O Niilismo no Século XX, Parte I

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Traduzido por Tony Pedroza
07 de junho de 2022

O niilismo está presente na cultura ocidental há muitos séculos, mas nenhum século esteve tão permeado pelo niilismo como o nosso. Com discernimento, Alexander Solzhenitsyn, recentemente observou que a democracia ocidental está no seu “último declínio”, que já não mais possui fundações éticas, consiste apenas de “partidos e classes comprometidos com um conflito de interesses, apenas interesses, nada de elevado”. A observação do Solzhenitsyn dificilmente pode ser deixada de lado. Suas palavras descrevem aquele niilismo mais proeminente na democracia ocidental. O niilismo vai tão longe quanto o Eclesiastes no nosso Velho Testamento e o Nagarjuna no Budismo. Talvez nenhum século tenha existido sem ele, mas em neste século ele se tornou persuasivo, encontrando expressão não só numa avalanche de literatura, mas virtualmente em cada fase de nossa existência. O holocausto nazista, a guerra do Vietnã, a “morte de Deus”, a queda de Watergate, todo estão no mesmo escopo. É tão disseminado que merece atenção, especialmente dos historiadores da Igreja.

Depois de definir niilismo e fazer uma alusão ao relativismo, ao subjetivismo, aos valores destruídos e à preocupação com a morte que convergiram em nossos tempos, veremos algumas expressões niilistas de nosso século e, por fim, tentaremos desenhar algumas conclusões. Isto, é claro, só cobre parte de um grande tópico.

Definir niilismo é difícil. A dificuldade se origina em um aparente paradoxo ou inconsistência, no sentido de que um verdadeiro niilista provavelmente não teria nenhuma base para existir; de qualquer modo, os niilistas (ou niilistas incompletos) existem e o niilismo é expressado. O termo comumente conota a violência anárquica associada aos revolucionários da Rússia durante o reinado do Czar Alexander II. O niilismo se manifestou então como um repúdio ao cenário político-religioso. Dimitri Pisarev e seus seguidores deram início, em 1850, ao uso de terrorismo, assassinato e destruição para quebrar com a tirania do Estado, da Igreja e de outros justificadores do status quo. Eles rejeitavam os valores tradicionais da família, religião e autoridades políticas; eles afirmavam que as condições da estrutura social eram tão ruins que a destruição era desejável em si mesma, independente de qualquer resultado das suas ações. O termo “nihilism” — do Latim nihil: “nada” — foi popularizado por Ivan Turgenev em sua obra Pais e Filhos (1862). Estes niilistas perceberam as bases humanas de um estabilishment opressor, e em desespero chocaram-se com a hipocrisia impregnada. Sergey Nechayev (1847-1881), que morreu de fome em uma das prisões do Czar, era um exemplo típico destes niilistas. Ele declarou: “Nossa tarefa é difícil, total, universal, e a mais impiedosa destruição”.

Mas as dimensões do niilismo são muito maiores do que a anarquia e a destruição dos tempos de Pisarev e Nechayev. A violência anárquica ainda faz parte do niilismo, mas o niilismo também sugere uma sensação de desespero, de vazio e perda de sentido, uma perda da transcendência, um sentimento de que a vida termina no vazio da morte, que as normas morais não podem ser validadas, que relativismo e subjetivismo tornam todas as afirmações sobre a  verdade suspeitas e insustentáveis. Neste sentido, o niilismo é uma atitude que sustenta a ideia de que crenças tradicionais e valores não estão fundamentadas numa verdade absoluta ou objetiva, de que não há uma base sólida para fazer distinções entre o bem e o mal. Se este é o caso, Dostoiévski ponderou e Nietzsche afirmou, então tudo é permitido; o poder se torna primário, dando nascimento de múltiplas formas à violência (libertinagem, engrandecimento, vandalismo, tirania, exploração, hedonismo a qualquer custo). Essa violência é geralmente acompanhada por uma sensação de que a vida está correndo para o nada da morte, e é preciso conseguir tudo que for possível agora. No entanto, se a morte é o grande nada que no fim nega tudo e engole todos nós, e se não há nenhum centro último para a organização e a continuidade da existência humana, por que se preocupar com alguma coisa? A indiferença torna-se então uma importante expressão do niilismo, em formas tais como o tédio, o vazio, a falta de propósito, o desespero, a resignação, a futilidade e o suicídio. No niilismo do século XX, a violência e a indiferença estão curiosamente misturadas e relacionadas. O aspecto violento é cada vez mais evidente no terrorismo, crimes graves contra as pessoas, contra os bens e a tirania. A indiferença é cada vez mais evidente no sentido de alargamento das lacunas da credibilidade sobre a política, a perda de valores morais e o suicídio.

Muitos componentes complexos convergiram para produzir o niilismo do nosso tempo. Um componente geral foi a mudança da ideia de um outro mundo para a preocupação mundana. O realismo e nominalismo medieval eram parte deste processo de mudança. Então ocorreram a ascensão da ciência e do desenvolvimento do nacionalismo. Nos últimos 500 anos a soberania do indivíduo surgiu para desafiar a soberania de ambos: Igreja e Estado. Martinho Lutero favoreceu o processo por romper a autoridade do catolicismo romano e postular o homem individual com a Bíblia na mão, como o símbolo do protestantismo. Em Worms, em 1521, a ousadia de Lutero estabeleceu a Bíblia e a consciência como as autoridades gêmeas dos protestantes. Isto introduziu na própria base do protestantismo e da cultura moderna o elemento instável da autoridade individual e do subjetivismo. Embora Lutero mais tarde tenha recuado, sua postura fez da consciência subjetiva de cada pessoa o guia fundamental para a interpretação da Bíblia, estabelecendo assim a autoridade individual contra a Igreja e o Estado. Os católicos romanos advertiram Lutero contra a anarquia implícita, mas o golpe já havia sido deferido. A multiplicidade de seitas e grupos que surgiram deste então, cada um inflexivelmente interpretando a Bíblia à própria maneira, foi um resultado que Lutero não previu.

Fundações racharam, eventos relacionados seguiram. A ciência envolveu-se tanto com o que concebeu como "leis" da natureza e a possibilidade de que o homem pode controlar tudo, que a providência ativa de Deus, tão proeminente nos séculos passados, foi substituida por um deísmo que removeu Deus da máquina do mundo. Os filósofos franceses, com a afirmação de que a opinião do “homem comum” tinha o mesmo direito da aristocracia da Igreja e do Estado de dizer o que é bom. E “A Crítica da Razão Pura” de Kant limitou o conhecimento deste mundo. Kant argumenta que o conhecimento é inferencial e que as impressões dos objetos são recebidas e organizadas pelas doze categorias da mente e pelas formas de espaço e tempo, mas tal conhecimento é verificável e, portanto, crível na base das provas repetidas de ciência. Ao limitar o conhecimento do mundo aos cinco sentidos, Kant deu à ciência uma base filosófica necessária. Mas infelizmente o imperativo categórico de Kant e seus postulados não fizeram o mesmo para valores e religião, pois eles não eram cientificamente verificáveis. A razão exige o imperativo categórico, disse Kant, e é necessário para que a vida faça algum sentido. A razão também exige os postulados da liberdade, imortalidade e Deus como essenciais para a conclusão da ordem racional; caso contrário, o universo é totalmente caótico e não-racional. No entanto, as exigências da razão e da realidade não são necessariamente as mesmas. A própria razão é finita, relativista e subjetiva.

Dois dos seguidores mais proeminentes de Kant usaram a razão para tirar conclusões radicalmente diferentes sobre a natureza da realidade — o númeno. Arthur Schopenhauer, influenciado pelo pensamento oriental, concebeu a realidade última (“coisa-em-si” de Kant) como um abrangente não-racional, uma Vontade irracional. Todos os fenômenos são ilusões, disse ele, nada exceto a vontade realmente existe. Fenômenos são objetivações cegas da Vontade; os nossos seres são ilusões, e seria um bom conselho parar de lutar, deixar de ser e tornar-se novamente um só com a Vontade indiscriminada. Toda a bolha de existência e todas as atividades humanas são miragens.

G. W. F. Hegel, por outro lado, influenciado pelo idealismo grego, concebeu a natureza da realidade — o númeno — como razão absoluta no processo cósmico do vir-a-ser. Usando um esquema da tese, antítese e síntese, Hegel traçou este vir-a-ser através da história. Karl Marx rejeitou esta razão absoluta em seu materialismo dialético e afirmou que a sociedade sem classes é o vir-a-ser, e poderá ser ajudada pela revolução. Schopenhauer, Hegel e Marx são exemplos do relativismo e subjetivismo possível graças a Kant.

Até a metade do século XIX, o relativismo e o subjetivismo havia corroído tanto os valores tradicionais, a ciência tinha feito tantos progressos explicando os mistérios e milagres deste mundo (especialmente com a Origem das Espécies de Darwin, 1859), que Friedrich Nietzsche corajosamente celebrou a morte de Deus e “expôs” os valores antigos de amor, bondade e humildade como nada mais do que substitutos impostos pela evolução por pessoas fracas conduzidas em conjunto para ganhar força. Nietzsche clamou a entronização do poder nas relações humanas, para o abandono de todos os elementos sufocantes na sociedade, e para que a vontade de poder pudesse ser realizada na busca impiedosa da disciplina do Super Homem. Nietzsche espalhou o envoltório de poder — sem apresentar um padrão definitivo para o seu uso — sobre a vida moderna. Dostoiévski lutou contra a ideia da inexistência de Deus e declarou: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”. Isto implicava que a todos é permitido realizar seus próprios desejos por qualquer meio e, mesmo assim, se safar. Uma série de anarco-psicólogos contribuíram a este desenvolvimento no século XIX.

O século XX começou com esta condição mental e epistemológica, roedora como um câncer dentro da Cultura Ocidental. Ela foi agravada por uma consciência esmagadora da morte e os efeitos desumanizadoras da mega-tecnocracia. Com a perda do sobrenatural, um sentimento avassalador do absurdo trouxe o vazio, e por fim a morte veio à tona. Isso deu origem a um sentimento de falta de forma, um abismo do nada no coração da consciência humana. Para o “Grande Inquisidor” de Dostoiévski, esta é a “terrível verdade” escondida das pessoas que “além do túmulo encontrarão nada além da morte”. Entre aqueles que se atreveram a contemplar a própria morte, aparentemente pouquíssimos escaparam sem uma sensação de vazio absoluto. “Angústia ante o Nada e a Morte parece ser um fenômeno especificamente moderno”, escreve Mircea Eliade. Em outras culturas, “a morte é a Grande Iniciação. Mas no mundo moderno a Morte é esvaziada de seu significado religioso; E por isso é assimilada ao Nada, e ante o Nada o homem moderno está paralisado”. A bomba nuclear e duas guerras nos fizeram conscientes não só da morte, mas também da possível extinção da humanidade. Ernest Becker, sociólogo, está entre aqueles que defendem que a negação da morte, ao invés da repressão do sexo, é o problema subjacente da nossa cultura. A desumanização da mega-tecnocracia tem agravado ainda mais o problema da morte, fazendo com que as pessoas se sintam insignificantes e impotentes. Em sua obra “O Castelo”, Kafka, simboliza esta desumanização. Este é o tipo do ethos niilista que rapidamente tem se espalhado na Cultura Ocidental. É como se as palavras de Nietzsche tivessem se cumprido.

“Será que nós (que matamos Deus) não estamos mergulhando continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existe cima, baixo ou esquerda? Será que não estamos nos desviando de um nada infinito?”

Nihilism in the Twentieth Century: A View from Here

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