicas entre suas doutrinas. Sto. Tomás de Aquino mais tarde aprofundará esse insight, explicando que o ato decorre do ser de uma coisa – Agere sequitur esse rerum.[11]

Aristóteles entende a virtude como a excelência per se (arête) do homem que age de acordo com sua natureza como animal racional. Além disso, embora a virtude humana seja sempre racional, o homem, para Aristóteles, certamente não “pensa no caminho da virtude”; antes, ações segundo a razão habituam a ação humana à virtude.

É verdade que a justiça é social; é sempre em relação ao outro, mas continua sendo uma qualidade do agente de acordo com sua natureza, mesmo sendo relacional. Atos justos, em outras palavras, são voltados para dentro e para fora, e cada movimento afeta uma mudança. A justiça reside principal e essencialmente na alma.

Na Ética, especialmente no livro I, capítulo 7[12], Aristóteles mostra os princípios subjacentes à sua teoria da justiça. A natureza de uma coisa, portanto do homem, é o critério de seu bem e de suas boas ações. No final do mesmo livro, especialmente no tratamento da amizade, e à medida que esta seção continua na Política, encontramos outras exposições. É porque a natureza humana é social que a amizade é uma virtude e, assim, da mesma forma que a polis é um contexto natural da virtude, que permite e realmente promove a prosperidade moral e intelectual.

No que se refere aos filósofos modernos, o individualismo radical (estranho aos antigos) surge precisamente da rejeição a Aristóteles. O ímpeto da consciente e deliberada rebelião dos modernos contra os antigos. Maquiavel, Francis Bacon, Descartes, Hobbes, Locke e outros consideram os antigos estéreis[13]; todos se revoltam contra a tradição clássica. É precisamente por isso que a modernidade é impregnada ab ovo com individualismo radical anti-aristotélico (e anti-bíblico). Não é de forma alguma concordância ou desenvolvimento dos princípios de Aristóteles, mas apenas a negação deles, que trouxe, como diz Patrick Deneen, o liberalismo ao fracasso por causa de seu sucesso.

Apêndice.

Durante a tradução, vimos um comentário ao artigo que poderia muito bem servir de apêndice. Então, traduzimos e postamos ele aqui:

"Dr. Rebard, sou um lápis muito menos apontado do que o senhor, mas fui tomado por uma necessidade visceral de responder ao escrito de Kenneth Odom sobre Aristóteles. De imediato, pareceu-me apenas mais uma rejeição, porém mais sutil, dos princípios aristotélicos. O individualismo radical é um fenômeno claramente moderno e parece que as afirmações de Odom devem ter sido necessariamente interpretações anacrônicas de Aristóteles, como quando ele afirma: “É o pensamento de Aristóteles que fundamenta muitas crenças modernas sobre a virtude. Etc ...”. O pensamento de Aristóteles não é a fonte do pensamento moderno sobre a virtude, o que deveria ser óbvio para quem considera seriamente as questões importantes.

Talvez a principal causa do erro nas afirmações de Odom e nas asserções semelhantes de quase todos os pensadores modernos, decorra de teorias evolucionárias e gnósticas (“Um homem, então, pensa e raciocina seu caminho para a virtude”. Odom). Há uma inversão flagrante da ordem do ser e do fazer que mudou o foco da verdade e da realidade objetivas para a auto-referência subjetiva. Parece-me que apenas aquele que está cortando o galho em que está sentado pode dizer sobre Aristóteles: “De uma perspectiva moderna, o raciocínio de Aristóteles sobre a virtude, com ênfase no relacionamento do homem com sua própria alma e na capacidade do homem de aperfeiçoar sua própria virtude, abriu um caminho para o relativismo e o individualismo radical “. Há muito aqui para resolver e remediar, mas Dr. Rebard, sou grato pelo breve corretivo que o senhor deu! Se uma frase captura a essência dos erros de Odom, é “Agere sequitur esse rerum”. No entanto, suspeito que não seja tão simples, a modernidade é complexa e depende de complicar as coisas além do senso comum.

Tal é o desvio da filosofia perene e a revolta contra a natureza e o intelecto do homem. O individualismo radical e o subjetivismo não podem ser rastreados até Aristóteles, cujo realismo moderado é a base substancial, não apenas da ética adequadamente entendida, mas de nossa certeza de que a verdade é a “convergência da mente e da realidade”.

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