O Comunismo na Era Maoísta

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Traduzido por Valéria Campelo
16 de fevereiro de 2023

O maoísmo é considerado doutrina oficial do Partido Comunista Chinês, fundador e único governo da República Popular da China desde 1949. Em 1962, o maoísmo foi adotado como orientação ideológica oficial do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), sendo defendido publicamente como exemplo de caminho revolucionário a ser seguido. Pouco se fala, no entanto, das origens deste movimento que influenciou expressivamente os movimentos de esquerda no Brasil.

Neste ensaio surpreendente escrito em 1990, o sinólogo belga Simon Leys, pseudônimo de Pierre Ryckmans, descreve a impactante realidade da China durante a revolução comunista de Mao Tsé-Tung, trazendo detalhes do trabalho do padre László Ladány que revelam a verdadeira face desse movimento até então admirado por aqueles que não estavam lá.

A Arte de Interpretar Inscrições Inexistentes Escritas em Tinta Invisível em uma Página em Branco

Simon Leys, 1990

I

Você realmente sabe que venceu um debate quando vê seus oponentes começando a se apropriar das suas ideias, na crença sincera de que eles mesmos acabaram de inventá-las. Essa situação pode lhe proporcionar uma satisfação sutil; penso que o sentimento deve soar bastante familiar ao Padre Ladány, o estudioso padre jesuíta radicado em Hong Kong, que por muitos anos publicou o semanal China News Analysis. Longe dos holofotes do circo da mídia, Ladány desfrutou de três décadas de ilustre anonimato: todos os “expectadores da China” costumavam ler seu jornal com avidez; muitos o plagiavam — mas geralmente se esforçavam para nunca reconhecerem sua dívida ou mencionarem seu nome. O padre assistiu a esse número com um distanciamento sarcástico: ele provavelmente concordaria que o que Ezra Pound dizia sobre a escrita da poesia também deveria se aplicar ao registro da história — é extremamente importante que seja escrita, mas é indiferente quem a escreve.

China News Analysis era leitura obrigatória para todos que desejavam estar informados sobre o desenvolvimento político chinês — acadêmicos, jornalistas, diplomatas. Na academia, no entanto, sua obra entre muitos cientiLászló Ladány (1914-1990). Autor desconhecido.stas políticos era semelhante ao que um hábito de beber poderia representar para um aiatolá, ou um vício em pornografia para um bispo: uma necessidade compulsiva que precisava estar em sigilo. Especialistas chineses rangiam os dentes ao ler os comentários incisivos de Ladány; odiavam sua clareza e cinismo; e ainda assim, não podiam perder uma única edição do seu boletim informativo, pois, por mais perturbadoras e escandalosas que fossem suas conclusões, a informação factual que ele fornecia era inestimável e insubstituível. O que tornou o China News Analysis tão irritantemente indispensável foi o princípio muito simples e original sobre o qual era conduzido (a verdadeira originalidade é geralmente simples): todas as informações selecionadas e examinadas no China News Analysis eram extraídas exclusivamente de fontes oficiais chinesas (imprensa e rádio). Essa regra austera, vez ou outra, privava as matérias de Ladány da vida e da cor que poderiam ter sido fornecidas por fontes menos ortodoxas, mas lhe permitiu construir suas conclusões devastadoras sobre bases incontestáveis.

O que inspirou seu método foi a observação de que mesmo a propaganda mais mentirosa deve necessariamente ter algum tipo de relação com a verdade; ainda que manipulando e distorcendo a verdade, essa propaganda ainda precisa originalmente alimentar-se dela. Portanto, as dissecações das mentiras oficiais, se habilmente efetuadas, deveriam trazer uma certa quantidade de fatos verdadeiros. Vale mencionar que uma operação como essa requer um método pouco menos sofisticado que a química com a qual, nas Viagens de Gulliver,  os Grandes Acadêmicos do Lagado extraíam raios solares de pepinos e alimentos de excremento. O analista que deseja reunir informações através desse processo deve superar três obstáculos. Primeiro, ele precisa ter um domínio fluente da língua chinesa. Para o homem leigo, esse pré-requisito pode parecer um senso comum elementar, mas, uma vez que você sai do nível da rua e entra nas esferas mais elevadas da academia, o senso comum não é mais tão comum, e continua sendo uma questão interessante que, durante a era maoísta, a maioria dos principais “especialistas chineses” quase não conhecia nenhum chinês. (Apresso-me para acrescentar que isso é, em grande parte, um fenômeno do passado; hoje em dia, felizmente, os jovens acadêmicos são mais instruídos).

Em segundo lugar, no curso de suas exaustivas pesquisas de documentação oficial chinesa, o analista deve absorver quantidades industriais das coisas mais indigestas; ler literatura comunista é semelhante a mastigar salsicha de rinoceronte ou engolir serragem. Além disso, enquanto se sujeita a esse suplício, o analista não pode permitir que sua atenção se desvie ou que sua mente se entorpeça; deve manter sua inteligência forte e afiada; com o olho de uma águia que consegue avistar um coelho solitário no meio de um deserto, ele deve explorar os desertos áridos das pequenas letras nas páginas do People’s Daily e extrair os raros pontos de significância que estão enterrados sob as montanhas de clichês. Deve saber como extrair substância e significado de discursos flácidos, slogans vazios e estatísticas fantasiosas; deve procurar agulhas em palheiros do tamanho do Himalaia; deve combinar o nariz de um cão de caça à concentração e paciência de um pescador, e à intuição e conhecimento enciclopédico de um Sherlock Holmes.

Em terceiro lugar — e este é o seu maior desafio — ele deve decifrar o código do jargão político comunista e traduzir para o discurso comum essa linguagem secreta cheia de símbolos, enigmas, criptogramas, dicas, armadilhas e mensagens subliminares. Como os sábios anciões camponeses que conseguem prever o tempo de amanhã observando a profundidade que as toupeiras escavam e a altura em que voam as andorinhas, ele deve ser capaz de decifrar os sinais premonitórios de tempestades e degelos políticos, e de interpretar uma gama de avisos excêntricos — às vezes, o Líder Supremo mergulha no Rio Yangtze, ou de repente escreve um novo poema, ou patrocina um jogo de pingue-pongue: todos esses eventos têm implicações importantes. Ele deve observar atentamente a celebração de aniversários, a não celebração de aniversários e a celebração de não-aniversários; deve verificar as listas de convocados para cargos oficiais e registrar a ordem em que seus nomes aparecem. Na imprensa, o tamanho, o tipo e a cor das manchetes, bem como a posição e a composição das fotos e ilustrações são questões de grande importância; na verdade, obedecem a leis complexas, tão precisas e minuciosas quanto as regras iconográficas que regem a localização, a vestimenta, a cor e os atributos simbólicos das figuras de anjos, arcanjos, santos e patriarcas na decoração de uma basílica bizantina.

Para achar um caminho neste labirinto, engenhosidade e astúcia não bastam; também é necessária uma vasta experiência. A política comunista chinesa é um carrossel lúgubre, e para apreciar plenamente a natureza “déjà-vu” das suas últimas convoluções, você precisaria ter observado sua revolução por meio século. O maior problema de muitos dos nossos políticos e especialistas é que suas memórias são muito curtas, impedindo, assim, que coloquem eventos e personalidades em uma verdadeira perspectiva histórica. Por exemplo, quando, em 1979, a “República Popular” começou a revisar sua legislação penal, houve no Ocidente boas almas que aplaudiram essa iniciativa, pois achavam que ela anunciava o avanço da China em direção a um genuíno Estado de Direito. O que eles não notaram, no entanto — e que deveria ter fornecido um indício crucial sobre a natureza e o significado real deste movimento — foi que a nova lei estava sendo introduzida por Peng Zhen, um dos mais notórios carniceiros do regime, um homem que, trinta anos antes, havia organizado as selvagens acusações em massa, linchamentos e execuções públicas dos programas de reforma agrária.

Ou ainda, quando, após a morte de Mao, políticos e comentaristas ocidentais foram rápidos em saudar Deng Xiaoping como uma espécie de defensor do liberalismo. Os Selected Works de Deng publicados naquela época deveriam alertá-los — não tanto pelo que incluíam como pelo que excluíam; se tivessem sido capazes de lê-lo como qualquer documento comunista deveria ser lido, isto é, concentrando-se primeiro em suas lacunas, teriam redescoberto as declarações stalinistas-maoístas de Deng e, talvez, ficassem menos surpresos com os massacres de 4 de Junho.

Há mais de meio século, o escritor Lu Xun (1889-1936), cujo gênio profético nunca deixa de surpreender, descreveu com precisão o enigma da China observando:

Era uma vez um país cujos governantes conseguiram esmagar completamente o seu povo; e ainda assim acreditavam que o povo era seu inimigo mais perigoso. Os governantes emitiram enormes coleções de estatutos, mas nenhum desses volumes poderia realmente ser usado, porque, para interpretá-los, era preciso mencionar um conjunto de instruções que nunca havia se tornado público. Essas instruções continham muitas definições originais. Assim, por exemplo, “libertação” significava, na verdade, “execução de capital”; “Oficial do governo” significava “amigo, parente ou servo de um político influente”, e assim por diante. Os governantes também promulgaram códigos de leis que eram admiravelmente modernos, complexos e completos; no entanto, no início do primeiro volume, havia uma página em branco; essa página em branco só podia ser decifrada por aqueles que conheciam as instruções — as quais não existiam. Os três primeiros artigos invisíveis dessas instruções inexistentes são os seguintes: “Art. 1º: alguns casos devem ser tratados com leniência especial. Art. 2º: alguns casos devem ser tratados com severidade especial. Art. 3º: isto não se aplica a todos os casos.”

Sem a capacidade de decifrar inscrições inexistentes escritas em tinta invisível em páginas em branco, ninguém jamais deveria sonhar em analisar a natureza e a realidade do comunismo chinês. Pouquíssimas pessoas dominam essa disciplina exigente e, com razão, geralmente reconhecem o padre Ladány como seu decano.

II

Após trinta e seis anos de vigília na China, o padre Ladany finalmente se aposentou e resumiu sua experiência excepcional no livro The Communist Party of China and Marxism, 1921–1985: A Self Portrait [Partido Comunista da China e Marxismo, 1921–1985: Um autorretrato]. Não seria possível, no presente artigo, fazer jus a um volume que analisa com preciosos detalhes sessenta e cinco anos de história turbulenta; ainda assim, pode ser útil delinear aqui algumas das principais conclusões de Ladány.

O partido comunista é, essencialmente, uma sociedade secreta. Em seus métodos e mentalidade, apresenta uma notável semelhança com uma máfia do submundo.[1] Ela teme a luz do dia, alimenta-se de engano e conspiração e governa por intimidação e terror. A “legalidade comunista” é uma contradição em termos, já que o Partido está acima da lei — por exemplo, os membros do Partido estão imunes a processos judiciais; eles devem ser  primeiro despojados de sua filiação partidária para que possam ser indiciados por um tribunal penal (onde é inconcebível um juiz absolver uma pessoa acusada: uma vez que o acusado foi enviado ao tribunal, significa que ele é culpado). Enquanto Mussolini e Hitler alcançaram o poder através das eleições, nenhum partido comunista jamais recebeu o mandato de um eleitorado para governar.

Na China, o caminho que levou os comunistas à vitória permanece, ainda, parcialmente envolto em mistério. Ainda hoje, para os historiadores do Partido, muitos arquivos permanecem em sigilo, e há capítulos inteiros que continuam a apresentar enigmas insolúveis; nunca foram encontradas minutas de reuniões decisivas, datas importantes permanecem incertas; em alguns episódios momentâneos, ainda é impossível identificar os participantes e reconstruir com precisão a sequência de eventos; em alguns períodos, não se pode sequer determinar quem foram os líderes do partido!

Como salienta Ladány, um regime comunista é construído sobre um tríplice fundamento: a dialética marxista, o poder do Partido e uma polícia secreta — mas, quanto ao seu aparato ideológico, o marxismo é apenas um aspecto opcional; o regime pode permanecer sem ele a maior parte do tempo. A dialética é a arte jovial que habilita o Líder Supremo a jamais cometer erros — pois, mesmo que fizesse a coisa errada, fazia na hora certa, o que tornava certo o que estivesse errado; enquanto o Inimigo, mesmo que tivesse feito a coisa certa, fazia na hora errada, o que tornava errado o que estivesse certo.

Antes de garantir o poder, o Partido prospera no caos político. Se confrontado com um governo deliquescente, ele pode ter sucesso por meio da organização e da propaganda, mesmo quando opera em uma base minúscula: em 1945, os comunistas controlavam apenas uma cidade, Yan'an, e alguns setores remotos do interior; quatro anos depois, toda a China era deles. Na época da tomada comunista, os membros do Partido em Pequim somavam apenas três mil, e Xangai, uma cidade de nove milhões de habitantes, tinha apenas oito mil membros do Partido. Em uma época de colapso social e econômico, é preciso bem poucas pessoas — menos de 0,01% da população no caso chinês — para lançar apelos emocionais, incitar a indignação da população contra autoridades corruptas e brutais, para mobilizar a generosidade e o idealismo dos jovens, para conseguir o apoio de milhares de estudantes e, eventualmente, para apresentar seu pequeno movimento comunista como a encarnação da vontade de toda a nação.

O que é ainda mais interessante é que, antes de 1949, onde quer que a população fosse diretamente exposta às suas regras, os comunistas eram totalmente impopulares. Eles haviam introduzido uma reforma agrária radical em algumas partes do norte da China durante a guerra civil e, como recorda Ladány,

Não apenas proprietários de terra, mas todos os inimigos suspeitos foram tratados brutalmente; podia-se caminhar pelas planícies do norte da China e ver as mãos saindo do chão, as mãos de pessoas enterradas vivas... Felizmente para os comunistas, a propaganda do governo era tão mal organizada que as pessoas que viviam em regiões não ocupadas pelos comunistas nada sabiam sobre tais atrocidades.

Uma vez que o país inteiro caiu sob seu controle, não demorou muito para que os comunistas estendessem ao resto da nação o tipo de tratamento que até então era reservado para uso interno — purgar o Partido e disciplinar a população das chamadas áreas liberadas. O terror sistemático foi instaurado em escala nacional em 1950, para coincidir primeiro com a reforma agrária e depois com a campanha para suprimir “contrarrevolucionários”. No outono de 1951, 80% de todos os chineses tiveram de participar das reuniões de acusação em massa, ou assistir a linchamentos e execuções públicas organizadas. Essas duras liturgias seguiam padrões determinados que, mais uma vez, lembram as práticas das máfias: durante os procedimentos, perguntas retóricas eram dirigidas à multidão, que, em resposta, deveria gritar sua aprovação em uníssono — o objetivo do exercício era assegurar a participação coletiva no assassinato de inocentes; os últimos foram escolhidos não com base no que haviam feito, mas em quem eram, ou, às vezes, sem nenhum motivo melhor que a necessidade de atender à cota de execuções capitais arbitrariamente estabelecidas pelas autoridades do Partido.

Daquele momento em diante, a cada dois ou três anos, uma nova “campanha” seria lançada, com seu habitual roteiro de acusações em massa, “reuniões de luta”, autoacusações e execuções públicas. No início de cada “campanha”, ocorriam ondas de suicídios: muitas pessoas que durante uma “campanha” anterior sofreram humilhação pública, tortura psicológica e física nas mãos de seus próprios parentes, colegas e vizinhos, preferiam pular de uma janela ou embaixo de um trem a enfrentar outra vez a mesma aflição.

O que é interessante é que, ao organizar essas ondas recorrentes de terror, os comunistas insinuavam uma estranha incapacidade de entender seu próprio povo. Como a história demonstra amplamente, os chineses possuem uma paciência extraordinária; eles podem suportar estoicamente as normas de um governo impiedoso e voraz, desde que isso não interfira demais em seus assuntos familiares e atividades privadas, e desde que forneça uma estabilidade básica. Nos dois casos, os comunistas quebraram essa aliança tácita entre governante e governado. Invadiram as vidas das pessoas de uma maneira muito mais radical e devastadora do que na União Soviética. Remodulação de mentes, “lavagem cerebral”, como geralmente é chamado, é o maior instrumento do comunismo chinês, e a técnica remonta a uma consolidação anterior ao governo de Mao em Yan'an.

Para avaliar as características do sistema maoísta, basta comparar os campos chineses de “retificação do trabalho” ao Gulag soviético. A vida nos campos de concentração na Sibéria era fisicamente mais aterrorizante que a vida em muitos campos chineses, mas a opressão psicológica era menos severa naquela. Nos campos siberianos, os detentos ainda podiam, de certo modo, sentir-se espiritualmente livres e reter algum tipo de vida interior, enquanto o controle diário de palavras e pensamentos, a transformação e o condicionamento da consciência individual tornavam os campos maoístas muito mais desumanos.

Além de sua crueldade, a prática maoísta de lançar “campanhas” políticas em sucessão implacável gerou uma instabilidade permanente, que acabou arruinando o crédito moral do Partido, destruindo grande parte da sociedade, paralisando a economia, provocando fome em larga escala e quase instaurando uma guerra civil. Em 1949, a maioria da população estava apenas ansiando por um mínimo de ordem e paz, o que os comunistas poderiam facilmente ter concedido. Se tivessem governado com alguma moderação e se abstido dos levantes desnecessários das campanhas, poderiam ter conquistado apoio popular duradouro e assegurado um desenvolvimento econômico estável — Mao, no entanto, nutria um medo exacerbado de oposição e revoltas internas; essa falha psicológica levou-o a adotar métodos que se provaram fatalmente autodestrutivos.

A história poderia ter sido muito diferente se os líderes originais do Partido Comunista Chinês não tivessem sido dizimados pelo Terror Branco de Chiang Kai-shek em 1927, ou expulsos por seus próprios companheiros em expurgos subsequentes do Partido. Eram intelectuais urbanos civilizados e sofisticados, sustentando valores humanistas, com mentes cosmopolitas e abertas, sintonizados com o mundo moderno. Enquanto seu sol estava alto no firmamento político, a estrela de Mao nunca teve a chance de brilhar; embora brilhante e ambicioso, o jovem camponês autodidata era incapaz de competir com essas figuras carismáticas. A súbita eliminação desses líderes marcou uma reviravolta abrupta na revolução chinesa — pode-se dizer que a aniquilou —, mas também proporcionou a Mao uma abertura inesperada. No início, sua ascensão não era exatamente suave; no entanto, em 1940, em Yan'an, ele foi finalmente capaz de neutralizar todos os seus rivais e remodelar todo o Partido conforme sua própria concepção. Foi essa brigada maoísta de camponeses e soldados sem instrução, treinados e instruídos num canto remoto de uma das províncias mais pobres e atrasadas da China, que finalmente ele impôs seu domínio sobre toda a nação — e, como Ladány acrescenta “é por isso que existem escarradeiras em toda a República Popular”.

O anti-intelectualismo de Mao estava profundamente enraizado em suas experiências pessoais. Ele nunca esqueceu como, quando jovem, os intelectuais o fizeram sentir insignificante e inadequado. Mais tarde, passou a desprezá-los por seus questionamentos e inquietações constantes; a competência e a inteligência das autoridades acadêmicas o irritavam; ele desconfiava da independência de seus julgamentos e ressentia-se de sua capacidade crítica. Na atmosfera semelhante a um quartel de Yan'an, uma pequena cidade sem cultura, longe dos centros intelectuais, sem acesso a livros, em meio a camponeses analfabetos e soldados boçais, os intelectuais foram facilmente escolhidos para sessões humilhantes de autocrítica e transformados em alvos exemplares durante os expurgos aterrorizantes de 1942 a 1944. Assim, o padrão foi estabelecido para o que se tornaria a característica mais marcante do comunismo chinês: a perseguição e o ostracismo dos intelectuais. A brigada de Yan'an tinha uma aversão inata por pessoas que pensavam demais; essa tradição imbecil recebeu um impulso poderoso em 1957, quando, após a campanha do Desabrochar de Cem Flores, a elite cultural da China foi ridicularizada; nove anos depois, finalmente, a “Revolução Cultural” marcou o clímax da guerra de Mao contra a inteligência: golpes selvagens foram dados em todos os intelectuais dentro e fora do Partido; toda a educação foi praticamente suspensa por dez anos, produzindo uma geração inteira de analfabetos.

Pessoas educadas eram consideradas inaptas por natureza para se juntar ao Partido; especialmente a nível local, a resistência a aceitá-las sempre foi maior, pois a antiga liderança sentia-se ameaçada por todas as expressões de superioridade intelectual. Os números oficiais divulgados em 1985 fornecem uma imagem reveladora do nível de educação dentro do Partido Comunista — o qual constituía a elite privilegiada da nação: 4% dos membros do Partido recebeu alguma educação universitária — não necessariamente se formaram — (contra 30% na União Soviética); 42% dos membros do Partido frequentou apenas a escola primária; 10% são analfabetos…

A primeira baixa do anti-intelectualismo maoísta ocorreu, curiosamente, no campo dos estudos marxistas. Quando, depois de quinze anos de atividade revolucionária, o Partido finalmente sentiu a necessidade de adquirir algumas noções do marxismo (naquela época, praticamente nenhum trabalho de Marx havia sido traduzido para o chinês!), Mao, que ainda era um iniciante nessa disciplina, comprometeu-se a manter todos os desenvolvimentos doutrinários sob seu controle pessoal. Em Yan'an, como um professor inexperiente que conseguiu o único livro disponível e luta para manter uma lição à frente de seus alunos, ele simplesmente plagiou alguns livretos soviéticos e lhes deu uma versão chinesa de algumas concepções elementares stalinista-zhdanovianas. Como estas obras grosseiras, banais e secundárias chegaram a adquirir, aos olhos de todo o mundo, o prestígio e a autoridade de uma filosofia original, permanece um mistério; deve ser um dos exemplos mais notáveis de autossugestão em massa no século XX.

Em um aspecto, no entanto, os Pensamentos de Mao Tsé-Tung apresentaram uma verdadeira originalidade e ousaram trilhar um terreno onde o próprio Stalin não se aventurava: Mao condenou explicitamente o conceito de humanidade universal; enquanto o tirano soviético  apenas praticava a desumanidade, Mao concedeu-lhe um fundamento teórico, expondo a noção — sem paralelo nos outros países comunistas do mundo — de que só o proletariado é plenamente dotado de natureza humana. Negar a humanidade de outras pessoas é a própria essência do terrorismo; milhões de chineses logo mediram as reais implicações desta filosofia.

Inicialmente, após o estabelecimento da República Popular, o regime estava simplesmente contente em traduzir e reproduzir as introduções soviéticas elementares ao marxismo. A Academia Chinesa de Ciências possuía um departamento de filosofia e ciências sociais, mas não produziu nada durante os anos cinquenta, nem mesmo livros sobre o marxismo. Apenas uma universidade em todo o país — a Universidade de Pequim — possuía um departamento de filosofia; apenas os trabalhos de Mao eram estudados lá.

Quando a União Soviética denunciou Stalin e rejeitou sua História do Partido Comunista, os chineses ficaram atordoados: este pequeno livro continha praticamente tudo o que sabiam sobre o marxismo. Então, a cisão sino-soviética acabou com as importações intelectuais da URSS, e foi convenientemente decidido que os Pensamentos de Mao Tsé-Tung representavam o mais alto desenvolvimento da filosofia marxista-leninista; portanto, a fim de preencher o vazio ideológico, os Pensamentos de Mao de repente se expandiram e adquiriram funções polivalentes; seu estudo tornou-se uma recompensa pelo mérito, uma punição para o criminoso, um remédio para os doentes; poderia responder a todas as perguntas e resolver todos os problemas; até mesmo realizou milagres que foram devidamente registrados; sua presença era sentida em todos os lugares: era transmitida nas ruas e nos campos, era posta em composições, transformada em música e dança; estava inscrita em todos os lugares — nas falésias montanhosas e nos hashis, nos distintivos, nas pontes, nos cinzeiros, nas represas, nos bules, nas locomotivas; foi impresso em todas as páginas de todos os jornais. (Isto, por sua vez, criou alguns problemas práticos: em um país pobre, onde todo papel é reciclado para uma gama de propósitos, era um dever ser sempre muito cuidadoso para, ao embrulhar alimentos ou limpar traseiros, não fazer o mesmo com os onipresentes Pensamentos de Mao — o que teria sido um crime capital). De certo modo, Mao é para Marx o que o vodu é para o cristianismo; portanto, não é de surpreender que a inflação dos Pensamentos de Mao tenha impedido o crescimento de estudos marxistas sérios na China.

Nenhum tirano pode abandonar a humanidade e perseguir a inteligência com impunidade: no final, ele colhe imbecilidade e loucura. Ao visitar Moscou em 1957, Mao declarou que uma guerra atômica não deveria ser temida, pois, em tal eventualidade, apenas metade da raça humana pereceria. Esta afirmação notável forneceu uma boa amostra da mente que conceberia o “Grande Salto Adiante” e a “Revolução Cultural”. O custo humano desses empreendimentos foi impressionante: a fome resultante do “Grande Salto” formou um buraco negro demográfico. Um buraco para o qual quase cinquenta milhões de vítimas podem ter sido sugadas. A violência da “Revolução Cultural” afetou cem milhões de pessoas. Se, no geral, os horrores maoístas são bem conhecidos, o que não tem sido suficientemente assinalado é a sua loucura asinina. Em uma edição recente do The New York Review, Jonathan Mirsky citou uma anedota (de Liu Binyan, Ruan Ming e Tell the World de Xu Gang) que é tão exemplar e pertinente, que vale a pena lembrar mais uma vez: um dia, Bo Yibo estava nadando com Mao. Mao perguntou-lhe qual era a estimativa para a produção de ferro e aço no próximo ano. Em vez de responder, Bo Yibo disse a Mao que "saltaria" na água; Mao entendeu mal e, pouco depois, em uma reunião do Partido, Bo Yibo viu Mao anunciar que a produção nacional de ferro e aço saltaria no ano seguinte. [3]

A anedota soa perfeita à luz de toda a evidência documental que temos a respeito da procedência de Mao na época do “Grande Salto”: sabemos que ele engoliu os gigantescos e grotescos enganos fabricados por sua própria propaganda e aceitou sem discussão a agradável sugestão de que milagres estavam ocorrendo no campo chinês; ele acreditava genuinamente que o rendimento de algodão e grãos poderia aumentar de 300 a 500%. E o próprio Liu Shaoqi não foi mais sábio: inspecionando Shandong em 1958 e informado de que aumentos milagrosos haviam ocorrido na produção agrícola, disse: "Isso acontece porque os cientistas foram expulsos e as pessoas agora se atrevem a trabalhar!". A produção de aço, que era de 5,3 milhões de toneladas em 1957, supostamente alcançou 11 milhões de toneladas em 1958, e planejou-se atingir 18 milhões em 1959. A produção de grãos, que era de 175 milhões em 1957, supostamente alcançou 375 milhões de toneladas em 1958, e planejou-se chegar a 500 milhões em 1959. O Comitê Central endossou solenemente essa farsa (Wuchang, Sixth Plenum, Dezembro de 1958) — e planejou-se para mais. Zhou Enlai — que nunca passou por um tolo — repetiu e apoiou esses números fantasiosos, e anunciou que as metas estabelecidas no Segundo Plano de Cinco Anos (1958-1962) haviam sido alcançadas no primeiro ano do plano! Todos os principais líderes aplaudiram esse absurdo. Li Fuchun e Li Xiannian divulgaram estatísticas do “Grande Salto” que eram simplesmente fantasiosas. O que aconteceu com seu bom senso? Apenas Chen Yun teve a coragem de permanecer em silêncio.

Detalhes numéricos da fome subsequente foram fornecidos à imprensa oficial há apenas alguns anos, confirmando o que já era conhecido através dos depoimentos de inúmeras testemunhas oculares.

Em 1961, Ladány publicou no China News Analysis alguns desses relatórios de viajantes chineses provenientes de todas as partes da China.

Todos falavam em escassez de comida e fome; barriga inchada, deficiência de proteínas e doenças do fígado eram comuns. Muitos bebês nasciam mortos por causa da deficiência nutritiva de suas mães. Poucos bebês estavam nascendo. Como alguns trabalhadores afirmavam, a comida era insuficiente para mantê-los em pé, quanto mais para permitir que pensassem em sexo. Os camponeses não tinham forças para trabalhar e alguns desfaleciam nos campos e morriam. Organizações governamentais municipais e escolas enviavam pessoas às aldeias à noite para comprar comida, negociar roupas e mobília. Em Shenyang, o jornal relatou canibalismo. Mães desesperadas estrangulavam crianças que choravam por comida. Muitos relataram que os moradores estavam migrando para as cidades em busca de alimento; muitas aldeias ficaram vazias… Também foi dito que os camponeses estavam cavando poços subterrâneos para esconderem sua comida. Outros mencionavam lugares onde a população foi completamente dizimada pela fome.

Segundo o Guang Ming Daily (27 de Abril de 1980), no noroeste da China, a fome causou um desastre ecológico: em sua luta para cultivar alguns alimentos, os camponeses destruíam campos e florestas. Metade dos campos e um terço das florestas desapareceram entre 1959 e 1962: a região foi danificada permanentemente. O People’s Daily (14 de Maio de 1980) assinalou que o desastre do “Grande Salto” afetou a vida de cem milhões de pessoas que foram fisicamente devastadas pela escassez prolongada de alimentos. (Observe que, na época, especialistas da China em todo o mundo recusaram-se a acreditar que havia fome na China. Um comentarista da BBC, por exemplo, declarou deliberadamente que a fome generalizada em um país tão bem organizado era impensável).

Hoje, a fim de conter a onda de descontentamento popular que ameaça engolfar seu governo, Deng Xiaoping está invocando novamente a autoridade de Mao. Estar disposto a invocar esse fantasma para o resgate mostra o nível do seu desespero. Considerando a história dos últimos sessenta anos, pode-se facilmente imaginar que tipo de resposta os chineses agora estão dando para esse apelo.

As tentativas de Deng de ressuscitar e promover os estudos marxistas não são menos impopulares. O marxismo adquiriu um péssimo nome na China — o que é perfeitamente compreensível, embora um tanto injusto: afinal de contas, nunca foi realmente experimentado.

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Simon Leys

Pierre Ryckmans, mais conhecido por seu pseudônimo Simon Leys, foi um escritor, ensaísta e crítico literário belga-australiano, tradutor, historiador de arte, sinologista e professor universitário, que viveu na Austrália desde 1970.


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