O Retorno da Religião

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Traduzido por Tony Pedroza
05 de junho de 2022

Confrontado com o espetáculo das crueldades perpetradas em nome da fé, Voltaire gritou a famosa frase 'Ecrasez l'infame!'. Dezenas de pensadores iluministas seguiram-no declarando a religião organizada como o inimigo da humanidade, a força que distingue o crente do infiel e que tanto excita como autoriza o assassinato. Richard Dawkins é o exemplo vivo mais influente desta tradição e sua mensagem, ecoada por Dan Dennett, Sam Harris e Christopher Hitchens, soa tão alto e estridente na mídia hoje como a mensagem de Lutero nas igrejas reformadas da Alemanha. A violência dos discursos proferidos por esses ateus evangélicos é realmente notável. Afinal de contas, o Iluminismo aconteceu há três séculos, os argumentos de Hume, Kant e Voltaire foram absorvidos por cada pessoa educada. O que mais deve ser dito? E se deve ser dito, por que dizê-lo de modo tão estridente? Certamente, aqueles que se opõem à religião em nome da gentileza não tem a obrigação de ser gentis, mesmo com — especialmente — seus inimigos?

Há duas razões pelas quais as pessoas começam a gritar com os seus adversários: uma é que elas acham que o adversário é tão forte que todas as armas devem ser usadas contra eles; a outra é que elas pensam que a sua causa é tão fraca que ela deve ser fortalecida pelo barulho. Ambas podem ser observadas nos ateus evangélicos. Eles acreditam a sério que a religião é um perigo, levando as pessoas a excessos de entusiasmo que, pelo fato de serem inspirados por crenças irracionais, não podem ser combatidos por meio de argumentos racionais. Nós tivemos muitas prova disso entre os islâmicos; mas essa prova, os ateus nos dizem, é apenas a mais recente em uma longa história de massacres e torturas, que — na perspectiva científica — pode razoavelmente ser chamada de pré-história da humanidade. O Iluminismo prometeu inaugurar uma outra era em que a razão seria soberana, fornecendo um instrumento de paz que todos poderiam empregar.

Entretanto, aos olhos dos evangélicos ateus essa promessa não se cumpriu; a seus olhos, nem o judaísmo e nem o cristianismo foram absorvidos pelo iluminismo ainda que fosse inspirado neles de certa forma. Para eles, todas as crenças permaneceram na condição do Islã moderno: enraizadas em dogmas que não podem ser seguramente questionados. E crendo nisso, eles agem diante de uma massa de vitupérios contra o crente comum, inclusos aqueles que se tornaram religiosos em busca de um instrumento de paz e que consideram sua fé como uma exortação de amor ao próximo, mesmo que o próximo seja seu belicoso adversário.

Ao mesmo tempo, os ateus reagiram ao enfraquecimento de seu caso. Dawkins e Hitchens estão convencidos de que a visão científica do mundo foi inteiramente prejudicada pelas premissas da religião e que só a ignorância pode explicar a persistência da fé. Mas o que exatamente a ciência moderna nos diz e exatamente onde ela conflita com as premissas da crença religiosa? De acordo com Dawkins (e Hitchens segue-o nesta), os seres humanos são “máquinas de sobrevivência” a serviço de seus genes. Somos por assim dizer subprodutos de um processo que é totalmente indiferente ao nosso bem-estar, máquinas desenvolvidas pelo nosso material genético a fim de promover sua meta reprodutiva. Os genes em si são moléculas complexas colocadas juntas de acordo com as leis da química a partir de material disponibilizado na sopa primordial que uma vez ferveu na superfície do nosso planeta. Como isso aconteceu ainda não é conhecido: talvez descargas elétricas possibilitaram que átomos de nitrogênio, carbono, hidrogênio e oxigênio se associassem em cadeias adequadas até que finalmente um deles atingisse essa característica marcante de codificar as instruções para a sua própria reprodução. A ciência pode um dia se tornar capaz de responder à questão de como isso ocorreu. Mas é ciência e não religião que responderá.

Quanto à existência de um planeta no qual os elementos são similares aos observados no planeta Terra, tal coisa também deverá ser explicada pela ciência — embora pela astrofísica em vez da biologia. A existência da Terra faz parte de um grande processo de desdobramento que pode ou não ter começado com um Big Bang e que contém muitos mistérios que os físicos exploraram com crescente espanto. A astrofísica levantou mais perguntas do que respondeu. Mas essas são questões científicas que serão resolvidas pela descoberta das leis do movimento que governam as mudanças observáveis ​​em todos os níveis do mundo físico; da galáxia à supernova, do buraco negro ao quark. Existe um mistério que nos confronta quando olhamos para a Via Láctea sabendo que as miríades de estrelas responsáveis ​​por aquela mancha de luz são apenas uma única galáxia, a mesma que nos contém e que além de suas fronteiras existe uma miríade de outras galáxias que giram devagar no espaço, algumas morrendo, algumas emergindo, todas sempre inacessíveis para nós — e este mistério não exige uma resposta religiosa. Este é um mistério que resulta de nosso conhecimento parcial e que só pode ser resolvido através de um maior conhecimento do mesmo tipo — o conhecimento que podemos chamar de ciência.

Somente a ignorância poderia nos levar a negar esse quadro geral e os ateus evangélicos assumem que a religião nega esse quadro e, portanto, acreditam que ela propagará a ignorância ou a prevenção do conhecimento. No entanto eu não conheço uma pessoa religiosa entre os meus amigos e conhecidos que negam esse quadro ou que considerem ele como uma dificuldade para sua fé. Dawkins escreve como se a teoria do gene egoísta retirasse de uma vez por todas a ideia de um Deus criador — não precisamos dessa hipótese para explicar como chegamos a ser. Em certo sentido isso é verdade. Mas sobre o próprio gene: como ele veio a ser? E sobre a sopa primordial? Todas essas perguntas são respondidas, é claro, indo um passo mais abaixo na cadeia de causalidade. Mas a cada passo encontramos um mundo de qualidade singular: precisamente é um mundo que por si só produzirá seres conscientes capazes de olhar com a razão buscando o sentido das coisas e não somente por uma causa. A coisa surpreendente sobre o nosso universo é que esse contém a consciência, o julgamento, o conhecimento do certo e errado, e todas as outras coisas que fazem a condição humana tão singular. O universo não se torna menos surpreendente pela hipótese de que esse estado de coisas surgiu ao longo do tempo a partir de outras condições. Se for verdade, somente nos mostra o quão surpreendentes tais condições eram. O gene e a sopa não podem ser menos surpreendentes que o seu produto.

Além disso, estas coisas deixariam de nos surpreender — ou melhor, eles cairiam no âmbito do compreensível — se pudéssemos encontrar uma maneira de eliminá-las da contingência. É isso que a religião promete: não um propósito necessariamente, mas algo que remova o paradoxo de um mundo completamente regido por leis, aberto à consciência, que é, no entanto, sem explicação: é apenas assim, por nenhuma razão. Os ateus evangélicos são subliminarmente conscientes de que a sua abdicação em face da ciência não faz o universo mais inteligível, nem fornece uma resposta alternativa para nossas indagações metafísicas. Isso leva as perguntas a uma parada. E a pessoa religiosa vai sentir essa parada prematura: a razão tem mais questões a se fazer, e talvez mais respostas para obter as quais os ateístas vão nos permitir. Então quem, nesta competição subliminar, é o verdadeiramente razoável? Os ateus levantam a questão a seu próprio favor assumindo que a ciência tem todas as respostas. Mas a ciência pode ter todas as respostas apenas se ela tiver todas as perguntas, e esse pressuposto é falso. Há perguntas dirigidas a razão que não são dirigidas à ciência, uma vez que elas não estão pedindo uma explicação causal.

A consciência é mais familiar para nós do que qualquer outra característica do nosso mundo uma vez que é a via pela qual qualquer coisa se torna familiar. Mas isso é o que faz a consciência ser tão difícil de identificar. Procure-a onde que quer que seja e encontrará apenas seus objetos — um rosto, um sonho, uma lembrança, uma cor, uma dor, uma melodia, um problema, mas em nenhum lugar desses a consciência incide sobre elas. Tentar compreendê-la é como tentar observar a sua própria observação, como se estivesse a olhar com seus próprios olhos em seus próprios olhos sem usar um espelho. Não surpreende, portanto, que o pensar a consciência dê origem a preocupações metafísicas peculiares que tentem aliviar com imagens da alma a mente, o ego, o “sujeito de consciência”, a entidade interior que pensa, vê e sente e que é o verdadeiro eu interior. Mas essas “soluções” tradicionais simplesmente duplicam o problema. Não lançamos nenhuma luz sobre a consciência de um ser humano simplesmente redescrevendo-a como a consciência de algum homúnculo interno — seja ela uma alma, a mente ou a si mesmo. Pelo contrário, colocando o homúnculo em alguma realidade privada, inacessível e possivelmente imaterial, nós apenas agravamos o mistério.

É este mistério que traz as pessoas de volta à religião. Elas podem não ter uma concepção clara da ciência, nenhuma aptidão teológica, e nenhum conhecimento dos argumentos, ao longo dos séculos, que convenceu as pessoas que a fabricação da contingência deve ser apoiada por um “ser necessário”. As sutilezas das escolas medievais, na sua maior parte, fazem pouco contato com o pensamento dos crentes de hoje. As pessoas modernas são atraídas para a religião pela consciência da consciência, por sua consciência de uma luz que brilha no centro de seu ser. E, como Kant mostrou de forma brilhante, a pessoa que conhece a si mesmo, que se refere a si mesmo como “eu”, está inevitavelmente preso na liberdade. Ele se eleva acima do vento da contingência que sopra através do mundo natural, erguida por leis necessárias da razão. O 'eu' define o ponto de partida de todo o raciocínio prático e contém uma sugestão da coisa que distingue as pessoas do resto da natureza, ou seja, sua liberdade. Existe um sentimento em que os animais também são livres: eles fazem escolhas, fazem as coisas tanto livremente quanto por indução. Mas os animais não são responsáveis​​por aquilo que fazem. Eles não são convidados a justificar sua conduta, nem são persuadidos ou dissuadidos pelo diálogo com outros. Todos esses objetivos, como a justiça, a comunidade e o amor, tornam a vida humana em algo de valor intrínseco, têm sua origem na responsabilidade mútua de pessoas, que respondem uns aos outros de 'Eu' para 'Eu'. Não surpreende, portanto, que as pessoas estejam convencidas de que elas entendem o mundo e seu significado quando observam de uma forma exterior um outro “eu” — o “eu” de Deus, no qual todos nós estamos julgados e a partir do qual amor e a liberdade fluem.

Esse pensamento pode ser visto em versos, como no Veni Creator Spiritus da Igreja Católica, nas palavras rapsódicas de Krishna no Bhagavad Gita e nos grande Salmos, que são a glória da Bíblia hebraica. Mas para a maioria das pessoas está simplesmente ali: uma densa pepita de significado no centro de suas vidas que pesa muito quando não encontram nenhuma maneira de expressá-lo [esse pensamento] em formas comuns. As pessoas continuam a olhar para os lugares onde eles podem se sustentar, por assim dizer, na janela do nosso mundo empírico, olhando para fora, para o transcendental — os lugares onde há uma brisa que provém da esfera que paira sobre eles. Não muito tempo atrás, Deus estava na residência. Você poderia abrir uma porta e descobri-lo e juntar-se àqueles que cantavam e rezavam em sua presença. Agora ele, como nós, não tem domicílio fixo. Mas, a partir dessa experiência, um novo tipo de consciência religiosa está nascendo: o movimento do olho interior para o transcendental e uma invocação constante do “não sabemos o quê”.

A desconfiança da religião organizada, portanto, caminha lado a lado com um lamento pela perda dela. Estamos angustiados com os ateus evangélicos, que estão carimbando no caixão em que imaginam estar o cadáver de Deus e tentando nos dizer para enterrá-lo rapidamente. Estes personagens são violentos e possuem um ar desordenado: é muito óbvio que algo está faltando em suas vidas, algo que traria ordem e perfeição no lugar de um desgosto aleatório. E ainda estamos sem saber o que responder a eles. Em nenhum lugar do nosso mundo está a porta a qual podemos abrir de modo a ficarmos de pé novamente diante da exalação de Deus.

No entanto, os seres humanos têm uma necessidade inata de conceituar o seu mundo em termos do transcendental e viver na distinção entre o sagrado e o profano. Esta necessidade está enraizada na consciência de si mesmo e nas experiências que nos fazem lembrar do nosso destino comum e importante como as personagens de Kant no “Reino dos Fins”. Essas experiências são as raízes do ser humano em oposição à sociedade meramente animal e é preciso afirmá-las, ter o autoconhecimento para possuí-las, para assim ficarmos à vontade com nosso tipo. Religiões satisfazem esta necessidade. Elas fornecem o apoio social e a infraestrutura teológica que manterá os conceitos do transcendental e do sagrado no lugar. A insegurança e a desordem das sociedades ocidentais provêm da tensão em que as pessoas são mantidas não permitindo anexar a sua consciência interior do transcendental para as formas exteriores de rituais religiosos. As pessoas se afastaram da religião organizada da mesma forma que também se afastaram de todas as outras coisas organizadas. Os ateístas que dançam sobre o caixão das antigas religiões nunca vão conseguir convencer as pessoas que ali dentro do caixão tem algo morto. Deus fugiu, mas não está morto. Ele está ganhando tempo, esperando que nós construamos um quarto para ele. Pelo menos é assim que eu observo essa crescente obsessão com a religião e a nostalgia que perdemos quando as congregações fecharam suas Bíblias e seus hinários, deixando-os em pedaços, e foram silenciosos para casa.

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Roger Scruton

foi um filósofo e escritor inglês cuja especialidade era a estética. Scruton tem sido apontado como o intelectual britânico conservador mais bem-sucedido desde Edmund Burke. Foi nomeado como Cavaleiro Celibatário pela Rainha Elizabeth II em junho de 2016.


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