A Filosofia Espiritual de Louis Lavelle

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Traduzido por Éder Rodrigues Fonseca
06 de junho de 2022

Quando Louis Lavelle morreu subitamente em 1º de setembro de 1951, a filosofia francesa perdeu um de seus representantes mais marcantes. Atento e aberto às correntes atuais da filosofia, o sucessor de Edouard le Roy na cátedra de filosofia do Collège de France era, com René le Senne, o animador da coleção Philosophie de l’Esprit (Filosofia do Espírito). Dotado de um poder de sistematização excepcional, Lavelle expôs sua síntese filosófica na Dialética do Eterno Presente. Quanto mais esta meditação metafísica ampla e profunda progride e carrega-se de nuances, mais ela nos revela seu autor não somente como um filósofo, mas como um espiritualista. O estilo objetivo e suave de Lavelle, a construção sabiamente arquitetada de seus livros não nos devem ocultar a prova do homem que tentam exprimir: temperamento vigoroso, coração transbordante de vida, Lavelle precisou vencer lenta e progressivamente sua natureza, permitindo ao espírito assumir seu corpo.

A teoria da participação explicita, sobre o plano filosófico, esta espiritualização do homem: “A experiência primitiva da qual todas as outras dependem é a experiência da participação, que é aquela que temos de nosso ser próprio em sua relação com o Ser absoluto, do qual ele é, por sua vez, distinto e inseparável”. O Ser absoluto suscita, como ato criador e pura eficácia, uma infinitude de possibilidades, em sua gratuidade generosa. Nosso ser pessoal é uma dessas possibilidades; ele participa então do Ato Puro, sua liberdade é limitada por um dado (o corpo, o mundo). Podemos ou aprisionar-nos neste dado e perder nossa liberdade, ou ainda fazer uso deste dado para nos reaproximarmos sempre mais do Ato Puro, fonte e fim de nosso ser criado. Tais são as alternativas que nos foram destinadas, como desenvolvido em Da Alma Humana, que podemos considerar o testamento filosófico de Lavelle.

A alma é o ato que nos religa ao Ato Puro, nossa relação viva com o Criador; ela nos convoca a atualizar o valor a fim de se tornar cada vez mais espírito. Quer dizer que ela deve libertar-se do corpo como de uma prisão? Lavelle recusa o dualismo metafísico, incapaz de dar conta das relações psico-somáticas, bem como o monismo epifenomenista, o qual absorve a alma em um processo bio-fisiológico. A análise reflexiva nos revela, ao contrário, nossa verdadeira condição.

Por meio do conhecimento de um lado, entramos em contato com um mundo exterior a nós mesmos, mundo de fenômenos, de objetos limitados e determinados, que o entendimento, graças e estas categorias, nos entrega sob a forma de representações. Mundo transitório, porque síntese momentânea de uma possibilidade e de uma existência. Nossa vontade, por outro lado, nos ensina a conhecermo-nos como atividades livres e capazes de promover um dever-ser no seio do mundo dos fenômenos. Nossa afetividade, enfim, nos faz entrar em comunhão com o Ato Puro e demais criaturas. Esta ordem da fé e do amor engloba as duas precedentes.

Enquanto ato cognoscente, querendo e amando, a alma é inseparável do corpo que ela informa e lhe permite incarnar no mundo, transformá-lo e realizar seu destino. A alma unida ao corpo cria o tempo, arriscando a cada instante esvanecer-se na exterioridade ou evadir-se em um mundo imaginário e desencarnado. Ela reserva também as potências, que graças ao corpo poderão desenvolver-se no contato com o mundo e as outras pessoas. A atualização e hierarquização destas potências constituem o destino da alma. As potências representativa e noética estruturam o conhecimento do não-eu; as potências volitiva e mnemônica, o conhecimento do eu; as potências expressiva e afetiva, a comunhão com o Ato Puro e com o outro.

O estudo do dinamismo espiritual da alma se conclui pelo exame de sua imortalidade e de sua eternidade: “Nossa vida mesma é uma morte e uma ressurreição ininterruptas”. Com efeito, nossa alma deve, para realizar seu destino, engajar-se no mundo e dele se libertar continuamente, retendo nela, como um filtro, as essências das representações e os valores das ações, num movimento de espiritualização crescente: “Ocorre então que a alma não é espírito nem corpo, mas o que ela tem de afinidade com um e outro”.

Se nossa espiritualização se identifica com a atualização dos valores, o estudo destes últimos está no centro da filosofia lavelliana. O Tratado dos Valores nos mostra que, através das condições que permitem à nossa atividade o exercer-se, mas que são sempre para ela um entrave, o que ela busca, é precisamente essa liberação espiritual que lhe permitirá coincidir desde dentro com o ser em processo de realização, em vez de sofrer os constrangimentos externos que este lhe impõe.

Antes de definir e descrever filosoficamente a noção de valor, Lavelle extrai dela a significação a partir de seus usos na linguagem e na história do pensamento. Inseparáveis do engajamento do homem no mundo, os valores constituem os laços almejados pelo homem entre o mundo das coisas e o universo do espírito.

Quanto ao valor apreendido em sua essência e não em suas expressões singulares, ele se manifesta por meio do sentimento e do querer. Porém, “se o valor nada é sem o desejo, é necessário que o juízo se una ao desejo para que o valor conclua sua constituição”. Mediador entre o entendimento, o querer e a afetividade, o valor está também entre o sujeito e o objeto, entre o individual e o universal.

Nem construído pelo entendimento, nem dado por uma intuição privilegiada, o valor deve ser conquistado pelo homem e revela-se, ainda, em suas manifestações mais altas, como uma graça: “O valor não merece tal nome senão à medida em que ele é vivenciado, onde ele nos engaja, onde ele toma por consequência o real e muda tanto nosso destino quanto o destino do mundo. É o juiz do real sem dúvida, não a fim de excluí-lo ou evita-lo, mas penetrá-lo e reformá-lo.

Na perspectiva de Lavelle, os problemas relativos às correspondências entre a ontologia e a axiologia ocupam um lugar central. Ou o valor nega o ser, pois visa a promover o que não é ainda; ou o valor é o desfecho do ser e sua perfeição. Lavelle toma nota desta alternativa, demonstrando que o valor é a essência do ser, inspirado pelo adágio tomista: ens et bonum convertuntur (ente e bem são conversíveis). Poder-se-ia dizer que “o ser é a fonte do valor; que a existência é dele o agente, a realidade o fenômeno e a essência o produto”.

Se a atualização do valor é o itinerário da alma a Deus, pois ele é o mediador entre o divino e o humano, Lavelle pode escrever que “o valor é Deus... enquanto se revela em nossa experiência, quer dizer, enquanto ele se nos dá ou que ele se nos deixa participar”.

Encarnar o valor é operar a passagem do possível à existência, e do real dado ao real buscado; ou esta passagem não é exequível senão graças ao tempo e à liberdade. O tempo é necessário para a atualização do valor enquanto ele distingue o possível do dado; mas ele pode ser ocasião de seu desaparecimento no esquecimento ou no hábito. A liberdade absoluta inventa os possíveis; a liberdade dos seres participantes é limitada pelo dado, mas ela o ultrapassa para dele se liberar e promover o espírito.

Preferir é experimentar o valor e entrar na vida dos problemas relativos às relações entre o finito e o infinito, a parte e o todo, o indivíduo e a humanidade. Preferir é comparar; comparar, é julgar. O juízo de valor explicita preferências entre desejos, como o juízo de veracidade explicita relações entre representações. Estes dois tipos de juízos nos fazem passar do individual ao universal; eles se implicam, porque o conhecimento, o querer e a afetividade são indissociáveis da consciência: “A única condição para a manutenção da unidade da consciência é que haja uma verdade do valor como há um valor da verdade. A síntese destas duas fórmulas poder-se-ia realizar na noção de verdade atuante”. Os juízos de valor e verdade buscam a significação oculta atrás do fenômeno; mas o primeiro “busca, atrás do ser do aparecer, esta raison d’être mais profunda que poder-se-ia considerar o direito que ele tem de ser”.

O valor é um ou múltiplo? Para Lavelle, ele é indivisível como o ser; os valores particulares assumem-se uns aos outros. Por causa de nossa limitação, nós participamos apenas de certos aspectos do valor, o que nos faz crer em sua pluralidade. Os valores particulares se nos apresentam ligados a seus contrários (bem — mal, belo — feio, etc.); a contrariedade não está no interior do valor, mas em nós mesmos. Logo, o problema do mal não está posto ao mesmo nível do valor, mas ao da atualização dos valores pelo homem; pois, no curso de sua “ascensão espiritual”, o homem pode retroagir por um mau uso de sua liberdade. Por isso, o portador do valor deve constantemente operar uma conversão dos valores interessados aos valores desinteressados, da exterioridade à interioridade, do regozijo ao sacrifício: “O sacrifício é o critério do valor e do valor supremo, ao qual reconheço que devo sacrificar todo o resto, inclusive a vida”.

Devemos nós considerar as análises de Lavelle sobre o trajeto ascensional do homem a uma espiritualização sempre crescente como uma visão do espírito ou como uma doutrina viva e viável? O próprio exemplo do autor confirma a segunda hipótese; seu livro Quatre Saints disso será uma segunda prova. Este trabalho de linguagem menos técnica que os precedentes se associa à série de ensaios surgidos anteriormente e destinados ao grande público. Este último volume, em vez de ser consagrado aos problemas morais como os primeiros, trata dos assuntos da espiritualidade.

O santo põe em viva luz a condição e a vocação do homem, nascido da terra e no mundo, e chamado a viver em comunhão cada vez mais íntima com Deus o seu próximo, ultrapassando sem cessar a natureza, e superando a ruptura entre o sensível e o espiritual. Pelo despojamento de todo egoísmo, ele reencontra a vida oculta, obscurecida pelas sensações e as lembranças. Por meio desta conversão à vida interior, são Francisco de Assis contempla Deus no espelho da natureza tornada transparente; são João da Cruz vê iluminarem-se as trevas profundas do coração; santa Teresa d’Ávila conjuga harmoniosamente a ação e a contemplação; são Francisco de Sales aclara os laços secretos entre uma vontade firme e a doçura do amor.

“É sua relação absoluta com Deus que dá a cada indivíduo, quais sejam suas limitações ou fraquezas, a marca do absoluto, quer dizer, o que faz dele um santo”. Tal é a vocação última do homem. Estudar os fatores constitutivos desta relação e as condições de seu florescimento é tarefa do filósofo. Antes de ser um representante do espiritualismo e o promotor do atualismo, Lavelle é um autor espiritual.

Cometeríamos um contra-senso se interpretássemos o pensamento lavelliano como um ecletismo; ele visa certamente a conciliar as diversas escolas filosóficas em suas afirmações, mas tendo o cuidado de demonstrar os domínios onde estas afirmações são válidos*. Ele recusará, por exemplo, ao psicologismo e ao sociologismo o direito de elaborar uma teoria geral do valor, ainda que eles possam, em determinados casos, explicar as realizações dos valores particulares por fatores contingentes psico-sociológicos (temperamento, meio social, etc.).

A filosofia lavelliana é uma filosofia espiritual porque ela é uma filosofia da ordem, na qual todas as potências da alma e as disciplinas que lhas correspondem são ordenadas em função do fim último da destinação humana. Mas esta filosofia da ordem não compreende nem lógica, nem teoria das ciências, nem psicologia, nem cosmologia, nem moral sistematizadas, pois ela é uma filosofia do sujeito e não do objeto; da interioridade e não da exterioridade.

O exame crítico deverá trazer esta concepção da filosofia antes de abordar questões de detalhe. Deve uma filosofia limitar-se a uma meditação das potências da alma e das condições de sua espiritualização sem se referir explicitamente a suas obras no domínio do conhecimento, da ação ou da criação artística? Sim, se ela se apóia sobre um método de introspecção; mas Lavelle disso desconfia e usa o método da análise reflexiva. Entretanto, ele não arrisca distorcer esta última no sentido do método de introspecção no momento em que ele perde de vista a problemática filosófica transmitida por nossa tradição ocidental e as obras que expressam seus valores? O pensamento de Lavelle repousa, é verdade, sobre os dados da história da filosofia, da arte, da moral e das religiões; todavia, o conhecimento desta história é internalizado a tal ponto que as teses dos filósofos, por exemplo, tão frequentemente opostas, se fundem em uma unidade harmoniosa, o que não seria possível senão no espírito de Lavelle.

Léon Brunschvicg também defendia uma filosofia do sujeito e da conversão, com o auxílio do método da análise reflexiva, mas ele se apoiava nos progressos historicamente constatáveis da consciência (e não da alma), na elaboração da matemática, da física, do conhecimento do homem (e não do sujeito pessoal). Lá onde Lavelle fala de espiritualização, Brunschvicg fala de racionalização, porque nele o tipo de análise é o da análise matemática, enquanto que em Lavelle, o modelo é buscar no místico. Lá onde Lavelle ensina uma conversão ao espírito ‘personificante’, Brunschvicg ensina uma conversão ao pensamento transubjetivo e supra-individual.

Brunschvicg e Lavelle, duas maneiras de conceber a filosofia e o método de análise reflexiva, ambos cartesianos, o primeiro inclinado a seguir Espinoza, o segundo, Malebranche; dois filósofos do espírito, mas de um espírito que se confunde no primeiro com “a espontaneidade criadora do pensamento”, e no segundo com um Deus criador por amor. O “momento histórico” da concepção destas duas filosofias não é o mesmo: Brunschvicg tinha de solucionar as dificuldades do cientificismo, do positivismo e do pragmatismo; Lavelle devia superar as perturbações trazidas ao pensamento filosófico por duas guerras mundiais e suas conseqüências.

Lavelle aborda, então, os problemas incendiários da atualidade, questões que demandavam uma solução imediata. Se ele se torna ao passado, é para nele descobrir as constantes da espiritualidade europeia; porém é ao presente e ao futuro que ele dirige todo o peso de sua meditação, e nos quais gostaria de inserir o fio da eternidade. Ele mostra a seus leitores uma via saudável, e não é por acaso que ele evoca frequentemente a Plotino e o espírito de santo Agostinho é subjacente a sua mensagem. Compreendem-se então as razões que o levam a deixar em segundo plano os dados da história das ciências, das religiões, das artes. Mas sua obra não teria sido mais acessível e convincente se ela tivesse trazido à luz as vitórias do espírito sobre a matéria, a barbárie e a bestialidade, das quais a história é o testemunho?

Se a filosofia lavelliana se pretende uma iniciação à salvação, não deveria ela dirigir-se a um vasto público? Parece, por suas exigências, que ela não poderá dirigir-se senão àqueles já convencidos da necessidade de uma conversão à interioridade e da presença ativa de um Deus do amor; para os demais, restará letra morta. Filosofia aristocrática, ela não põe em evidência o drama da filosofia de nosso tempo, sua incapacidade de mudar alguma coisa na ordem do mundo e no coração do homem, sua impotência de corrigir a situação, pois ela tem uma audiência mui restrita?

Filosofia da salvação, em que a alma é mediatriz entre o corpo, o mundo e o espírito, na qual os valores são mediadores entre o pensamento, a vontade, a afetividade e o ato criador, mas que em parte alguma fala do Salvador e do Mediador. Como bom cartesiano, Lavelle evita fazer teologia e sabemo-lo bem; mas, nutrido da seiva agostiniana, ele fala de queda, conversão e ressurreição; logo, os dogmas cristãos excitam-no em sua meditação, a exemplo dos santos. Sua filosofia não pode deixar teólogo algum indiferente. Todavia, neste pensamento em que a pessoa e seu destino ocupam o centro, poder-nos-íamos contentar com as mediações da alma e dos valores? Lavelle reconhece a insuficiência destas mediações, quando faz alusão à “relação absoluta” de cada indivíduo com Deus.

Devido à continuidade que ela supõe entre o ser criado e o Ser criador, a teoria da participação impediria o filósofo de perceber que esta relação absoluta é rompida pela falta do homem e é necessário o Mediador para restabelecê-la? O pensador precisa da intervenção de uma revelação estranha à reflexão natural do homem para convencê-lo da gravidade da queda e da necessidade de um salvador? Mas a intervenção dessa revelação não obrigará o filósofo a revisar sua teoria da participação? Com efeito, se nosso ato participado exprime uma liberdade relativa, esta liberdade não somente é limitada, à luz da revelação, por meu corpo, o mundo e o outro, mas ainda, de uma parte, pelo mal e, de outra, pela vontade redentora de Deus? Consequentemente, nossa alma e os valores podem ser mediadores tanto entre o homem e Deus quanto entre o homem e o nada; eles podem ser mediadores entre o homem e Deus desde que nosso ato participado seja assumido, garantido pelo próprio Deus (ou por seu vicário, segundo a teologia cristã) e não apenas por nós mesmos, por causa da deficiência total de nossa liberdade.

Filosofia espiritual, pois a filosofia da salvação e da graça (o ato participado pelo qual nosso ser passa da possibilidade à existência é uma graça**), a filosofia de Lavelle é animada por um otimismo, o que certamente deixa espaço ao pessimismo; porém, fortalecido por sua fé, Lavelle olvida que é este ato de fé que se torna questionamento para o filósofo e resposta para o teólogo. A obra deste príncipe do espírito merece toda nossa atenção, precisamente a esse título: ela dá testemunho — e que testemunho eloquente! — da presença implícita da fé vivida e da graça atuante no labor de um pensamento altamente pessoal.

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Gabriel-Ph. Widmer

teólogo reformado suíço, foi professor de dogmática e teologia sistemática nas universidades de Genf, de Lausanne e da Igreja Evangélica Livre de Lausanne.


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