O Verbo e o Símbolo

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Traduzido por Bruno Fontana
04 de outubro de 2023

Nós já tivemos a ocasião de falar da importância da forma simbólica na transmissão dos ensinamentos doutrinais de ordem tradicional. Retornamos a esse assunto para trazer certos esclarecimentos complementares e mostrar ainda mais explicitamente os diferentes pontos de vista sob os quais ele pode ser considerado.


Primeiro, o simbolismo nos aparece como particularmente adaptado às exigências da natureza humana, que não é uma natureza puramente intelectual, mas que tem necessidade de uma base sensível para se elevar às esferas superiores.

É preciso tomar o composto humano tal qual ele é, um e múltiplo ao mesmo tempo em sua real complexidade; isso é o que facilmente se esquece, desde que Descartes pretendeu estabelecer entre a alma e o corpo uma separação radical e absoluta. Para uma inteligência pura, certamente, nenhuma forma exterior, nenhuma expressão é exigida para compreender a verdade, nem mesmo para comunicar a outras inteligências aquilo que ela compreendeu, na medida em que isso é comunicável.

No fundo, toda expressão, toda formulação, qualquer que seja, é um símbolo do pensamento traduzido exteriormente; nesse sentido, a linguagem ela mesma não é outra coisa senão um simbolismo. Não deve haver aí oposição entre o emprego das palavras e o dos símbolos figurativos; esses dois modos de expressão são, antes, complementares um ao outro (e, inclusive, de fato eles podem se combinar, já que a escrita é originalmente ideográfica e às vezes mesmo, como na China, ela jamais perde esse caráter).

De maneira geral, a forma da linguagem é analítica, discursiva como a razão humana da qual ela é o instrumento próprio e da qual se segue ou cujo movimento reproduz o mais fielmente possível; o simbolismo propriamente dito, ao contrário, é essencialmente sintético, e por isso mesmo de certo modo intuitivo, o que o torna mais apto do que a linguagem para servir de ponto de apoio à intuição intelectual que está acima da razão, faculdade que demanda cuidado para não ser confundida com aquela intuição inferior à qual apelam vários filósofos contemporâneos. Por consequência, se, mais do que constatar uma diferença, quer-se falar de superioridade, a intuição intelectual estará, independentemente do que seja dito, do lado do simbolismo sintético, que abre possibilidades de concepção verdadeiramente ilimitadas, enquanto que a linguagem, com significações mais fixas e definidas, sempre coloca ao entendimento limites mais ou menos estreitos.


Que não se diga, portanto, que a forma simbólica só é boa para os leigos; verdadeiro é, antes, o contrário; ou, melhor ainda, ela é igualmente boa para todos, porque ajuda cada um a compreender mais ou menos completamente, mais ou menos profundamente a verdade que ela representa, de acordo com a medida de suas próprias possibilidades intelectuais. É assim que as verdades mais altas, que não são comunicáveis ou transmissíveis por qualquer outro meio, passam a sê-lo até certo ponto quando, de alguma maneira, incorporadas nos símbolos, que as ocultarão de muitos sem dúvida, mas que as manifestarão com todo seu brilho aos olhos daqueles que sabem enxergar.

Mas isso significa que a utilização do simbolismo é uma necessidade? Aqui, é preciso fazer uma distinção: em si e de maneira absoluta, nenhuma forma exterior é necessária; todas são igualmente contingentes e acidentais em relação àquilo que elas exprimem ou representam. É assim que, de acordo com o ensinamento dos Hindus, uma figura qualquer, por exemplo uma estátua simbolizando tal ou qual aspecto da Divindade, não deve ser considerada senão como um “suporte”, um ponto de apoio para a meditação; é, portanto, um “coadjuvante”, e nada a mais. Um texto védico faz a esse respeito uma comparação que esclarece perfeitamente o papel dos símbolos e das formas exteriores em geral: essas formas são como o cavalo que permite a um homem realizar uma viagem mais rapidamente e com muito menos dificuldade do que se ele tivesse de ir por conta própria. Sem dúvida, se esse homem não tivesse um cavalo à sua disposição, ele poderia, não obstante, chegar a seu destino, mas quão mais difícil não seria?! Se ele pode se servir de um cavalo, cometeria um grande erro ao recusá-lo sob o pretexto de que é mais digno não recorrer a nenhuma ajuda; não é precisamente assim que agem os detratores do simbolismo? E mesmo se a viagem é mais longa e penosa, ainda que não haja jamais uma impossibilidade absoluta de fazê-la a pé, pode haver, contudo, uma verdadeira impossibilidade prática de se chegar ao final. Este é o caso dos ritos e dos símbolos: eles não são necessários de uma necessidade absoluta, mas tem um certo tipo de necessidade de conveniência, quando se leva em conta as condições da natureza humana.


Porém, não é suficiente considerar o simbolismo só do lado humano como fizemos até aqui; convém, para penetrar todo seu escopo, abordá-lo igualmente do lado divino, por assim dizer. Se é possível constatar que o simbolismo tem seu fundamento na natureza mesma dos seres e das coisas, que ele está em perfeita conformidade com as leis dessa natureza, e que as leis naturais não são, em resumo, mais do que uma expressão e como que uma exteriorização da Vontade divina, isso não nos autorizaria afirmar que o simbolismo é de origem “não humana”, como dizem os Hindus, ou, em outras palavras, que seu princípio remonta a algo mais distante e mais alto do que a humanidade?

Não por acaso, o simbolismo faz lembrar as primeiras palavras do Evangelho de são João: “No início era o Verbo.” O Verbo, o Logos, é ao mesmo tempo Pensamento e Discurso: em si, Ele é o Intelecto divino, que é o “lugar das possibilidades”; em relação a nós, Ele se manifesta e se exprime pela Criação, onde se realizam na existência atual algumas dessas mesmas possibilidades que, enquanto essências, são conteúdos eternos existentes Nele. A Criação é a obra do Verbo; ela é também, e por isso mesmo, sua manifestação, sua afirmação exterior; e por isso o mundo é como uma linguagem divina para aqueles que a sabem compreender: Coeli enarrant gloriam Dei² (Salmos, XIX, 2). O filósofo Berkeley não estava errado quando dizia que o mundo é “a linguagem que o Espírito infinito fala aos espíritos finitos”; mas estava ao crer que essa linguagem é só um conjunto de signos arbitrários, quando na realidade não há nada de arbitrário nem mesmo na linguagem humana, toda significação devendo ter na origem seu fundamento em qualquer conveniência ou harmonia natural entre o signo e a coisa significada. Foi porque Adão recebeu de Deus o conhecimento da natureza de todos os seres viventes que ele lhes pôde dar os seus nomes (Genesis, II, 19-20); e todas as tradições antigas concordam ao dizer que o verdadeiro nome de um ser e sua essência não são senão uma e mesma coisa.

Se o Verbo é interiormente Pensamento e exteriormente Discurso, e se o mundo é o efeito do Discurso divino proferido na origem dos tempos, a natureza inteira pode ser tomada como um símbolo da realidade sobrenatural. Tudo o que é, sob qualquer faceta, tendo seu princípio no Intelecto divino, traduz ou representa este princípio à sua maneira e de acordo com sua ordem de existência; e, assim, de uma ordem à outra, todas as coisas se conectam e se correspondem para convergir na harmonia universal e total, que é como um reflexo da própria Unidade divina. Essa correspondência é o verdadeiro fundamento do simbolismo e é o motivo pelo qual as leis de um domínio inferior podem sempre ser tomadas para simbolizar as realidades de uma ordem superior, onde elas encontram sua razão profunda, que é ao mesmo tempo seu princípio e seu fim.

Assinalamos nessa ocasião o erro das modernas interpretações “naturalistas” das antigas doutrinas tradicionais, interpretações que pura e simplesmente invertem a hierarquia das relações entre diferentes ordens de realidades: por exemplo, os símbolos ou os mitos jamais tiveram como função representar o movimento dos astros, mas a verdade é que neles frequentemente se encontram figuras inspiradas naqueles e destinadas a exprimir analogicamente uma coisa completamente diferente, porque as leis desse movimento traduzem fisicamente os princípios metafísicos das quais elas dependem. O inferior pode simbolizar o superior, mas o inverso é impossível; além disso, se o símbolo estava mais próximo da ordem sensível do que aquele que ele representa, como poderia ele substituir a função para a qual ele é destinado? Na natureza, o sensível pode simbolizar o suprassensível; toda a ordem natural pode, por sua vez, ser um símbolo da ordem divina; e, além disso, considerando mais particularmente o homem, não seria legítimo dizer que ele também é um símbolo pelo fato mesmo de ter sido “criado à imagem e semelhança de Deus” (Genesis, I, 26-27)? Adicionemos ainda que a natureza só adquire sua significação completa quando vista como um meio para nos elevar ao conhecimento das verdades divinas, o que é precisamente o papel essencial que nós atribuímos ao simbolismo também³.


Essas considerações poderiam ser desenvolvidas quase que indefinidamente; mas nós preferimos deixar a cada um o cuidado de fazer esse desenvolvimento por um esforço de reflexão pessoal; como os símbolos dos quais elas falam, essas notas não devem ser senão um ponto de partida para a meditação. As palavras, aliás, só podem transmitir esse conhecimento de maneira imperfeita; contudo, existe ainda um aspecto da questão, e não menos importante, que nós tentaremos fazer compreender ou ao menos pressentir por uma breve indicação.

O Verbo divino se expressa na Criação, como nós dissemos, e ele é comparável, analogicamente, com as devidas proporções, ao pensamento expresso nas formas (nesse caso não é necessário distinguir a linguagem dos símbolos propriamente ditos) que o escondem e o manifestam ao mesmo tempo. A Revelação primordial, obra do Verbo, como a Criação, se incorpora, por assim dizer, ela também, nos símbolos que foram transmitidos de época para época desde as origens da humanidade; e esse processo é ainda análogo, em sua ordem, àquele da própria Criação. Assim, não é possível ver, nessa incorporação simbólica da tradição “não-humana”, um tipo de imagem antecipada, uma “antevisão” da Encarnação do Verbo? E isso também não nos permite perceber, em certa medida, a misteriosa correlação entre a Criação e a Encarnação, que é seu coroamento?

Nós terminaremos com uma última consideração relativa à importância do símbolo universal do Coração e mais particularmente à forma com que ele é revestido na tradição cristã, a do Sagrado-Coração. Se o simbolismo é, em sua essência, estritamente adequado ao plano divino, e se o Sagrado-Coração é o centro do ser, realmente e simbolicamente esse símbolo do Coração, em si mesmo ou em seus equivalentes, deve ocupar nas outras doutrinas, que provieram mais ou menos diretamente da tradição primordial, um lugar propriamente central; isso é o que tentaremos demonstrar em alguns dos estudos que se seguem.

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René Guénon

foi um intelectual esotérico francês. Escreveu sobre temas como crítica social, religiões comparadas, simbolismo e iniciação. Ele escreveu e publicou em francês, e seus trabalhos foram traduzidos para diversos idiomas. Ele é considerado fundador do perenialismo.


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