O Sacrifício - Andrei Tarkovsky

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Traduzido por Bruno Fontana
07 de junho de 2022

O antigo funcionário cedeu lugar ao empregado novato: Andrei Tarkovsky viajou à ilha de Fårö, na Suécia, – a mesma ilha em que Ingmar Bergman vive e faz a maior parte de suas gravações –, para fazer um filme, produzido pelo Instituo Sueco de Cinema, fotografado por Sven Nykvist, diretor de fotografia de Bergman, e estrelado por Erland Josephson, que atuou em vários filmes de Bergman. 

Há momentos em que O Sacrifício curiosamente lembra o estilo do diretor Sueco, e parece-me que isso tenha sido intencional: Tarkovsky, o turista, um exilado da Rússia, trabalhou com os materiais e os temas de Bergman, do mesmo modo que um pintor renascentista, no meio de suas viagens, podia parar brevemente para se aprofundar na escola de um mestre e depois seguir em frente.

Mas Tarkovsky é ele próprio um mestre. Junto a Bergman, é um dos cinco cineastas vivos que se dedicaram a tratar, por excelência, dos mais altos problemas da moralidade humana (os outros são Akira Kurosawa, Satyaijit e Robert Bresson). Além do que, ele é o maior diretor russo desde Sergei Eisenstein, apesar de se colocar fora da tradição soviética materialista, ousando mesmo afirmar-se espiritualista, “conduzido por uma Voz Interior” – nos dias atuais, admitir convicções espirituais demanda mais coragem de um artista do que negá-las. 

Quando Tarkovsky fez O Sacrifício, sabia estar gravemente doente. Hoje, perto da morte, ele se encontra internado em Paris, com um tumor no cérebro. O assunto escolhido como tema de seu último testemunho não é nada modesto. O filme fala de um homem que descobre, ou sonha com aviões bombardeiros que decolaram a fim de desencadear a Terceira Guerra Mundial. Para que sua família seja poupada, ele oferece a própria vida como um sacrifício. 

Não se trata de um filme fácil de assistir, sendo inclusive um pouco longo para ser visto em apenas uma sentada. No entanto, uma certa satisfação reluz em meio à sua complexidade: Tarkovsky evidentemente quis eliminar toda e qualquer forma entretenimento popularesco; em seu último trabalho, decidiu dizer exatamente o que queria, no exato estilo em que o quis, sem se preocupar com agradar o público. 

Ele usa várias tomadas longas e espaçadas – com longa duração e boa distância dos objetos –, estimulando a capacidade meditativa da audiência, de modo que nunca exista proximidade suficiente para gerar identificação com os personagens. Damos um passo para trás, assistimos a tudo e temos tempo de pensar a respeito do que vemos. O filme não pressupõe o nosso consentimento precipitando-se para a conclusão, pois entre os eventos há espaços amplos o bastante para que perguntemos a nós mesmos o que faríamos no lugar do protagonista. 

É seu aniversário. Cuidadosa e metodicamente ele planta uma árvore. 

Algumas pessoas dizem ser impossível plantar uma árvore sem pensar na finitude da própria vida, porque certamente as árvores continuarão lá por muito tempo depois de nossa morte. Enquanto ele a planta, o seu pequenino filho o observa e, em seguida, cambaleia sem ainda se dar conta do chão que lhe sustenta e do mundo do qual ele faz parte.

Algumas pessoas chegam para a festa de aniversário: a mulher do homem, suas filhas, alguns amigos e um entregador de cartas – que é aparentemente uma espécie de místico da ilha. De alguma maneira, é como se ele entregasse correspondências cósmicas, trazendo notícias de realidades profundas; e durante a festa, chega a notícia de que a guerra havia irrompido. 

Tudo isso é contado lentamente, em cenas elegantemente compostas, entremeadas por silêncios. Quando os personagens se põe a falar, raramente ficam jogando conversa fora; o protagonista, por exemplo, profere um longo monólogo a respeito do sentido de nossas vidas e das maneiras pelas quais desperdiçamos negligentemente o futuro de nossos filhos. Quando decide fazer um sacrifício, o homem não divaga ou reclama seus desejos aos céus, ele elege uma de suas empregadas, a mais humilde e trabalhadora, como uma espécie de santa que pudesse, ela mesma, alterar o curso dos fatos. 

O Sacrifício não é o tipo de filme que a maior parte das pessoas escolheria deliberadamente assistir, mas àquelas que sejam suficientemente ousadas para tanto ele pode ser recompensador. Tudo depende de sua capacidade de simpatizar com o homem do filme, pois Tarkovsky se recusa a buscar a atenção do público com truques narrativos baratos. Dito de outro modo, se alguns filmes buscam produzir sua mágica na cabeça da audiência, este permanece resoluto na tela, lidando com as questões que realmente importam enquanto nos deixa inteiramente livres para aceitar ou recusar a participação na experiência proposta. 

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Roger Ebert Review

foi um crítico de cinema e roteirista norte-americano. Era conhecido por sua coluna na qual fazia críticas e análises de filmes e por dois programas de televisão, Sneak Previews e Siskel & Ebert at the Movies, que ele apresentou ao longo de 23 anos juntamente com Gene Siskel.


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